segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ferreira Gullar, "O que se foi"

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

sábado, 27 de novembro de 2010

Gerda Brentani, "Beira-mar"

Konstantinos Kaváfis, "Mar da manhã".


Aqui, que eu me detenha. E que também eu veja
                                                          [um pouco a natureza.
O azul brilhante de um mar da manhã
e de um céu sem nuvens, e margem amarela; tudo
lindo e extremamente iluminado.

Aqui, que eu me detenha. E que caia na ilusão de ver isto
(vi-o verdadeiramente por um momento, logo que me detive);
isto, e não, também aqui, minhas fantasias,
minhas lembranças, as visões de volúpia.



Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Adelina Lopes Vieira, " É tarde "

Na sombra, assim, esconde-te alma triste,
não procures o sol que esplende, fora.
Oh! Não te aquecerá, da tua aurora,
do teu dia de luz, já nada existe.

Se a um raio ousado e quente o selo abriste,
se a tua noite te horrorisa agora,
pensa que é tarde, e soluçando chora
que as lágrimas são bálsamo. Resiste!

Lembram-te sei, alfombras orvalhadas
todas cheias de luz e de violetas,
as pombas pelo azul em revoadas,

as ondas do mar alto, irrequietas,
as montanhas ao longe, iluminadas...
Morre! Mas cala as mágoas indiscretas.

Portinari, "Antúrios"

Bernardim Ribeiro, "Cantiga"

Entre mim mesmo e mim
não sei que se ergueu
que tão meu inimigo sou.

Uns tempos com grande engano
vivi eu mesmo comigo,
agora no maior perigo
se me descobre maior dano.

Caro custa um desengano,
embora este não me tenha matado
quão caro que me custou!

De mim me sou feito outro,
entre o cuidado e cuidado
está um mal derramado,
que por mal grande me veio.

Nova dor, novo receio
foi este que me tomou,
assim me tem, assim estou.

Do cancioneiro Geral de Garcia Rezende

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

José Saramago, "Aniversário".

Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.

domingo, 14 de novembro de 2010

Milton Dacosta, "Paisagem com Flamboyant"

Alfonsina Storni, "Homem pequenino"

Homem pequenino, homem pequenino,
Solta o teu canário que quer voar...
Eu sou o canário que quer voar...
Eu sou o canário, homem pequenino,
Deixa-me escapar.
Estive na tua gaiola, homem pequenino,
Homem pequenino que gaiola me dás.
Digo pequenino porque não me entendes,
Nem me entenderás.
Tampouco te entendo, mas enquanto isso
Abre-me a gaiola que quero escapar;
Homem pequenino, amei-te meia hora.
Não me peças mais.

Tradução de Carlos Seabra

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Eugénio de Andrade, " A boca ..."

A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

Mulher, Foto

Adélia Prado, "Amor feinho"

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Gravura em ponta seca de Lasar Segall, "Mário na rede"

Gastão Cruz, "O que faz sentido"

Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Carlos Drummond de Andrade, "Quarto em desordem "

Na curva perigosa dos cinqüenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
a esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

domingo, 7 de novembro de 2010

Guignard, "Paisagem de Minas"

Domingos da Mota, "Muros"

Vivemos a dois
passos, tão distantes, com
muros de silêncio

de permeio.
Os muros altos, farpados,
arrogantes.

Ivan Junqueira, "Vai tudo em mim"

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo
neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.

sábado, 6 de novembro de 2010

José Marques Campão, "Rua do Interior"

Lêdo Ivo, "Os utensílios"

No galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
E lá elas esperam a morte, como os velhos nos asilos.

Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.

Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mario Quintana, "Confissão".

Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!

José Maria dos Reis Júnior, "Beira-mar".



(Acho que é o bairro da Urca visto das obras do Aterro do Flamengo).

Luís de Camões, "Tanto de meu estado me acho incerto ..."

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Armando Freitas Filho, "Numeral 23"

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.