sábado, 30 de julho de 2011

Mulher, Foto


Konstantinos Kaváfis


















"Entendimento"

Os anos de minha juventude, minha vida voluptuosa –
como vejo agora claramente seu sentido.

Que arrependimentos supérfluos, que fúteis....

Mas não via então seu sentido.

Na vida dissoluta de minha juventude
formavam-se as inclinações de minha poesia,
delineava-se o campo de minha arte.

Por isso mesmo, os arrependimentos nunca foram consistentes.
E as decisões de conter-me, de mudar
duravam duas semanas, quando muito.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Carlos Drummond de Andrade, "A Morte do leiteiro"

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

CARNAVAL, de Manuel Bandeira

Sobre "CARNAVAL", assim MB fala no Itinerário:

"O meu Carnaval começava ruidosamente,como o de Schumann, mas foi-me saindo tão triste e mofino, que em vez de acabar com uma galharda marcha contra filisteus, terminou chochamente "not with a bang but a whimper".

É um livro sem unidade. Sob o pretexto de que no Carnaval todas as fantasias se permitem, admiti na coletânea alguns fundos de gaveta, três ou quatro sonetos que não passam de pastiches parnasianos (“A Ceia”, “Menipo”, “A Morte de Pã” e mesmo “Verdes Mares”, que este até o Pedro Dantas, meu fã nº 1, considera imprestável), e isto ao lado das alfinetadas dos “Sapos”.

A propósito desta sátira, devo dizer que a dirigi mais contra certos ridículos do pós-parnasianismo. É verdade que nos versos

“A grande arte é como
Lavor de joalheiro”

parodiei o Bilac da “Profissão de Fé”, (“Imito o ourives quando escrevo...”). Duas carapuças havia, endereçada uma ao Hermes Fontes, outra ao Goulart de Andrade. O poeta das Apoteoses, no prefacio ao livro chamara a atenção do público para o fato de não haver nos seus versos rimas de palavras cognatas; Goulart de Andrade publicara uns poemas em que adotara a rima francesa com consoante de apoio (assim chamam os franceses a consoante que precede a vogal tônica da rima), mas nunca tendo ela sido usada em poesia de língua portuguesa, achou o poeta que devia alertar o leitor daquela inovação e pôs sob o título dos poemas a declaração entre aspas: “Obrigado à consoante de apoio”. Goulart não se magoou com a minha brincadeira e sete anos depois foi quem me arranjou editor para o meu volume de Poesias.

Com Carnaval recebi o meu batismo de fogo. Certa revista deu sobre ele uma nota curta, mais ou menos nestes termos: “O Sr. Manuel Bandeira inicia o seu livro com o seguinte verso: “Quero beber ! cantar asneiras...” Pois conseguiu plenamente o que desejava”. Na Revista do Brasil, ao tempo dirigida por Monteiro Lobato, apareceu este comentário: “Carnaval – Manuel Bandeira – Rio,1919. É este um folhetinho de versos como os outros. Bem como os outros não: porque não há em todos belezas como estas, de um subjetivismo complicado que, noutro tempo, se chamava tolice”. Seguiu-se a transcrição de “Debussy” e depois: “Escola muito conhecida, como se vê. Há quem goste e tem papa francês em São Paulo”. Esse papa francês, na idéia do crítico, parece que era Freitas Valle, o Jacques d’Avray de tantos belos poemas em francês e que nada tinha com o peixe.

Houve, de fato, quem gostasse. Muita gente. João Ribeiro e Oiticica dispensaram ao folhetinho a mesma boa acolhida dada à Cinza das Horas. O primeiro escreveu no Imparcial de 15 de dezembro:
“A musa do Sr. Manuel Bandeira é sóbria, oracular e quase taciturna, de poucas palavras, mas por vezes sublimes e profundas. Neste novo livro ... há desenvolturas de espírito e angústias de coração que bem definem o temperamento poderosamente versátil do poeta. Todas as delicadezas da arte, sem dano da suavidade da inspiração, o domínio da idéia e das palavras enfim, o ‘savoir-faire’, as qualidades de verdadeiro escritor aqui se apresentam com exclusivo brilho... Tudo é de esmerado lavor; bastaria uma só das composições de Carnaval para dizer como é numeroso o ritmo dos seus versos e como e consumada a arte com que os compõe”.

Que podia eu desejar ainda ? Era aprovação e elogio do mestre encanecido na leitura da poesia de várias literaturas. Pois tive mais: a geração paulista, que iria, ainda neste ano de 1919, iniciar a revolução modernista, tomou-se de amores pelo Carnaval. Segundo informação de Mário de Andrade, foi Guilherme de Almeida quem primeiro assinalou o livro e o revelou aos companheiros. Naturalmente a sátira "Os Sapos” estava a calhar com o número de combate e, com efeito, por ocasião da Semana de Arte Moderna, foi o meu poema bravamente declamado no Teatro Municipal de São Paulo pela voz de Ronald de Carvalho sob os apupos, assovios, a gritaria de “foi não foi” da maioria do público, adversa ao movimento.

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Publicado em 1919, a edição de "Carnaval" foi custeada pelo seu pai. Ainda que apenas dois anos o separem da publicação de "A Cinza das Horas", boa parte dos poemas não repetia seu tom amargo. Afinal, um livro cujo título é "Carnaval" já sinaliza a intenção.
Mas o Carnaval de MB me parece uma alegoria intelectual da "festa da carne", não o Carnaval real que acontecia nas ruas do Rio de Janeiro. Talvez signifique um início do adeus às agruras da tuberculose, e o começo da sua abertura à busca da alegria, do prazer e do sexo.
Aliás, tanto em temática quanto em forma, o livro me parece um ritual de passagem, em que o novo e o velho perambulam misturados. No primeiro verso do livro MB diz que quer beber e cantar asneiras e no último fala que o seu Carnaval é sem nenhuma alegria.
Dos 33 poemas do livro, eu diria que talvez dois terços sejam poemas novos quanto ao estilo e ao tema, sendo que destes alguns tem conteúdo erótico. Quanto ao terço restante - se publicados fossem -, estariam melhor em "A Cinzas das Horas".
Em diversos dos poemas novos, ele explora os mitos da "Commedia dell'arte", com o triângulo amoroso entre Pierrot, Colombina e Arlequim. Sendo Pierrot o símbolo do personagem poético, sensível e sofrido, apaixonado pela Colombina que o rejeita; Arlequim, o malandro que consegue tudo com jogos e trapalhadas, e, por fim, a Colombina, que é apaixonada pelo Arlequim, por quem é usada e traída.
Eu diria até que MB era um Pierrot que almejava ser Arlequim.

Destaco três poemas, embora um deles me toque diretamente.

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O uso dos mitos de Pierrot, Colombina e Arlequim em muitos poemas os torna previsíveis. No título, já se sabe o enredo e o final, e tendo métrica e rima na forma, ficam mais comuns ainda.

Destes, só destacaria um.

"O DESCANTE DE ARLEQUIM

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade..."


Quanto à forma, nada a destacar. O que eu admiro é a sua descrição da pilantragem do Arlequim. Mas um Arlequim brasileiro. Quando o leio, me lembro dos sambas antigos de Noel Rosa, Ismael Silva, Ary Barroso e Chico Buarque.

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Outro poema que gosto é "Os Sapos, que foi lido e bastante vaiado durante a Semana de Arte Moderna.

"OS SAPOS

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei!" - "Foi!"
- ~"Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!".

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."

Outros, sapo-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo-cururu
Da beira do rio..."


O que admiro é o tom gozador. Os poetas, muito apropriadamente são comparados a sapos coachando na beira do brejo, disputando qual deles coacha melhor.
Ao criticar os parnasianos, MB afirma que "não há mais poesia, mas há artes poéticas..."

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"SONHO DE UMA TERÇA-FEIRA GORDA

Eu estava contigo. Os nossos dominós eram negros,
                                           [e negras eram as nossas máscaras.
Íamos, por entre a turba, com solenidade,
Bem conscientes do nosso ar lúgubre
Tão contrastado pelo sentimento de felicidade
Que nos penetrava. Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas extáticas.

E a impressão em meu sonho era que se estávamos
Assim de negro, assim por fora inteiramente de negro,
- Dentro de nós, ao contrário, era tudo tão claro e luminoso.

Era terça-feira gorda. A multidão inumerável
Burburinhava. Entre clangores de fanfarra
Passavam préstitos apoteóticos.
Eram alegorias ingênuas, ao gosto popular, em cores cruas.
Iam em cima, empoleiradas, mulheres de má vida,
De peitos enormes - Vênus para caixeiros.
Figuravam deusas - deusa disto, deusa daquilo, já tontas e
                                                                                      [seminuas.
A turba ávida de promiscuidade,
Acotovelava-se com algazarra,
Aclamava-as com alarido.
E, aqui e ali, virgens atiravam-lhe flores.

Nós caminhávamos de mãos dadas, com solenidade,
O ar lúgubre, negros, negros...
Mas dentro em nós era tudo claro e luminoso.
Nem a alegria estava ali, fora de nós.
A alegria estava em nós.
Era dentro de nós que estava a alegria,
- A profunda, a silenciosa alegria... "


Gosto muito do poema, mas não sei porque. Ninguém comenta sobre ele, mas eu acho que a poesia vaza em seus versos elegantes e delicados. É uma poesia que eu sinto sem conseguir explicar o motivo, além de ser muito Manuel Bandeira.

MB diz no Itinerário que não é escrito em versos livres, pois "ainda acusam o sentimento da medida". Eu acho que seu ritmo específico engana quem pensar que seja prosa. "O Cacto" e "Gesso" repetem esse ritmo.

O poeta conta um sonho. Pela atmosfera, me parece que sonha dormindo, ainda que poderia estar acordado, pois o sonho lhe é muito agradável.

Numa terça-feira de carnaval, ele e uma mulher caminham de máscara e roupa dominó negras, paralelamente a um desfile de carnaval. Porém, enquanto a turba multicolorida festeja com algazarra e alegria, numa apoteose sexual e quase promíscua, ele e ela caminham puros e com solenidade, pois sua alegria estava dentro deles, - "A profunda, a silenciosa alegria".
Eles estavam felizes e tinham consciência disso.

Ao descrever a pureza da sua felicidade, MB utiliza uma imagem inspirada no suplício das santas católicas, cujo uso é insólito tanto no meio daquele quase bacanal como quanto metáfora de felicidade:

"Um lento, suave júbilo
Que nos penetrava... Que nos penetrava como uma
                                                                                      [espada de fogo...
Como a espada de fogo que apunhalava as santas
                                                                                    [extáticas"
.


É difícil saber o que eu gosto no poema. Ele não me fala ao cérebro, mas ao coração. Talvez seja a atmosfera de consciência do sonho feliz, da superioridade e do alheamento que o sentimento de felicidade nos dá. Nossa felicidade é tanta que ficamos alheios até às felicidades do mundo exterior.
A poesia está em seus versos, mas sem alarde; poeticamente.
Eu gosto.

terça-feira, 26 de julho de 2011

Walt Whitman






















Uma mulher espera por mim ...

Uma mulher espera por mim, nela tudo se contém, não falta nada,
No entanto faltaria tudo se lhe faltasse o sexo ou a umidade do
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp homem certo.

Tudo se contém no sexo, corpos, almas,
Significados, provas, purezas, delicadezas, proclamações, efeitos,
Ordens, canções, higidez, orgulho, o mistério materno, o leite
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp seminal,
As esperanças todas, bens, outorgas, todas as paixões, belezas,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp amores, os deleites da terra,
Todos os governos, juízes, deuses, o cortejo de pessoas da terra,
Tudo se contém no sexo como partes de si e justificações de si.

Sem pejo o homem de quem gosto sabe e confessa as delicias
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp [do sexo,
Sem pejo a mulher de quem eu gosto sabe e confessa as do sexo
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp [dela.

Pois eu me afasto das mulheres insensíveis,
Para ficar com a que espera por mim, e com as mulheres de sangue
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp quente que me satisfazem,
Eu vejo que elas me compreendem e não me repudiam,
Vejo que são dignas de mim e eu serei delas o marido vigoroso.

Essas mulheres não são em nada inferiores a mim,
Têm o rosto tisnado pelo brilho dos sóis e pelo sopro dos ventos,
Há na carne delas, antigas e divinas, agilidade, força,
Elas sabem nadar, remar, montar, lutar, atirar, correr, bater,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp recuar, avançar, resistir, defender-se sozinhas,
São supremas por direito próprio - são calmas, límpidas, donas
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp de si mesmas.

Puxo vocês para junto de mim, mulheres,
Não as posso deixar ir, vou lhes fazer bem
Existo para vocês e vocês para mim, não apenas para o
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp [nosso bem,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp mas para o bem dos outros,
Envoltos em você dormem grandes heróis e bardos,
Eles se recusam a acordar pelo toque de outro homem que não eu.

Sou eu, mulheres, abro o meu caminho,
Sou severo, cáustico, indissuadível, mas amo-vos,
Não as machuco mais que o necessário a vós mesmas,
Derramo a substância geradora de filhos e filhas dignos destes
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp Estados, assedio com músculo pausado e rude,
Me firmo eficazmente, não dou ouvido a rogos,
Não ouso retirar-me sem depositar o que há de muito acumulei
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp dentro de mim.

Através de vocês eu dreno os rios enclausurados de mim mesmo
Em vocês concentro mil anos de futuro,
Em vocês faço enxerto dos tão amados por mim e pela América,
As gotas que em vocês destilo farão medrar moças atléticas e
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp ardentes, novos artistas, músicos, cantores,
As crianças que em vocês procrio vão procriar, por sua vez,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp outras crianças,
Exigirei, dos meus dispêndios amorosos, homens e mulheres
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp perfeitos,
Eles irão se interpenetrar, espero, como eu e tu agora nos
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp interpenetramos,
Contarei com os frutos dos generosos aguaceiros deles como
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp [conto
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp com os frutos dos aguaceiros que agora entorno.
Vou ficar à espera das ternas colheitas do nascimento, vida,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp [morte,
&nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp &nbsp imortalidade
Que tão amorosamente planto agora.

Tradução de José Paulo Paes.

domingo, 24 de julho de 2011

Cassiano Ricardo, "Poema Implícito"

O que a vida nos faz
supor esteja atrás dos objetos.
A presença do oculto,
o que a fotografia não nos diz.

As coisas
que não chegou a me dizer Lenora,
a que foi
morar no reino dos pássaros mudos.
E que mais me feriram justamente
porque não chegaram a ser ditas.

Os gritos, esculpidos na boca
das figuras de pedra.
Tudo o que é implícito.
Tudo o que é tácito.
Não gosto dos explícitos.

Gosto dos tácitos.
Daqueles que me dizem tudo
sem me dizer uma única palavra.
Não amo os lógicos,
os socráticos.

Amo os lunáticos,
os de cabeça virgem
e lírica.

Não amo os pássaros que cantam,
amo os pássaros mudos.

sábado, 23 de julho de 2011

Miguel Torga











"Penélope"

Ulisses desterrado
No mar da vida,
Digo o teu nome e encho a solidão.
Mas pergunto depois ao coração
Por quanto tempo poderás ainda
Tecer e destecer a teia da saudade ...
Vê se não desesperas
E me esperas
Até que eu volte, e à sombra da velhice
Te conte, envergonhado,
A indignas façanhas
Que cometi
Na pele do semi-deus que nunca fui…
Sê tu divina, de verdade, aí,
Nessa ilha de esperança,
Fiel ao nosso amor
De humanas criaturas.
Faz que seja bonito
O mito
Das minhas aventuras.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Eugenio Montale


















"Imitação do trovão"

Todo mundo, parece,
imita um modelo
sem o saber, empresa descabida.
Mas o pior ocorre com quem pensa
ver o seu por diante como uma estátua.
Não imitai o mármore, senhores. Se não podeis
conter-vos, modelai-vos do pó,
dos cabelos do vento, do raspar
das cigarras, do inverossímel
ribombar do trovão, no céu sereno.
Modelai-vos, digo, até do nada
se a ilusão tendes ainda de poder
roçar sequer a cópia daquela plenitude
de que estais vazios.

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Mário Quintana, "Pequeno Poema Didático"

O tempo é indivisível. Dize,
Qual o sentido do calendário?
Tombam as folhas e fica a árvore,
Contra o vento incerto e vário.

A vida é indivisível. Mesmo
A que se julga mais dispersa
E pertence a um eterno diálogo
A mais inconseqüente conversa.

Todos os poemas são um mesmo poema,
Todos os porres são o mesmo porre,
Não é de uma vez que se morre…
Todas as horas são horas extremas!

terça-feira, 19 de julho de 2011

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Luís Miguel Nava, " Os nós da escrita"

Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o
que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar
ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são
cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva
impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que
não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como
folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser
possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva
que neles caia não se escoa.

domingo, 17 de julho de 2011

Hilda Hilst, "Se me viessem à boca ..."

Se me viessem à boca
As palavras foscas
Para te abrandar.
Se levez e sopro
Habitassem a casa
Do meu corpo
Não seria eu aquela do teu gosto
E amaria lírios
Ao invés de ostras.
Se comedimento
Mornidão, prudência
Me dourassem a carne
E o coração
Tu me dirias rouco
Que a bem do Desejo
Desfez-se o Paraíso
E inventou-se a Paixão.

Bem porisso preserva
Quem te sabe inteiro.
Cala teu instante
De um ciúme que repete
Que devo ser repouso
E contenção.

sábado, 16 de julho de 2011

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Armando Freitas Filho, "Sobre uma foto de Edward Weston"

Sobre uma foto de Edward Weston

Nua, anônima, 1923. Vinte anos presumíveis
branca, em decúbito dorsal, com o tronco
arqueado (talvez pela respiração presa
no instante único da foto, ou melhor:
foi a foto que a sustou, a suspendeu
para sempre), e mais o cheiro, parado
do grosso cabelo preto do púbis
do pouco que aparece nas axilas não raspadas
que saboreio, degusto, engulo em seco
sinto o gosto, agora, porque a pele
do corpo é de hoje, setenta e oito anos depois
e brilha, lisa, morena de sol, sem nenhum sinal
de vida, porém. Teus olhos fechados te encerram.

Creio que foi esta foto:
Nude (México - 1923)
Foto de Edward Weston.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Adélia Prado, "Dolores"

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

terça-feira, 12 de julho de 2011

Jorge de Sena, "Aviso de porta de livraria "

Não leiam delicados este livro,
sobretudo os heróis do palavrão doméstico,
as ninfas machas, as vestais do puro,
os que andam aos pulinhos num pé só,
com as duas castas mãos uma atrás e outra adiante,
enquanto com a terceira vão tapando a boca
dos que andam com dois pés sem medo das palavras.

E quem de amor não sabe fuja dele:
qualquer amor desde o da carne àquele
que só de si se move, não movido
de prémio vil, mas alto e quase eterno
.
De amor e de poesia e de ter pátria
aqui se trata:que a ralé não passe
este limiar sagrado e não se atreva
a encher de ratos este espaço livre
onde se morre em dignidade humana
a dor de haver nascido em Portugal
sem mais remédio que trazê-lo n'alma.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Alice Ruiz













"tem os que passam ..."

tem os que passam
e tudo se passa
com passos já passados

tem os que partem
da pedra ao vidro
deixam tudo partido

e tem, ainda bem,
os que deixam
a vaga impressão
de ter ficado

domingo, 10 de julho de 2011

sábado, 9 de julho de 2011

Eucanaã Ferraz, "Rimas para Suzana"

O amor com que Suzana
rega as plantas do jardim.

Segue o mundo, segue a rua,
seque tudo até ao fim.

Suzana persiste, atenta; mais,
concentrada; mais, amorosa,

como se o universo fora
a erva, a orquídia, a rosa.

O amor com que Suzana
planta, replanta, vela,

como se cuidasse do tempo
e a água viesse dela.

Ao redor de seus cuidados
se ajunta de tudo a sede:

o alecrim, a bromélia,
um verde que não se mede.

O amor com que Suzana
se faz mãe e matinal,

matando a sede de azul
da montanha, do animal,

sede de água e carinho,
sede de tudo o que esteja

na quadra de seu jardim
ainda que seu jardim seja

a memória, o mundo todo.
O amor é o seu modo.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Jorge de Lima, Poema XII do Canto VII - Audição de Orfeu, da INVENÇÃO DE ORFEU.

Com todo o amoroso ódio e a angústia mansa
há na face um desânimo latente;
qualquer coisa exaurida na distância
para dar à paixão outra vertente.

Entristeço-me ao ruído persistente
do tempo para trás como a memória,
permaneço ora ileso ora ilusório.
Que segredo tão árduo eu esse doente.

E entre temeridades e temores
dou às coisas irreais nova constância
sob o peso dos seres meus e vossos.

Pois de todos os grandes desatinos
que possuem densidades diferentes,
diante de muitos sou sózinho e ossos.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Íbico, "Eros, de novo, sob pálpebras sombrias ..."

Eros, de novo, sob pálpebras sombrias
lança-me olhares molhados
de manhas mil.
E me enreda nas malhas cerradas
da deusa da beleza.
À sua aproximação,
tremo
como um cavalo atrelado,
antes pronto a vencer,
agora hesitante
ante carros mais rápidos.

Tradução de Décio Pignatari

Íbico viveu no século IV a.C.

terça-feira, 5 de julho de 2011

Drummond, "A máquina do mundo"

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

domingo, 3 de julho de 2011

Cecília Meireles, "Pequena Flor"

Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil, e preservar o perfume que aí dorme,

e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os pássaros acordados sem angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente,

e espera que se desprenda o excessivo, úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,

e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida
- assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.

sábado, 2 de julho de 2011

Jorge de Lima, Poema XIII do Canto VII- Audição de Orfeu, da INVENÇÃO DE ORFEU.

E esse velho e atroz poema?
Quem acaso o arquitetou?
Que mão sem braço o escreveu?
Que Leonora o mereceu?
Que mulheres vivem nele?
Que loucura o escureceu?
Ó tecido de memórias
recuadas de meu tempo
que a eternidade comeu!

Ó noites claviculares,
epopéia sem guerreiro,
humana sobrevivência
das lembranças recalcadas,
cem avós en cada cântico
prévio nunca amanhecido.

Deixai-me nele.

sexta-feira, 1 de julho de 2011