sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Jennifer Larmore interpretando a ária "Ombra mai fu", da ópera Xerxes, de Händel.

Jorge de Lima, "A noite desabou sobre o cais"


A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Para onde vão essas naus ?
Talvez para as Índias.
Para onde vão.

Capitão-mor, capitão-mor,
quereis me dizer onde é que fica
a ilha de São Brandão ?

A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.
Rangem guindastes na escuridão.
Donde é que vêm essas naus ?

Serão caravelas ? Serão negreiros ?
São caravelas e negreiros.
Há sujos marujos na caravelas.

Há estrangeiros que ficaram negros
de trabalharem no carvão.
Homens da estiva trabalham, trabalham,
sobem e descem nos porões,
Para onde vão essas naus ?

Saltam emigrantes embuçados,
mulheres, crianças na escuridão.
De onde vêm essa gente ?
Não há mais terras de Santa Cruz gente valente !

Ó indesejáveis qual país,
qual o país que desejais ?
Como é o nome dessas naus
que não se lê na escuridão ?
Vão descobrir o Preste João ?
Na minha geografia existe apenas
perdido no mar o cabo Não.

A noite desabou sobre o cais
pesada, cor de carvão.

Essas naus vão para o Congo ?
Castelo de Sagres ficou aonde ?
Capitão-mor onde é o Congo ?
Será no leste, no mar tenebroso ?
Capitão-mor perdi-me no mar.
Onde é que fica a minha ilha ?

Para onde vão os degredados,
os que vão trabalhar desntro da noite,
ouvindo ranger esses guindastes ?

Capitão-mor que noite escura
desabou sobre o cais,
desabou nesse caos.

Edgar Oehlmeyer, "Vaso de flores"

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Konstantinos Kaváfis, "Retorna"


Retorna frequentemente e apodera-te de mim,
sensação amada, retorna e apodera-te de mim -
quando a memória do corpo desperta,
e um desejo antigo torna a passar pelo sangue;
quando os lábios e a pele se lembram,
e as mãos sentem como se tocassem de novo.
Retorna frequentemente e apodera-te de mim à noite,
quando os lábios e a pele se lembram ...

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

José Augusto Seabra, "Tríptico da tristeza "



1.

Desce tristeza inútil
à profunda
serenidade intacta.

Desce, tristeza,
inunda
a verdade exacta.

E desce, tristeza, ainda
visível
e compacta.

2.

Soluço-te, tristeza,
como longa
ferida silenciada
e grave.

Irrompes-me
e sucumbes:
frialdade.

Um bafo
de alegria.

E só.

Um nada.

3.

Cai-me
a tristeza aos pés.

E não me baixo.




terça-feira, 27 de dezembro de 2011

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Murilo Mendes, "Ana Luiza"

Tuberculosa incomparável
Tens um farrapo de vida
Mas um corpo forte sensual
Uma cabeça vitoriosa
Plantada num tronco largo.

Está sendo lentamente devorada
Por seres microscópicos
Ana Luísa.

No sanatório usava lentes escuras
Para esconder teus célebres olhos azul-cinza
E tinhas medo do definitivo e monumental:
Estendida continuamente na espreguiçadeira,
Da força das montanhas te ocultavas.
De nada te valeu minha ternura,
De nada tua beleza te valeu.

Talvez te tornes para sempre invisível
Agora que eu te arranquei da penumbra dos tempos
Ana Luísa.

domingo, 25 de dezembro de 2011

Alberto Caeiro (Pessoa), "Num meio-dia de Primavera ..."

Num meio-dia de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu tudo era falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque nem era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E que nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espirito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E porque toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando agente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar para o chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espirito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido." -
"Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres."
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

.. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é humano que é natural.
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É a minha quotidiana vida de poeta,
E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para el
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.

... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam ?

sábado, 24 de dezembro de 2011

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Ibn Sara, "A brisa e a chuva".

Buscas consolo no sopro do vento ?
Em sua aragem há perfume e almíscar
Que até ti vem, ataviado de aromas,
Fiel mensageiro da tua doce amada.

O ar prova os trajes das nuvens
E escolhe um manto negro.
Uma nuvem prenhe de chuva
Acena ao jardim, saúda-o
Vertendo lágrimas nas risonhas flores.

A Terra apressa a nuvem
Para que lhe acabe o manto.
E a nuvem com uma mão
Entretece fios de chuva
E com outra vai-o enfeitando
Com um bordado de flores.

Abu Muhammad 'Abd Allah ibn Muhammad ibn Sara as-Santarini nasceu em Santarém (Portugal) em data incerta e morreu em 1123.

Tradução e escolha de Adalberto Alves, publicada no livro "O meu coração é árabe".

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Cecília Meireles, " Soneto antigo"

Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Mário de Sá-Carneiro, "Apoteose"

Mastros quebrados, singro num mar d'Ouro
Dormindo fôgo, incerto, longemente...
Tudo se me igualou num sonho rente,
E em metade de mim hoje só moro...

São tristezas de bronze as que inda choro -
Pilastras mortas, mármores ao Poente...
Lagearam-se-me as ânsias brancamente
Por claustros falsos onde nunca óro...

Desci de mim. Dobrei o manto d'Astro,
Quebrei a taça de cristal e espanto,
Talhei em sombra o Oiro do meu rastro...

Findei... Horas-platina... Olor-brocado...
Luar-ânsia... Luz-perdão... Orquideas pranto...
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
- Ó pantanos de Mim - jardim estagnado...

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Paulo Silenciário, " Tuas rugas ..."

Tuas rugas, Filina, são preferíveis à seiva toda
      da juventude; desejo ter em minhas mãos
antes os teus pomos pensos sob o peso dos cachos que
      os seios em riste de uma donzela qualquer.
Teu outono é melhor que a primavera de outras, e há mais
      calor em teu inverno do que no estio delas.

Tradução de José Paulo Paes.

Paulo Silenciário foi um poeta bizantino que morreu em Constantinopla entre 575  e 580 d.C.
Alguns dos seus poemas foram preservados na Antologia Palatina.

sábado, 17 de dezembro de 2011

João Cabral de Melo Neto, "Sujam o suicídio"

O pior que existe no suicídio
por limpo que seja, ou de tiro;

ou o suicídio por barbitúricos,
em que a dormir se cruza o muro;

pior que o incômodo resíduo
que se há de tratar como um vivo,

que há de lavar, barbear, pentear,
para a viagem que empreenderá;

o pior que há nele é o palavrório
que enreda o caixão e o velório

na oral, tropical, floração
que saliva a nossa nação.

Na verdade, onde mais o medo
é falador, é nos enterros.

No enterro, falam mesmo os mudos,
e se de suicida, falam duplo.

Ninguém deixa a mínima brecha
para a morte-Rilke, a da Igreja

e de outros que fazem da Porta
uma celebração deleitosa.

O padre sabe: não há fresta
onde a transcendência ele meta

no falatório, mato fechado
que nem pode abrir-se a machado

(Enquanto isso, pensa? o cadáver:
maçada! Não pude evaporar-me;

enfim: não se vende em balcão,
ainda, o suicidar-se de avião).

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Maria Teresa Horta, "Segredo"

Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça

nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa

Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço

com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço

Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar

nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Juan Ramón Jimenez, "O poema"

                        I

Não voltes a tocar-lhe,
pois assim é a rosa!

                        II

Pela raiz arranco o arbusto
cheio ainda do orvalho da alvorada.

Oh que jorro de terra
olorosa e molhada,
que chuva - que cegueira - de astros
em minha fonte, em meus olhos.

                        III

Cancão minha,
canta, antes de cantar;
dá, a quem te olhar antes de ler-te,
tua emoção e tua graça;
evola-te de ti, fresca e fragrante.


Tradução de José Bento.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

RITMO DISSOLUTO, de Manuel Bandeira.

No Itinerário, assim MB escreve:

"O Ritmo Dissoluto apareceu em 1924 conjuntamente com a segunda edição de “A Cinza das Horas” e “Carnaval”, num volume editado pela Revista de Língua Portuguesa. Causou grande e divertida surpresa nos arraias modernistas aparecer eu, autor de um poema já publicado (“Poética”), onde primitivamente havia este verso “Abaixo a Revista de Língua Portuguesa”, aparecer eu da noite para o dia editado por essa mesma revista. Eis como se tornou possível a coisa. Depois que morreu meu pai, fiquei sem nenhuma esperança de ver em livro os versos que fizera depois de Carnaval. Nunca procurei editores para eles, Ora, aconteceu que um dia, encontrando-me na Livraria Freitas Bastos com Goulart de Andrade, interpelou-me o poeta muito amavelmente: “Então, quando temos novo livro ?” Respondi-lhe que nunca, porque editor não me apareceria, nem eu tinha dinheiro para me editar por conta própria. Ao que Goulart acudiu prontamente: “Pois eu vou lhe arranjar editor”. Não fiz fé que o conseguisse. Dias depois em novo encontro de rua, ouvi-lhe com espanto recomendar-me que procurasse o Laudelino Freire, a quem falara sobre mim e com quem ficara acertado que o meu livro seria editado pela Revista. Assim a publicação do volume Poesias fiquei devendo-a a dois homens a quem atacara: ao poeta que eu satirizara nos “Sapos”, e ao editor contra cuja revista havia gritado “Abaixo!” num poema escandalosíssimo para o tempo (e creio que agora, de novo, para ao menos três trimestres da geração de 45). É verdade que o verso irreverente foi suprimido, mas para ser substituído pelo que lá está:”Abaixo os Puristas!”
O Ritmo Dissoluto é dos meus livros aquele sobre o qual os que apreciam a minha poesia mais discordam.
Para Adolfo Casais Monteiro, que tanto me desvaneceu escrevendo um estudo (Manuel Bandeira, Editorial Inquérito Limitada, Lisboa, 1944), o mais longo dedicado a minha obra poética, nesse livro “o parnasianismo quebrou definitivamente o seu instrumento de bronze; mas o que lhe ficou nas mãos não é um instrumento: são os pedaços com o que há de construir”. E mais adiante, acrescenta: “Em o Ritmo Dissoluto muitas são as poesias sem ritmo de espécie alguma; mais do que ritmo dissoluto portanto ... Mas a maioria delas oscila entre a notação sucessiva de impressões desagregadas uma das outras e a repetição de certos temas já cansados, em que a nota da melancolia se entrelaça com a da voluptuosidade, mas ‘sem poder de convicção’. Há nesse livro não sei o que de morno, de abatido e indiferente; indiferença à poesia como à vida, ausência daquela ressonância aguda ou profunda que é o sinal de que a poesia desceu sobre o poema”. O agudo crítico português confessou que O Ritmo Dissoluto lhe produziu certo mal estar.
Para Octávio de Faria (Estudo sobre Manuel Bandeira em Homenagem a Manuel Bandeira, Rio, 1936), ao contrário, O Ritmo Dissoluto era, dos quatro livros que eu tinha publicado até aquela data (A Cinza das Horas, Carnaval, O Ritmo Dissoluto e Libertinagem), o que mais lhe satisfazia. “É o momento”, explicou, “em que o poeta, vencendo as últimas barreiras da sujeição às regras que o tolhem demais, atinge a sua forma mais agradável.” Diz ainda que lido o livro Libertinagem logo em seguida ao Ritmo Dissoluto, decepciona um pouco; que depois de poesias como”Quando perderes o gosto humilde da tristeza”, “Sob o céu estrelado”, “Carinho Triste” (todas do Ritmo Dissoluto), até “Evocação do Recife”, “Noturno da Rua da Lapa” ou “O impossível carinho” (todas de Libertinagem), não deixam de dar uma impressão de tenuidade, de diminuição de forças, de menor capacidade criadora.
A mim me parece bastante evidente que “O Ritmo Dissoluto” é um livro de transição entre dois momentos da minha poesia. Transição para que ? Para a afinação poética dentro da qual cheguei, tanto no verso livre como nos versos metrificados e rimados, isso do ponto de vista da forma; e na expressão das minhas idéias e dos meus sentimentos, do ponto de vista do fundo, à completa liberdade de movimentos, liberdade de que cheguei a abusar no livro seguinte, a que por isso mesmo chamei Libertinagem. No Ritmo Dissoluto prossegui em certas experiências de Carnaval, como rimas toantes, mistura de versos brancos e versos rimados, versos livres que ainda persiste certo ritmo de medidas e rimados, coisa que depois tomei horror. Devo dizer que figuram nele poemas que são contemporâneos dos de Carnaval ou mesmo anteriores a eles (“Na solidão das noites úmidas”, “Felicidade”, “Mar bravo”, que é de 1913, “A vigília de Hero”, também de 1913 ou 1914, pois escrevi-o em Clavadel, “Quando perderes o gosto humilde da tristeza”). Os demais é que foram compostos a partir de 1921, na Rua do Curvelo ou na Mosela (Petrópolis). (Às influências assinaladas anteriormente há que acrescentar essa da atmosfera de Petrópolis. Dos vinte e quatro poemas que perfazem o Ritmo Dissoluto, oito foram escritos na Mosela. Mas a ação de Petrópolis só se exerce quando estou lá, a ação lenitiva, que atuando sobre a minha sensibilidade, logo me comunica aos versos um manso ritmo de aceitação). Aliás, dois pelo menos dos poemas de O Ritmo Dissoluto são dissolutos de ritmo: “Noite Morta” e “Berimbau”. O primeiro é um dos meus prediletos em minha obra, não sei se porque até hoje guardou para mim a atmosfera do lugar e do momento em que o escrevi, ou se porque, embora em versos-livres, o sinto, na forma, bem mais necessariamente inalterável do que os meus poemas de metro cuidadosamente construído. “Berimbau”, que é de certo modo a minha “Amazônia que ao vi”, está cheio de intenções formais e me recorda um dos maiores prazeres que já tive em minha vida de poeta e foi a atenção com que o ouviu Guilherme de Almeida quando eu disse pela primeira vez o poema ( e só nessa vez o disse bem), poucos dias depois de o ter escrito. À proporção que eu ia recitando, via os olhos de Guilherme que nada lhe escapara dos efeitos que eu ali pusera, por mínimo que fosse. “Berimbau” foi musicado por Jaime Ovalle". 


* * * * * * * * * * * * * * * * * *

Existem debates que são datados. Por exemplo: as polêmicas do verso livre, rimado ou da métrica. Hoje, lemos poemas da mais variadas formas sem necessidade de tomar posição estética contra ou a favor. Existe um gosto pessoal, mas sem maniqueismos.
Não era o que acontecia na época. Daí a importância de alguns poemas de Ritmo Dissoluto. Acho até que uma parte da obra de MB é a sua luta para se livrar das formas parnasianas e simbolistas.
Porém, da mesma forma que me parece impossível dissociar a Revolução Francesa da quilhotina, também não conseguimos dissociar a conquista da liberdade da forma empreendida por MB de alguns poemas radicais.
Nem por isso somos obrigados a gostar deles, e nem da guilhotina.

Do livro todo, só gosto de um poema, que me parece seja dos mais perfeitos na forma livre. Trata-se de Gesso:

"GESSO

Esta minha estatuazinha de gesso, quando nova
- O gesso muito branco, as linhas muito puras -
Mal sugeria imagem da vida
(Embora a figura chorasse).
Há muitos anos tenho-a comigo.
O tempo envelheceu-a, carcomeu-a, manchou-a de
                                                                  [pátina amarelo-suja.
Os meus olhos, de tanto a olharem,
Impregnaram-na de minha humanidade irônica de tísico.
Um dia mão estúpida
Inadvertidamente a derrubou e partiu.
Então ajoalhei com raiva, recolhi aqueles tristes fragmentos,
                                                [recompus a figurinha que chorava.
E o tempo sobre as feridas escureceu ainda mais o sujo
                                                                  [mordente da pátina...

Hoje este gessozinho comercial
É tocante e vive, e me fez agora refletir
Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu. "


O que é possível dizer desse poema ?
Não falo do tema, que é tocante. Nem da forma da composição, onde a partir de uma história até banal, o poeta encerra com esta afirmação forte e repentina:
"Que só é verdadeiramente vivo o que já sofreu."
Falaria - se pudesse - da unidade que ele tem, e da poesia que escapa das suas frases.
Ainda que seja em versos livres e sem ritmo, nenhuma palavra aí está a mais. Considero "Gesso"um dos grandes poemas modernos da língua portuguesa.

domingo, 11 de dezembro de 2011

António Manuel Couto Viana, "Despojo".



E, agora, o que faremos?
A quem legar o que resta
Do simulacro de festa
Que tivemos?
Quem aproveita os detritos
De uma alegria forçada?
Quem confunde aflitos gritos
Com imposta gargalhada?
Iremos por onde alguém
Descubra os nossos farrapos.
Vês flores no jardim de além?
- Vejo sapos.


sábado, 10 de dezembro de 2011























All you need
       is love

 All you want
       is sex

 All you have
       is porn.





Antônio Gomide, "Festa junina".

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Jorge de Lima, "Não procureis nexo naquilo ..."


Não procureis nexo naquilo
que os poetas pronunciam acordados,
pois eles vivem no âmbito intranquilo
em que se agitam seres ignorados.

No meio de desertos habitados
só eles é que entendem o sigilo
dos que no mundo vivem sem asilo
parecendo com eles renegados.

Eles possuem, porém, milhões de antenas
distribuídas por todos os seus poros
aonde aportam do mundo suas penas.

São os que gritam quando tudo se cala,
são os que vibram de si estranhos coros
para a fala de deus que é sua fala.




quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

António Manuel Couto Viana, "O avestruz lírico"


Avestruz:
O sarcasmo de duas asas breves
(Ânsia frustrada de espaço e luz,
De coisas frágeis, líricas, leves).

Patas afeitas ao chão;
Voar ? Até onde o pescoço dá.
Bicho sem classificação:
Nem cá, nem lá.

Isto sou (Dói-me a ironia
-Pudor nem sei eu de quê).
Daí a absurda fantasia
De me esconder na poesia,
Por crer que ninguém a lê.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Juan Ramón Jimenez, "Não roubes ..."


Não roubes
à tua pura solidão
teu ser calado e firme.
Evita o necessário
explicar-te a ti mesmo
contra quase toda gente.
Tu sozinho encherás
inteiramente o mundo.

Tradução de José Bento

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Ibn 'Ammãr, "Fitei intensamente a lua ..."

Fitei intensamente a lua;
Era o teu rosto
Na noite do desespero,
De ti tive abundância
Em tempo de penúria.
Assim vivia em graça
No abrigo que me davas.

Ai, a saudade dessa estima antiga !
Doce era ser sob a tua sombra:
Errava no verde prado
À vista da fonte de água fresca.


Abu Bakr Muhammad ibn 'Ammãr nasceu em Estombar, na região de Silves (atualmente Portugal), em 1031 e morreu em 1084.
Poema copiada do excelente livro "O meu coração é Árabe", de Adalberto Alves, onde o autor recolheu e traduziu poemas de autores árabes que viveram na Península Ibérica durante a ocupação dos mouros.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Li Tai-Po, "Lamento da Escada de jade"


A concubina não é mais jovem. Cada vez menos solicitada, raramente sobe a Escada de Jade que leva ao quarto do Imperador.


Nos degraus da escada de jade
                          já rolam
                          as pérolas do orvalho
                                               que vai molhar
                                 suas sapatilhas de seda
                                      durante toda a noite.

                                                        Na alcova,
                                               ela corre a cortina de cristal
                                          e olha a lua de outono
                                                    ondulando.


Li Tai-Po, ou Li Po, foi um poeta chinês da Dinastia Tang, que viveu entre os anos 701 e 762.
Tradução de Décio Pignatari, pontuada por mim.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Luis de Camões, "Busque Amor novas artes ..."


Busque Amor novas formas, novo engenho
Para matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal pode tirar-me o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho *.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei com e dói não sei porquê.

*  lenho  - Navio, nau, embarcação.