terça-feira, 31 de julho de 2012

Miguel Torga, "Esperança"


Quero que sejas
A última palavra
Da minha boca.
A mortalha de sol
Que me cubra e resuma.
Mas como à despedida só há bruma
No entendimento,
E o próprio alento
Atraiçoa a vontade,
Grito agora o teu nome aos quatro ventos.
Juro-te, enquanto posso, lealdade
Por toda a vida e em todos os momentos.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Manuel Bandeira, "Visita"


Fui procurar-te à última morada,
Não te encontrei. Apenas encontrei
Lousas brancas e pássaros cantando...
Teu espírito, longe, onde não sei,
Da obra na eternidade assegurada,
Sorri aos amigos que te estão chorando.

sábado, 28 de julho de 2012

Bertha Worns, "Moça dormindo"



Julia Uceda


















"Nota ao pé de uma história"

                                                              Variação da "Bachiana Brasileira nº 5",
                                                                                  de Villa-Lobos.


Começou já o último
adeus. Vão dizer-se
as fórmulas do fim. Hei de deixar
tudo quanto ouça: "Consumatum
est". Compreendo agora
e por fim a alegria
de estar entre vós, ásperas sombras,
seres que me atravessais
em cidades, de noite.
Árvores, rochas, rosas, compreendo a alegria
de que estejais junto de mim com vossa equívoca
presença que, em menina,
não pude compreender e convosco
brincava. Não sois para brincar: para dizer-me
adeus e voltar em outras primaveras
do mundo recordando-me
talvez, a vosso modo. (Ser um dia
lembrança de uma rocha; memória
de uma rosa num jardim
na lua habitada, é ser).

Acreditei que tinha vindo para sempre
e estava
triste. Agora descobri
a morte nos abismos
e a vida nas cristas
da pele. Agora é tudo
diferente: preparo-me
com tédio para a partida e estou mais perto
dos que ainda não sabem, dos que vão a caminho.
A minha identidade
não ma deu o amor, mas só a morte
- amor é uma sombra por trás das claras janelas,
o grito de uma hora
que morre,
o bater violento de uma porta -,
e o gozo do espaço, da luz, dos ares
de cristal, dos longos
silêncios, dos rios
que passam:
de toda a formosura que agora é minha e que vivo.
A catedral de sombra ainda tem luz.

Tradução de José Bento.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

David Mourão-Ferreira, "Nudez"


A pressa
com que se despe

nem na alma lhe apetece
qualquer veste

A pressa com que se despe

Até da carne e da pela
se pudesse

quinta-feira, 26 de julho de 2012

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Manuel Bandeira, "Maçã"


Por um lado te vejo como um seio murcho
Pelo outro como um ventre de cujo umbigo pende ainda
                                                      [o cordão placentário
És vermelha como o amor divino

Dentro de ti em pequenas pevides
Palpita a vida prodigiosa
Infinitamente

E quedas tão simples
Ao lado de um talher
Num quarto pobre de hotel.

terça-feira, 24 de julho de 2012

Heitor Ferraz, "Paisagem"


Os lençóis criam
ondulações de mar
armam no espaço do quarto
montanhas barrocas.

Toda uma noite consumida
em que o amor surge
por indecifráveis sonhos
sacudindo esta natureza convulsiva.

- O difícil é levantar sozinho.

domingo, 22 de julho de 2012

João Cruz e Sousa

















"O Assinalado"

Tu és o louco da imortal loucura,
o louco da loucura mais suprema.
A terra é sempre tua negra algema,
prende-te nela a extrema Desventura.

Mas essa mesma algema de amargura,
mas essa mesma desventura extrema
faz que tu'alma suplicando gema
e rebente em estrelas de ternura.

Tu és o Poeta, o grande Assinalado
que povoas o mundo despovoado
de belezas eternas, pouco a pouco.

Na natureza prodigiosa e rica
toda audácia dos nervos justifica
os teus espasmos imortais de louco.


sábado, 21 de julho de 2012

Eucanaã Ferraz, "Figura II"


O último verão
é sempre o mais crítico.
O sol
desmanchando
janelas e portas.
Mesmo a noite é tão-só
uma outra luz, mais compacta:
berinjelas que viessem pousar sobre a mesa.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Íbico de Régio, "Temo adquirir"

        Temo adquirir
        honras humanas
ao preço de pecar
        perante os deuses.


Íbico nasceu na primeira metade do século VI a.C. na Magna Grécia, em Reggio, na Calabria.

Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

José Albano, "Soneto"


Amor que imaginei, mas nunca tive,
Tão doce enlevo e tão cruel tormento,
Por tua causa choro e me lamento,
Sem que às dores duríssimas me esquive.

Aquele antigo sonho ainda vive
Neste meu coração triste e sedento
E, posto que me seja sofrimento,
Imploro ao céu que dele me não prive.

Bem, que a males perpétuos me condenas,
Sem a tua presença pura e mansa
As horas vão e vêm, mas não serenas.

De tanto padecer o peito cansa.
Mas entre mil torturas e mil penas
Ainda permanece uma esperança.




segunda-feira, 16 de julho de 2012

Kaváfis, "23ª Reflexão sobre poesia e ética"


A quadra do ano de que mais gosto é o verão. Os verdadeiros verões, do Egito e da Grécia - com seu sol causticante, seus triunfais pinos do dia, suas extenuantes noites de agosto. Não posso no entanto dizer que trabalhe mais - artisticamente - durante o verão. As imagens e sensações estivais me infundem numerosas impressões; todavia, não sei de as ter representado ou traduzido de pronto numa composição literária. Digo "de pronto" porque as impressões artísticas demoram a ser usadas, a gerar outros pensamentos, a transformar-se sob a ação de novas influências, e quando enfim se cristalizam em palavras escritas, é difícil lembrar a ocasião primeira onde nasceram e de onde se originam as palavras escritas.


                                                                                   (verão de 1909)

domingo, 15 de julho de 2012

Murilo Mendes, "Ante um cadáver"


Quando abandonaremos a parte inútil decorativa do nosso ser ?
Quando nos aproximaremos com fervor da nossa essência,
Partindo nosso pobre pão com o Hóspede
Que está no céu e está próximo a nós?

Para que esperar a morte a fim de nos conhecermos...
É em vida que devemos nos apresentar a nós mesmos.
Ainda agora essas coroas, esses letreiros, essas flores
Impedem de se ver o morto na verdade.
Estendam numa prancha o homem nu definitivo
E o restituam enfim à sua prometida solidão.

sábado, 14 de julho de 2012

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Gregório de Matos, "Carregado de mim ando no mundo".


Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passadas,
Que, como ando por vias desusadas,
Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

O remédio será seguir o imundo
Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas andam juntas mais ousadas
Do que anda só o engenho mais profundo.

Não é fácil viver entre os insanos,
Erra quem presumir que sabe tudo
Se o atalho não soube dos seus danos.

O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos,
Ser louco c'os demais que, só, sisudo.


quinta-feira, 12 de julho de 2012

José Régio, "Epitáfio para uma velha donzela"


De palmito e capela,
Qual manda a tradição,
Erecta, lá vai ela
Ser atirada ao chão.
De rosário na mão,
Lutou heroicamente
Contra a vil tentação
Do que nos pede a carne e a alma come.
Secreta, ansiosa, augusta, descontente
Dentro da sua túnica inconsútil *,
Engelhou* toda fome.
Por fim morreu de sede,
No seu heroísmo fútil.
Bichos! Penetrai vós no pobre corpo inútil.

* Inconsútil - Que não tem costura, inteiriço.
* Engelhou - Encarquilhou, contraiu, enrugou, murchou, secou.

quarta-feira, 11 de julho de 2012

terça-feira, 10 de julho de 2012

José Albano













"Soneto"

Poeta fui e do áspero destino
Senti bem cedo a mão pesada e dura.
Conheci mais tristeza que ventura
E sempre andei errante e peregrino.

Vivi sujeito ao doce desatino
Que tanto engana, mas tão pouco dura;
E inda choro o rigor da sorte escura,
Se nas dores passadas imagino.

Porém, como me agora vejo isento
Dos sonhos que sonhava noite e dia,
E só com saudades me atormento;

Entendo que não tive outra alegria
Nem nunca outro qualquer contentamento
Senão de ter cantado o que sofria.


segunda-feira, 9 de julho de 2012

Álvares de Azevedo, "Minha desgraça"


Minha desgraça não é ser poeta,
Nem na terra de amor não ter um eco...
E, meu anjo de Deus, o meu planeta
Tratar-me como trata-se um boneco...


Não é andar de cotovelos rotos,
Ter duro como pedra o travesseiro...
Eu sei... O mundo é um lodaçal perdido
cujo sol (quem mo dera) é o dinheiro...


Minha desgraça, ó cândida donzela,
O que faz que meu peito assim blasfema,
É ter por escrever todo um poema
E não ter um vintém para uma vela.

sábado, 7 de julho de 2012

Castro Alves, "Adormecida".


Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão... solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.


'Stava aberta a janela. Um cheiro agreste
Exalavam as silvas da campina...
E ao longe, num pedaço do horizonte,
Via-se a noite plácida e divina.


De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras,
Iam na face trêmulos — beijá-la.


Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia...


Dir-se-ia que naquele doce instante
Brincavam duas cândidas crianças...
A brisa, que agitava as folhas verdes,
Fazia-lhe ondear as negras tranças!


E o ramo ora chegava ora afastava-se...
Mas quando a via despeitada a meio,
P'ra não zangá-la... sacudia alegre
Uma chuva de pétalas no seio...


Eu, fitando esta cena, repetia
Naquela noite lânguida e sentida:
"Ó flor! — tu és a virgem das campinas!
"Virgem! — tu és a flor da minha vida!..."


sexta-feira, 6 de julho de 2012

Augusto dos Anjos, "O morcego".


Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruma ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
e olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre a minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh'alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto.

quarta-feira, 4 de julho de 2012

António Botto




"Querer-te mal, por que ?"

Querer-te mal, por que ? - Foste quem eras:
Um corpo gentilíssimo, perfeito,
Que se amoldava ao meu e a qualquer jeito
No pântano de todas as quimeras.

Que culpa tinhas tu se ainda esperas
O lugar prometido aqui no peito
E sais da minha vida e do meu leito
Com a simplicidade que trouxeras?

A culpa tenho-a eu que fui um triste
A desejar no alto do meu sonho
Beijar a perfeição que não existe.

Fui esta coisa inútil, complicada,
- Não me encontrando aonde me suponho
E encontrando-me aonde não há nada.


terça-feira, 3 de julho de 2012

Mimnermo, "Sem a Afrodite de Ouro"


                   Sem a Afrodite* de ouro,
          que vida existe ou que doçura?
Melhor morrer, quando eu não mais tiver
   os amores secretos e os presentes
                     de puro mel e o leito:
porque da juventude breves são as flores
                     para homens e mulheres.

              Quando chega a velhice dolorosa
               que os belos homens torna repulsivos,
                 cruéis preocupações desolam a alma:
o homem não mais se alegra olhando a luz do sol,
                  mas é odioso aos jovens
     e objeto de desprezo das mulheres,
          de tantos males deus cobre a velhice.



*Afrodite era a deusa do amor, da beleza e da sexualidade na mitologia grega, sendo Vênus sua equivalente romana.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


Mimnermo de Cofofón foi um poeta grego que viveu na segunda metade do século VII a.C.
Colofón é atualmente a cidade de Esmirna, na Turquia.



segunda-feira, 2 de julho de 2012

domingo, 1 de julho de 2012

Safo, "Fragmento"


Em redor da formosa lua os astros
velam seu branco rosto quando plena
inunda de esplendor a terra toda.


Tradução de Eugénio de Andrade.
Eugénio, que não sabia grego, traduziu Safo baseado em outras traduções.