quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Manuel Bandeira, "O martelo"


As rodas rangem na curva dos trilhos
Inexoravelmente.
Mas eu salvei do meu naufrágio
Os elementos mais cotidianos.
O meu quarto resume o passado em todas as casas que habitei
Dentro da noite
No cerne duro da cidade
Me sinto protegido.
Do jardim do convento
Vem o pio da coruja.
Doce como um arrulho de pomba.
Sei que amanhã quando acordar
Ouvirei o martelo do ferreiro
Bater corajoso o seu cântico de certezas.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Izacyl Guimarães Ferreira, "Registro de imóveis"


O bairro não tem mapa
a rua não tem nome
a casa não tem número
a porta não tem chave

a mesa não tem pratos
a cama não tem pés
o teto não tem luz
o tanque não tem água

o pai não tem trabalho
o filho não tem vaga
a mãe não tem mais nada

a morte não tem hora
a vida não tem volta
a lista não tem fim

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Lya Luft, "Não falem alto comigo..."


Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não veem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir os preços no mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços sempre
uma criança morta.


domingo, 23 de fevereiro de 2014

Emílio Moura, "A fábrica do poeta"


Fabrico uma esperança
como quem apaga
algo sujo no muro
e ali, rápido, escreve
Futuro.

Fabrico uma pureza
tão menina,
tão cristal e tão fonte
que, de repente,
é meu todo o horizonte.

Fabrico uma alegria
que é de ver as coisas
como se só agora
é que nascesse
a aurora.

Fabrico uma certeza
exata
para cada instante.
A vida não está atrás,
mas adiante.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Esta noite"


Esta noite terrível, tão terrível,
Tão profunda, tão noite. Debruçado
Sobre as teias de sombras do invisível,
O homem quer o silêncio iluminado.

Intermitente frêmito dorido,
Percute em tudo um canto que atravessa
O céu longínquo já de nós perdido,
Mas onde atrai um sonho que não cessa.

Fria noite total! Nela se apreende
Luz há muito apagada e dissolvida
Como um sopro de treva que se rende
À ânsia de claridade - a própria vida.

Somos canto, não mais, e navegando
Noturnos somos, cegos, esperando.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Mário Chamie, "Auto-estima"

 
Sou Chamie,
venho de Damasco.
Franco-egípcio
é o meu passado.
Sírio sou helenizado.
 
De Damasco
ao meu legado,
sou católico
e islâmico,
copta apostólico
catequizado.
 
No pórtico
mediterrâneo,
sou ático e arábico.
Vou contra o deserto
de desafetos contrários.
 
Sem custo nem preço
que se meça,
em nome de meu gênio
atlântico e adriático,
desprezo a cabeça e a sentença
se meus adversários,
adversos e vicários.
 
Sou Chamie, Mário.
Franco-egípcio
é o meu passado. Por onde entro,
venho de damasco
pela porta
do apóstolo Paulo.
Sírio sou helenizado.
Venho de Damasco,
por onde saio.
 
 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Donizete Galvão, "Lições da noite"


Antes de sair de casa,
mesmo com o sol ainda alto,
convém preparar
                         a lamparina.
Enchê-la de querosene,
subir-lhe um tanto o pavio
e deixá-la bem perto da porta.

Antes de se ir para a cama,
todo cuidado é pouco:
há que apagar
                         a lamparina.
Sua fumaça desenha abstrações
que marcam a cal da parede
e tingem de negro nossas narinas.

Quando a luz é precária
e as sombras têm poderes,
tateia-se pela casa a buscar
                                        a lamparina.
A brevidade de sua chama
e a baixa luz com que nos ilumina
lembram-nos de que a noite é nossa sina.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Mario Quintana













"Estes versos"

Olhando ao acaso uma empoeirada estante
ao acaso apanhaste um volume... E lês
estes versos
que fez um poeta antigo
para que os lesses neste mesmo instante...
Mas não repares a data: dirá, talvez, essa infeliz
que há muito já estou distante
- lá onde nem alcança o pensamento.
Mentira... Estou agora, aqui contigo...
Os poetas continuam para sempre no mundo
Asas da eternidade extraviadas no tempo.
Não estão mortos, são apenas
pássaros perdidos
no vento...

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Jorge Luis Borges, "O mar"


Antes que o sonho (ou o terror) tecesse
mitologias e cosmogonias,
antes que o tempo se cunhasse em dias,
o mar; sempre o mar, já estava e era.
Quem é o mar? Quem é o violento
e antigo ser que destrói os pilares
da terra, e é só um e muitos mares,
e abismo e resplendor e azar e vento?
Quem o olha, o vê pela primeira vez,
sempre, e com o assombro que as coisas
elementares provocam; as formosas
tardes, a lua, o fogo da fogueira.
Quem é o mar, quem sou eu? Sei-o no dia
que virá logo após minha agonia.

Tradução amadora minha.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Joan Vinyoli, "Ao vento de outono"


Vento de outono, vento solitário,
vento da noite,
força obscura que se desprende
do infinito e volta ao infinito,
rodopia dentro de mim, conjura
contra meu coração tua força,
arranca de um vez a casca
do fruto que não madura.

Tradução de João Cabral de Melo Neto.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Carlos Machado














"Ponteiros"

são três punhais
desiguais
desfolhando a
epiderme da hora

três punhais em
sincronia
no mesmo eixo
no mesmo círculo

em cada giro
uma vertigem de
tempo  uma
fatia de passado

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Luís Miguel Nava, "Crepúsculo"


Ao sol começa a faltar lenha, a rua
por onde agora eu sigo
vai só até onde a memória a conseguir abrir.


domingo, 9 de fevereiro de 2014

Fiama Hasse Pais Brandão, "Trevos bravos"
















Durante alguns anos amei os trevos
com desespero e júbilo e veemência.
E no ano passado num súbito momento
o jardineiro cortou-os ao longo do muro
como de o serem daninhos fosse o opróbio.
Eu amava-os, como testemunham as
orações feitas contra o muro, de joelhos,
na adolescência sem palavras. Olhar só
a corola provisória, o caule tenro,
a repetição, ano depois de ano,
do movimento do abrir das pétalas.

E aquele amarelo tão ridente
sacudido por si próprio ou pelo vento
e os sons que estoiravam, em redor,
dos insectos que enchiam a minha boca.
Só por eles eu emitia o ruído
de estar ali também eu viva.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Jorge de Sena














"Ganimedes"

Os pensamentos pastam na verdura,
balindo mansamente em torno dele,
e o rio corre sussurrante em pedras
que as sombras do arvoredo fazem negras.


Numa árvore se encosta o torso magro
que os cotovelos finca nos erguidos joelhos,
enquanto as finas ancas pousam na verdura
e de uma sombra entre elas pende uma brancura.


Delicados e firmes, os lábios se contraem
na tersa flauta em que os seus dedos dançam
ao mesmo tempo segurando-a leves.
Quase é silêncio a curta melodia.


Do fundo e vítreo azul que imobiliza
o campo e o arvoredo, um ponto negro vem
crescendo em asas, garras, bico adunco
entreaberto à frente de sanguíneos olhos.


E adeja no alto, imensa e monstruosa,
uma ave gigantesca. Os pensamentos sentem-na,
que os faz fugir, dispersos, assustados.
A melodia se suspende. O pastor olha.


Numa surpresa vê que as asas se desabam
sobre ele, escurecendo e recobrindo tudo.
Quando abre os olhos, elas voam vastas
entre ele e o azul, e as garras pela cinta o cingem.


Lá em baixo o rio brilha entre o arvoredo,
e pontos brancos, vagos, são o seu rebanho.
O bico hiante à sua boca chega
numa doçura a atormentá-lo inteiro.


E a negridão se acende pouco a pouco
de um resplendor de carne que é o do céu em volta,
e que o rodeia e rasga de um calor ardente
em que o seu corpo avança como um róseo dardo.


Mas quem avança em quem? O deus se entrega,
ou é quem viola, e como, o corpo arrebatado?
Quem é o senhor de quem? Ou sempre, ou mutuamente?
Ou cada um se humilha à sujeição do outro.


E mais: sem que o soubesse, aquele humano estava
já destinado às garras longamente curvas?
Ou por acaso foi que o deus se apaixonou?
E essa paixão durou? E que destino teve


o rebanho dispersado em susto? E a flauta
que entre a verdura mal se vê, perdida?
E o corpo do pastor, que pensa agora?
Só isto – o decisivo – não sabemos.


Na mitologia grega, Ganimedes era um príncipe de Tróia por quem Zeus se apaixonou.
O jovem cuidava do rebanho das ovelhas de seu pai quando foi avistado por Zeus que, atordoado pela beleza do jovem, transformou-se numa águia e raptou-o, possuindo-o em pleno voo.
Depois, levou-o ao Olimpo, onde passou a servir aos deuses o néctar que oferece a imortalidade.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Reinaldo Ferreira, "Receita para fazer um herói"


Tome-se um homem
Feito de nada, como nós,
E em tamanho natural.
Embeba-se-lhe a carne,
Lentamente,
Duma certeza aguda, irracional,
Intensa como o ódio ou como a fome.
Depois, perto do fim,
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto.


quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Ruy Espinheira Filho










"Soneto do quintal"

para Matilde e Mário, em Monte Gordo,
março de 91.

Ao recordar a moça, eu me comparo
ao cão que vejo a interrogar a brisa.
O que é mal comparar: bem mais precisa
é a mensagem de odores que o faro

decifra. E então medito sobre o claro
ser desse cão, e invejo essa precisa
vocação de existir. E ausculto a brisa
e nada nela encontro. Nada. E paro

de lembrar e pensar. Há mais profícuas
ocupações. Exemplo: só olhando
estar. Cão. Nuvens. Flor. E (ei-lo dormindo)

um gato. E essas formigas - três - conspícuas,
vestidas a rigor, deliberando
em torno de uma flor de tamarindo.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Eucanaã Ferraz, "O amor?"


Não, não é uma flor
(pelo puríssimo prazer
do não-ser). Mas

você quer tentar
novamente, está bem.
Pense nela como: bicho.

Abeire-se dele, do abdômen,
aborde mais, chegue
à borda, toque

com o bordo, dobre
as costelas (algo de barco
no bicho).

Ele ri de você
ao vê-lo assim: curvado,
tal qual um sinal

de interrogação, abelha
vasculhando abestalhada
o que possa ser bicho-barco-flor

ou uma abertura para isso, disso,
fissura, fresta,
furo

(você o pensa como: poço?).
Não vale a pena se abespinhar.

Faça melhor:
abisme-se
caindo

em admirações tamanhas
que de lá não possa sair.
Afinal, o amor é isso

(se fosse), pelo despenhadeiro prazer
de jamais oferecer garantias,
arras, bula.




sábado, 1 de fevereiro de 2014

Carlos Drummond de Andrade.














"Nudez"

Não cantarei amores que não tenho,
e, quando tive, nunca celebrei.
Não cantarei o riso que não rira
e que, se risse, ofertaria a pobres.
Minha matéria é o nada.
Jamais ousei cantar algo de vida:
se o canto sai da boca ensimesmada,
é porque a brisa o trouxe, e o leva a brisa,
nem sabe a planta o vento que a visita.

Ou sabe? Algo de nós acaso se transmite,
mas tão disperso, e vago, tão estranho,
que, se regressa a mim que o apascentava,
o ouro suposto é nele cobre e estanho,
estanho e cobre,
e o que não é maleável deixa de ser nobre,
nem era amor aquilo que se amava.

Nem era dor aquilo que doía:
ou dói, agora, quando já se foi?
Que dor se sabe dor, e não se extingue?
(Não cantarei o mar: que ele se vingue
de meu silêncio, nesta concha.)

Que sentimento vive, e já prospera
cavando em nós a terra necessária
para se sepultar à moda austera
de quem vive sua morte?
Não cantarei o morto: é o próprio canto.
E já não sei do espanto,
da úmida assombração que vem do norte
e vai do sul, e, quatro, aos quatro ventos,
ajusta em mim seu terno de lamentos.
Não canto, pois não sei, e toda sílaba
acaso reunida
a sua irmã, em serpes irritadas vejo as duas.

Amador de serpentes, minha vida
passarei, sobre a relva debruçado,
a ver a linha curva que se estende,
ou se contrai e atrai, além da pobre
área de luz de nossa geometria.
Estanho, estanho e cobre,
tais meus pecados, quanto mais fugi
do que enfim capturei, não mais visando
aos alvos imortais.

Ó descobrimento retardado
pela força de ver.
Ó encontro de mim, no meu silêncio,
configurado, repleto, numa casta
expressão de temor que se despede.
O golfo mais dourado me circunda
com apenas cerrar-se uma janela.
E já não brinco a luz. E dou notícia
estrita do que dorme,
sob placa de estanho, sonho informe,
um lembrar de raízes, ainda menos
um calar de serenos
desidratados, sublimes ossuários
sem ossos;
a morte sem os mortos; a perfeita
anulação do tempo em tempos vários,
essa nudez, enfim, além dos corpos,
a modelar campinas no vazio
da alma, que é apenas alma, e se dissolve.