quarta-feira, 30 de abril de 2014
Nicolas Behr, "senhores turistas ..."
senhores turistas,
eu gostaria de frisar
mais uma vez
que nestes blocos de apartamentos
moram inclusive pessoas normais
Nicolas Behr é um poeta de Brasília-DF.
terça-feira, 29 de abril de 2014
segunda-feira, 28 de abril de 2014
Ferreira Gullar
"Sortilégio"
Estava eu ali
no escuro e
de repente
o silêncio se move
enruga-se, melhor
dizendo, e me
roça as virilhas
(onde dormiam fúrias)
É quando uma
quase voz me toca
o lado esquerdo
do corpo para onde
me volto
e estás ali
nua
emergias da treva
as coxas o ventre
os seios
eram luas encantadas
e do centro
do teu corpo
a macia estrela negra
me chamava
para dentro de si
enquanto o teu rosto menino
espantosamente familiar
sorria a me dizer: jamais
jamais jamais
escaparás
domingo, 27 de abril de 2014
Murilo Mendes, "Antielegia nº 1"
O dia e a noite são ligados pelo prazer
E pelas ondas do ar
A vida e a morte são ligadas pelas flores
E pelos túneis futuros
Deus e o demônio são ligados pelo homem
sábado, 26 de abril de 2014
sexta-feira, 25 de abril de 2014
Adriano Espínola
"O prego"
O que mais dói não é
o retrato na parede,
mas o prego ali
cravado, persistente,
no centro da mancha
do quadro ausente.
quinta-feira, 24 de abril de 2014
Miguel Torga
"Desacerto"
Ternura em movimento,
vamos os dois - o sol e a sombra juntos -
O futuro e o passado no presente.
O que te digo é urgente;
O que tu me respondes não tem pressa.
A minha voz acaba na vertente
Onde a tua começa.
Apertamos as mãos enamorados.
Uma quente, outra fria...
E sorrimos às flores que no caminho
Nos olham com seus olhos perfumados.
Tu, de pura alegria;
Eu, de melancolia...
Um a cuidar, e o outro sem cuidados.
Canta um ribeiro ao lado.
Ambos o ouvimos, mas diversamente.
O que em ti é promessa de frescura
À terra da semente semeada,
Em mim é já certeza de secura
De raiz arrancada.
Almas amantes e desencontradas
na breve conjunção
Que tiveram na vida,
Levo de ti um halo de pureza.
Deixo-te a inquietação duma lembrança...
E é inútil pedir mais à natureza,
Surda ao meu desespero e à tua confiança.
quarta-feira, 23 de abril de 2014
terça-feira, 22 de abril de 2014
Hilda Hilst
I º Poema de "Da noite"
Vi as éguas da noite galopando entre vinhas
E buscando meus sonhos. Eram soberbas, altas.
Algumas tinham manchas azuladas
E o dorso reluzia igual à noite
E as manhãs morriam
Debaixo de suas patas encarnadas.
Vi-as sorvendo as uvas que pendiam
E os beiços eram negros e orvalhados.
Uníssonas, resfolegavam.
Vi as éguas da noite entre os escombros
Da paisagem que fui. Vi sombras, elfos e ciladas.
Laços de pedra e palha entre as alfombras
E vasto, um poço engolindo meu nome e meu retrato.
Vi-as tumultuadas. Intensas.
E numa delas, insone, a mim me vi.
segunda-feira, 21 de abril de 2014
Paulo Henriques Britto
"III º Lamento"
Nada nas mãos nem na cabeça, nada
no estômago além da sensação vazia
de haver ultrapassado toda sensação.
É em estado assim que se descobre a verdade,
que se cometem os grandes crimes, os gestos
mais sublimes, ou então não se faz nada.
É como as cobras. As mais silenciosas,
de corpo mais esguio, de cor esmaecida,
destilam o veneno mais perfeito.
Assim também os poemas. os mais contidos
e lisos, os que menos coisa dizem,
destilam o veneno mais perfeito.
domingo, 20 de abril de 2014
sábado, 19 de abril de 2014
Gabriel Garcia Marques - Aracataca (Colômbia), 06/03/1927 - Cidade do México, 17/04/2014.
"O AFOGADO MAIS BONITO DO MUNDO"
Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.
Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto
estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de
pedra sem flores, dispostas no fim de um cabo desértico. A terra era tão
escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos,
e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas
o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim,
quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber
que nenhum faltava. Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os
homens verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres
foram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto,
desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o faziam,
notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas
roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado entre labirintos de corais.
Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante
solitário dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e
indigente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpa- lo
tiveram consciência da classe de homens que era, e então ficaram sem
respiração. Não era só o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem
servido que jamais tinham visto, senão que, embora o estivessem vendo, não lhes
cabia na imaginação.
Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para
estendê-lo, nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as
calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais
corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e
sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço
de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar
sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo, contemplando
o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão
tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso quanto naquela noite, e supunham que
essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem
magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o
teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas
mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que
tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por
seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais
entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em
segredo, com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma
vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudia-los,
no fundo de seus corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra.
Andavam perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das
mulheres, que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que
compaixão, suspirou: - Tem cara de se chamar Estêvão.
Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para
compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais
jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores
e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã.
O lençol ficou curto, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas e as
forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia
noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta
feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o
vestiram, as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam
reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a
deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter
sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava.
Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos,
a permanecer de pé nas visitas, sem fazer o que fazer com suas ternas e rosadas
mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais
resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o
favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou
bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasando de tanto
repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim,
só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido
nunca que aquele que lhe diziam não se vá, Estêvão, espere pelo menos até que
aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam já se foi o bobo grande,
que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver
um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um
lenço para que não o maltratasse a luz, viram-no tão morto para sempre, tão
indefeso, tão parecido com seus homens, que se abriram as primeiras gretas de
lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As
outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto
mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se
tornando cada vez mais Estêvão, até que o choraram tanto que ficou sendo o
homem mais desvalido da Terra, o mais manso, o mais serviçal, o pobre Estêvão.
Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não
era dos povoados vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as
lágrimas.
- Bendito seja Deus - , e suspiraram: É nosso!
Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que
frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única
coisa que queriam era descartar-se de uma vez do estorvo do intruso, antes que
acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas
com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura,
para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos
tornozelos uma ancora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos
mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade,
de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com
outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres
lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos
do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado os
escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira
de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve,
olhe que quase me faz cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as
suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor
para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os
tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de
quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o
que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se zangar, desde
quando aqui semelhante alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um
presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade,
tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens perderam a
respiração.
Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o
reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles
ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com
seu arcabuz de matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali
estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe
cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar à faca. Bastou que
lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estavam envergonhado, de que
não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se
soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para
afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e
teria tropeçado como quem não que nada nas escarpas, para não andar agora
estorvando com este morto de quarta-feira, como vocês chamam, para não molestar
ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta
verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que
achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres se cansassem
de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais
empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão.
Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos
que se podiam conceber para um afogado considerado enjeitado. Algumas mulheres,
que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não
acreditavam no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram
o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que
mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas, e
lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizerem seus irmãos,
tios e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado
acabaram por ser parentes entre si. Alguns marinheiros que ouviram o choro à
distância perderam a segurança do rumo, e se soube de que um se fez amarrar ao
mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o
privilégio de carregá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens
e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de
seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do
seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o
quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que
demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns
aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar
jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas
teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para
que a lembrança de Estêvão pudesse andar por toda parte, sem bater nas traves,
e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que
pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores
alegres para eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando
mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos
anos venturosos, os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por
um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu
castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada
de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte do
Caribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso
que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não
sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estêvão.
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sexta-feira, 18 de abril de 2014
Manuel Bandeira
"Minha grande ternura"
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos,
Pelas pequeninas aranhas.
Minha grande ternura
Pelas mulheres que foram meninas bonitas
E ficaram mulheres feias;
Pelas mulheres que foram desejáveis
E deixaram de ser;
Pelas mulheres que me amaram
E que eu não pude amar.
Minha grande ternura
Pelos poemas que
Não consegui realizar.
Minha grande ternura
Pelas amadas que
Envelheceram sem maldade.
Minha grande ternura
pelas gotas de orvalho que
São o único enfeite
De um túmulo.
quinta-feira, 17 de abril de 2014
quarta-feira, 16 de abril de 2014
Jorge de Sena
"Aos cinquenta anos"
Aos cinquenta anos sou um ser perplexo,
não como aos vinte, aos trinta, ou aos
quarenta,
mas radicalmente perplexo. Não sei
se amo a vida ou a detesto. Se desejo
ou não desejo continuar vivendo.
Se amo ou não amo aqueles que amo,
se odeio ou não odeio os que detesto.
Se me quero patriarca, pai de família,
como acabei sendo,
ou se me quero livre pelas ruas
nocturnas
como quando não acabei de descobri-las
em décadas de andá-las, perseguindo
sequer o amor mas corpos, corpos,
corpos.
Sou de Europa ou de América? De Portugal
ou Brasil? Desejo que toda a humanidade
seja feliz como queira, ou quero que ela
morra
do cogumelo atómico prometido e
possível?
Não sei. Definitivamente, não sei.
Julgas que estou deitado num leito de
rosas?
— perguntava ao companheiro de tortura Cuauhtemoc
*.
Mas, mesmo destituído, preso e torturado,
ele era o Imperador, descendente dos
deuses.
Eu não descendo dos deuses. O corpo
dói-me,
que envelhece. O espírito dói-me de um
cansaço físico.
As belezas de alma, seja de quem forem,
deixaram
[de interessar-me.
Resta a poesia que me enoja nos outros
a não ser antigos, limpos agora do
esterco
de terem vivido. E eu vivi tanto
que me parece tão pouco. E hei-de morrer
desesperado por não ter vivido. Aos 50
anos
nem sequer a raiva dos outros ainda me
sustenta
o gosto e a paciência de estar vivo.
Outros que tentem e descubram:
que digam ou não digam é-me indiferente.
* Cuauhtemoc foi o último imperador dos Astecas.
Em 1520, foi preso, torturado e morto por Hernán Cortés.
terça-feira, 15 de abril de 2014
Ingmar Heytze, "Primeira meditação"
És a única árvore no mundo que recusa
crescer em direcção à luz. Em vez disso enterras-te
com raízes cada vez mais profundas,
camada de terra após camada, tempo passado,
rumo ao calor, e calculas já estar a meio caminho.
Depressa deixas de sentir as toupeiras, minhocas
ou raízes de outros seres, tetra-cego das cavernas
na sua noite infinita. O frio é cada vez maior.
Não sabes se consegues crescer a distância necessária
para encontrares o magma. Estás só, mas a caminho.
Tradução de Maria Leonor Raven-Gomes.
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segunda-feira, 14 de abril de 2014
domingo, 13 de abril de 2014
Eucanaã Ferraz, "O doido"
Diziam, verdade ou não, que fora rico e são
e que a despeito dos bens que possuíra
acabara endividado, falido e torto. Talvez
por isso, embora miserável a cabeça
reta, o andar
de quem governa e pisa terra extensa e sua
em perambular sob o sol absoluto,
absorvido sabe-se lá por que delírios.
Absolvido sabe-se lá por que delírios,
insultava o vento e o vazio numa agitação
de cabelos e palavras e era comum
vê-lo penteando com seus dedos
encardidos a água das praias,
como se província sua,
como sua líquida mulher ou filha.
Viveu assim, entre feridas e piolhos,
até que desceu anoite
e uma pedra veio busca-lo.
sábado, 12 de abril de 2014
Mário de Sá-Carneiro, "Aquel'outro"
O dúbio mascarado - o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito.
O Rei-lua postiço, o falso atónito -
Bem no fundo, o covarde rigoroso.
Em vez de Pajem, bobo presunçoso.
Sua Alma de neve, asco dum vómito.
Seu ânimo, cantado como indómito,
Um lacaio invertido e pressuroso.
O sem nervos nem ânsia – o papa-açorda*,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal.
O raimoso, corrido, o desleal,
O balofo arrotando Império astral:
O mago sem condão - o Esfinge Gorda.
* Papa-açorda - s.m. Pessoa indolente, mole, palerma.
* Papa-açorda - s.m. Pessoa indolente, mole, palerma.
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sexta-feira, 11 de abril de 2014
quinta-feira, 10 de abril de 2014
António Osório, "Os cães"
Os cães, tantos. Sem cuidarem
da torpeza
lambem as nossas mãos.
Misteriosa religião a deles.
O rosto do seu Deus não temem
e contemplam lado a lado.
Nem a Moisés tal foi consentido.
quarta-feira, 9 de abril de 2014
José Gomes Ferreira, "Serenata cínica para o Bettencourt cantar"
Menino que vais na rua,
não cantes nem chores: berra!
Cospe no céu e na lua
e aprende a pisar a terra.
Aprende a pisar o mundo.
Deixa a lua aos violinos
dos olhos dos vagabundos
e dos poetas caninos.
Aprende a pisar a vida.
Deixa a lua às costureiras
- pobre moeda caída
de quem não tem algibeiras.
Aprende a pisar no chão
o silêncio do luar
sem sentir no coração
outras pedras a gritar.
Pisa a lua sem remorsos,
estatelada no solo...
Não hesites! quebre os ossos
dessa criança de colo.
Pisa-a, frio, com coragem,
sem olhos de serenata;
que isso que vês na paisagem
não é ouro nem é prata.
Menino que vais na rua,
não chores, nem cantes: berra!
ou então, salta pra lua
e mija de lá na terra.
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terça-feira, 8 de abril de 2014
segunda-feira, 7 de abril de 2014
Sophia de Mello Breyner Andresen, "Camões e a tença"
Tu irás ao paço. Irás pedir que a tença*
Seja paga na data combinada
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce
Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou mais ser que a outra gente
E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto
Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência
Este país te mata lentamente
* tença - Pensão dada em remuneração de serviços.
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domingo, 6 de abril de 2014
Sidônio Muralha, "Romance"
Depois daquela noite os teus seios incharam;
as tuas ancas alargaram-se;
e os teus parentes admiraram-se
e falaram, e falaram...
Por que falaram duma coisa tão bela,
tão simples, tão natural?
Tu não parias uma estrela,
nem uma noite de vendaval...
Mas tudo terminou porque falaram.
Tu fraquejaste e tudo terminou.
- Os teus seios desincharam;
só a tristeza ficou.
Ficou a tristeza duma coisa tão bela,
tão simples, tão natura...
- Tu não parias uma estrela,
nem uma noite de vendaval...
sábado, 5 de abril de 2014
sexta-feira, 4 de abril de 2014
Herberto Helder, "Não sei como dizer-te..."
Não sei como dizer-te que a minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e casta.
Não sei o que dizer, especialmente quando os teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e tu estremeces como um pensamento chegado. Quando
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima,
– eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.
Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
o coração é uma semente inventada
em seu ascético escuro e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a minha casa ardesse pousada na noite.
– E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes caem no meio do tempo,
– não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.
Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço –
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra vai cair da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me falta
um girassol, uma pedra, uma ave – qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.
quinta-feira, 3 de abril de 2014
Antônio Carlos Secchin
"Arte"
a Antônio Cicero
Poemas são palavras e presságios,
pardais perdidos sem direito a ninho.
Poemas casam nuvens e favelas
e se escondem após no próprio umbigo.
Poemas são tilápias e besouros,
ar e água à beira de anzóis e riscos.
São begônias e petúnias,
isopor ou mármore nas colunas,
rosas decepadas pelas hélices
de voos amarrados ao chão.
Resto do que foi orvalho,
poema é carta fora do baralho,
milharal virando cinza
pelo fogo do espantalho.
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quarta-feira, 2 de abril de 2014
terça-feira, 1 de abril de 2014
Carlos Machado, "Garrafa de náufrago"
não procures
teus objetos perdidos
nas gavetas
do implausível
tua aliança de ouro
que caiu no mar
(ou no bar?)
o guarda-chuva esquecido
no ônibus
o bibelô de estimação
que abriu a terra e sumiu
não busques a sombra
desses fantasmas:
os ácidos do tempo
diluíram tudo
guarda apenas
em tua caderneta de campo
que um dia tiveste
um anel
um guarda-chuva ou
um bibelô de estimação
e se quiseres terminar
a história com
um toque melodramático
escreve um bilhete
e lança no Tietê
uma garrafa de náufrago
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