terça-feira, 30 de setembro de 2014

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Raul de Leoni












"Confusão"

Alma estranha esta que abrigo,
Esta que o Acaso me deu,
Tem tantas almas consigo,
Que eu não sei bem que sou eu.

Jamais na vida consigo
Ter de mim o que é só meu;
Para supremo castigo,
Eu sou meu próprio Proteu.

De instante a instante, a me olhar
Sinto um pesar profundo,
A alma a mudar ... a mudar ...

Parece que estão, assim,
Todas as almas do Mundo
Lutando dentro de mim.


Proteu  é um deus da mitologia grega. Por ter o dom de adivinhar o futuro, atraía muitas pessoas. Mas por não gostar de contar suas premonições, quando algum humano se aproximava, ele fugia ou assumia aparências monstruosas.

domingo, 28 de setembro de 2014

Donizete Galvão, "Lição de casa"


                    I

Primeiro ano do ginásio.
Leitura: Mudanças.
Autor: Paulo Mendes Campos.
Comentar a seguinte frase:
Viver é colecionar ruínas.

                   II

Oh, sim
a cidade está lá.
Toda manhã, o sol
passa entre as folhas da piteira
e ilumina a sala de aula.
Continuam lá
as ruas de paralelepípedos,
os botequins de cachaça,
as lojas com seus algodões e chitas.
Para quem partiu
a cidade é só um estilhaço.
E não há passagem de volta
que cole esse cenário em ruínas.

                  III

Vinte anos depois.
Lição aprendida.

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Al Berto

















"Notas para o diário"

deus tem que ser substituído rapidamente por poemas,
sílabas sibilantes, lâmpadas acesas, corpos palpáveis,
vivos e limpos.
 a dor de todas as ruas vazias.


sinto-me capaz de caminhar na língua aguçada deste
silêncio. e na sua simplicidade, na sua clareza, no seu abis
mo.
sinto-me capaz de acabar com esse vácuo, e de aca-
bar comigo mesmo.


a dor de todas as ruas vazias.

mas gosto da noite e do riso de cinzas. gosto do
deserto, e do acaso da vida. gosto dos enganos, da sorte e
dos encontros inesperados.
pernoito quase sempre no lado sagrado do meu coração,

ou onde o medo tem a precariedade doutro corpo.

a dor de todas as ruas vazias.

pois bem, mário – o paraíso sabe-se que chega a lisboa
na fragata do alfeite. basta pôr uma lua nervosa no
cimo do mastro, e mandar arrear o velame.

é isto que é preciso dizer: daqui ninguém sai sem
cadastro.


a dor de todas as ruas vazias.
sujo os olhos com sangue. chove torrencialmente. o
filme acabou. não nos conheceremos nunca.


a dor de todas as ruas vazias.

os poemas adormeceram no desassossego da idade.
fulguram na perturbação de um tempo cada dia mais
curto. e, por vezes, ouço-os no transe da noite. assolam-me
as imagens, rasgam-me as metáforas insidiosas, porcas. ..e
nada escrevo.
o regresso à escrita terminou. a vida toda fodida – e
a alma esburacada por uma agonia tamanho deste mar.


a dor de todas as ruas vazias.

quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Ferreira Gullar

 













"Ouvir vozes"

          O poeta Décio Victorio, meu velho e querido amigo que você não conhece, que quase ninguém conhece e que não quer ser conhecido, trabalhou certa época como acompanhante de pacientes do Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro. Trabalhava no pátio da clínica, onde os internados passavam boa parte do dia entregues a suas fantasias, falando sozinhos ou andando à toa. Décio, responsável e solidário, fazia tudo para ajudá-los, e foi com esse propósito que pediu a Aniceto que lhe fizesse um terno. Aniceto fora alfaiate de profissão até o dia em que a mulher o abandonou e ele sofreu um surto que já durava 20 anos. Ele aceitou a proposta de Décio, que, no dia seguinte, já lhe entregava um corte de brim para que pusesse mãos à obra. Ocorreu que, naquele mesmo dia, um avião passou sobre o pátio e “disse” a Aniceto que o paciente sentado ali a seu lado é que tinha lhe roubado a mulher. Sem hesitar, o alfaiate traído saltou sobre o acusado, disposto a estrangulá-lo. Os enfermeiros acudiram e, depois de dominá-lo, aplicaram-lhe um sossega-leão.

           Como advertia minha avó Teca, não se deve dar crédito a tudo o que se ouve, especialmente se dito por um avião. Mas esse é um conselho a que as pessoas não costumam dar ouvidos. Já antes de Homero, os gregos atribuíam aos oráculos o dom de não só dizer a verdade como até de adivinhar o futuro. Às vezes eram as sibilas, que falavam coisas incompreensíveis, mas, antes delas, o povo dava ouvidos ao rumorejar das águas de um riacho que corria entre as raízes de um carvalho e até mesmo ao farfalhar das folhas desse carvalho tido como sagrado. Ali estava um sacerdote para decifrar a mensagem das águas ou dos ramos, como também decifrava o que diziam, em transe, as sibilas do Oráculo de Delfos.

           Mas de onde vem essa crença de que vozes incompreensíveis estão dizendo verdades? Talvez venha da necessidade que temos de conhecer a verdade última, de antever o futuro, de decifrar o mistério da existência. Essa é uma questão complicada que envolve a própria natureza da linguagem verbal, veículo do logos; essa linguagem, que torna inteligível o real, não satisfaz entretanto nossa necessidade de decifrá-lo e, por isso, quem sabe nos induza a admitir que a linguagem hermética contém a expressão do mistério – seja a expressão dele. De qualquer modo, por ser hermética, necessita de um tradutor, ou seja, do sacerdote que diz entendê-la e decifrá-la.

           Essa pode ser a razão por que, não apenas a gente simples acreditava no que diziam os oráculos, mas também um filósofo como Heráclito de Éfeso para quem, naquela voz, falava um deus: “E a Sibila que, de sues lábios delirantes, diz coisas sem alegria, sem ornamento e sem perfume, atinge com sua voz além de mil anos, graças ao Deus que nela está.”é certo também que, num aforismo seguinte, ele adverte que “os olhos são testemulhas mais exatas que os ouvidos”.

           Os ouvidos enganam, nos dão a possibilidade de crer no inexplicável, o que é um modo, senão de entendê-lo, ao menos de assimilá-lo. Assim, acreditamos que certos ruídos ou sons naturais também são manifestações de alguma entidade superior. Para nossos índios, por exemplo, o trovão era a voz de Tupã, uma manifestação de sua zanga, enquanto para outras gentes, os uivos do vento nas noites de tempestade soavam como os lamentos de almas penadas. O temor pode nos vir também da garganta de um pássaro, como por exemplo daquele que, na São Luís de minha infância, era conhecido por Rasga Mortalha e que passava gritando assustador, à noite, sobre o telhado de nossa casa.

           Dependendo de quem as ouve, muito podem as palavras, especialmente quando ditas por um corvo (Never more) que fale inglês ou por um papagaio que fale tupi-guarani, como no caso que nos conta Pedro de Magalhães Gandavo em sua “História da Província Santa Cruz” (1576). Os guerreiros de uma tribo invadiram uma aldeia inimiga, trucidando seus moradores, mas quando já estavam a um passo da vitória definitiva, ouviram algumas palavras ditas por um papagaio, tomaram-se de pavor e saíram correndo todos.

           É verdade que o avanço do conhecimento empírico, a descoberta das causas dos fenômenos naturais, veio pouco a pouco calando aquelas vozes, retirando-lhes o significado oracular ou meramente assustador. Os poetas – e os pirados - , não obstante, continuam a dar a elas outros significados que os dos oráculos ou, no dizer de Mallarmé, emprestam “um sentido novo às palavras da tribo”. Augusto dos Anjos, com freqüência, ouvia a voz do próprio incriado, a que chamou de “Último Número”, o qual, atro e subterrâneo, bradou a seus ouvidos: “Não te abandono mais, morro contigo”.

           Eu também, modéstia à parte, às vezes ouço vozes, muitas vozes, mas nada assustadoras: vozes inofensivas de perfumes e manhãs, de sabores, de olhares, de peles, de um roçar de cabelos – um alarido que me dorme abafado no corpo. Os poetas não são sacerdotes, mas podem à sua maneira entender o que fala o vento nas folhas, como Fernando Pessoa, para quem “a brisa / nos ramos diz / sem o saber / uma imprecisa / coisa feliz”.

 
Crônica publicada no jornal Folha de São Paulo, em 13 de novembro de 2005.
 

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Raul de Leoni, "História antiga"


No meu grande otimismo de inocente,
Eu nunca soube por que foi... um dia,
Ela me olhou indiferentemente,
Perguntei-lhe por que era... Não sabia...

Desde então, transformou-se de repente
A nossa intimidade correntia
Em saudações de simples cortesia
E a vida foi andando para frente...

Nunca mais nos falamos... vai distante...
Mas, quando a vejo, há sempre um vago instante
Em que seu mudo olhar no meu repousa,

E eu sinto, sem, no entanto compreendê-la,
Que ela tenta dizer-me qualquer cousa,
Mas que é tarde demais para dizê-la...
 

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Alberto da Costa e Silva, "Murmúrio"

 
Meu pai,
a tua essência
superou
o tempo
e a sorte:

deixaste
atrás de ti
alguém
que ficou
a morrer.
 

sábado, 20 de setembro de 2014

Fiama Hasse Pais Brandão, "Perguntai ao muro"


Muro, em que meditas,
ao longo da estrada, por estas quintas,
casas, ermos, entre paixões
de alma dos espectros
presentes e vindouros? E os vivos,
porque se escondem
por trás da tua fronte alta,
quieta, seca, que cobiça os astros,
sem saber que o teu corpo
de xisto corre, avança,
mas não pode soltar-se da Terra
e alcançar o Alto?

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Paul Verlaine





















"As mãos que foram minhas..."

As mãos que foram minhas, mãos
Tão bonitas, mãos tão pequenas,
Após tanto equívoco e penas,
Tantos episódios pagãos,

Após os exílios medonhos,
Ódios, murmurações, torpezas,
Senhoris mais do que as princesas
As caras mãos abrem-me os sonhos.

Mãos no meu sono e na minh'alma,
Pudera eu, Ó mãos celestes,
Adivinhar o que dissestes
A est'alma sem pouso nem calma!

Mente-me acaso a visão casta
De espiritual afinidade,
De maternal cumplicidade
E de afeição estreita e vasta?

Caro remorso, dor tão boa,
Sonhos benditos, mãos amadas,
Oh essas mãos, mãos consagradas,
Fazei o gesto que perdoa!

Tradução de Manuel Bandeira.

 

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Florbela Espanca













"Perdi..."

Perdi os meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defende-los;
Quebrei minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los?
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de oiro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...


terça-feira, 16 de setembro de 2014

Mário Pederneiras, "Suave caminho"


Assim... Ambos assim, no mesmo passo,
iremos percorrendo a mesma estrada;
tu - no meu braço trêmulo amparada,
eu - amparado no teu lindo braço.

Ligados neste arrimo, embora escasso,
venceremos as urzes da jornada.
E tu - te sentirás menos cansada,
e eu - menos sentirei o meu cansaço.

E, assim, ligados pelos bens supremos,
que para mim o teu carinho trouxe,
placidamente pela vida iremos,

calcando mágoas, afastando espinhos,
como se a escarpa desta vida fosse
o mais suave de todos os caminhos.

 

segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Edward Hopper, "Aves noturnas"













Detalhes do quadro:

O casal:











O homem de costas:


















O garçom:










domingo, 14 de setembro de 2014

Vera Lúcia de Oliveira, "O corpo"


lavava o corpo dele com a alma nas mãos
ia tateando a carne fria que tanto amara e
odiara agora nada mais ficara senão
aquela pena nos músculos inertes
que tanto ela vira vibrar e arfar
de prazer e dor

sábado, 13 de setembro de 2014

Paulo Henriques Britto, "Nem o tempo ..."


Nem o tempo e seu assédio
nem o cálculo frio dos sentimentos
nem a lâmina rombuda do tédio
nem o corpo e seus humores vários
e suas untuosas exigências

- nada pode aplacar a paixão
que não recua ante o supremo horror
de serem as coisas tudo e só o que são.
A pele é fina, a carne é permeável.
É duro o amor.

sexta-feira, 12 de setembro de 2014

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Manoel Carlos, "A ceia do ano novo"


O encontro é aqui mesmo. A hora é esta.
A mesa com os talheres já está posta.
Que entrem os convidados deste festa,
que cada um vai ter do que mais gosta.

Qual de vocês prefere o coração,
razão dos meus delírios e fracassos?
Quem quiser a cabeça que erga a mão.
Eu mesmo vou servir os meus pedaços.

Coxas, espáduas, vértebras e braços,
regados do meu sangue, distribuídos
a quem me uni por diferentes laços.

Mas meus sonhos de amor e beleza
que nunca chegaram nunca a ser vividos,
não estarão servidos nesta mesa.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

Hilda Hilst, "XXXI dos Cantares de Perda e Predileção"


Barcas
Carregando a vida
Descendo as águas.
Passam pesadas
Distantes do poeta e de sua caminhada.

Barcas
Inundadas de afago
Nas águas da meiguice.
O fulgor dos cascos
Ilumina o dorso dos afogados:
Eu soterrada
Em aguaduras escuras da velhice.

Barca é o teu nome.
E passas.
Candente, clara
Navegas tua última viagem
Sobre o corpo molhado de palavras.

terça-feira, 9 de setembro de 2014

segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Herberto Helder, "a última bilha de gás..."


a última bilha de gás durou dois meses e três dias,
com o gás dos últimos dias podia ter-me suicidado,
mas eis que se foram os três dias e estou aqui...
e só tenho a dizer que não sei como arranjar dinheiro para
                                                                          [outra bilha,
se vendessem o gás a retalho comprava apenas o gás da
                                                                              [morte,
e mesmo assim tinha de comprá-lo fiado,
não sei o que vai ser da minha vida,
tão cara, Deus meu, que está a morte,
porque já me não fiam nada onde comprava tudo,
mesmo coisas rápidas,
se eu fosse judeu e se com um pouco de jeito isto por
                                                       [aqui acabasse nazi,
já seria mais fácil,
como diria o outro: a minha vida longa por muito pouco,
uma bilha de gás,
a minha vida quotidiana e a eternidade que já ouvi dizer
                                                        [que a habita e move,
não me queixo de nada no mundo senão do preço das
                                                               [bilhas de gás,
ou então de já mas não venderem fiado
e a pagar um dia a conta toda por junto:
corpo e alma e bilhas de gás na eternidade
- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora,
países inteiros cheios de gás por baixo!

domingo, 7 de setembro de 2014

Jorge de Sena, "Ser um grande poeta"


Ser um grande poeta
morto e nacional
é atrair as moscas
como idiotas e
os idiotas como
moscas.

Ser um poeta medíocre
vivo e universal
é atrair os catedráticos
de literatura como
idiotas e moscas.

Ser um poeta apenas
nem vivo nem morto
ou nacional ou universal
é atrair apenas os poetas
como moscas idiotas.

Moralidade: não há saída.

sábado, 6 de setembro de 2014

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Ildásio Tavares, "Soneto dominical"

 
Já não me aflige mais a pasmaceira
do domingo. Meus filhos mundo afora
e eu em casa pensando. A vida inteira
ensina-me a ser só. Não é agora

que eu hei de reclamar. Segunda-feira
há de chegar. Há de chegar a hora
em que se apague a chama derradeira;
em que a vida me diga: vá-se embora.

Tudo tão natural. A árvore morta
já não abriga pássaros nos ramos
que, pouco a pouco, vão caindo ao chão.
 
Amei mal as mulheres. Mais amamos
nós mesmos, nosso ofício. Pouco importa
a vida; este domingo; a solidão.
 

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Alexei Bueno












"Espólio"

No fim de tudo, quando os adorados
Membros forem torrões no pó incrustados,
Quando os móveis tiverem, muito antigos,
Dado ceia aos cupins, fogo aos mendigos,
Quando os papéis rolarem já nas poças
E o chão pisarem nem nascidas moças,
Quando outras gerações, sem nome nosso,
Olharem para o céu sempre em esboço,
E os restos nossos, sem que a vida atine,
Dormirem num promíscuo de vitrine,
Sem um vínculo mais, um gesto, um preço,
Sem mesmo as casas, sem seu endereço
Também mudado já, sem um resquício
Do nosso rude amor, nosso suplício,
Então só sobrarão, no tempo emersos,
Uns versos, como sempre, uns rijos versos.

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Luís Antonio Cajazeira Ramos, "Véspera do dia dos mortos"


Eu não amei meu pai como devia.
Houve o dia de amá-lo e não o amei.
Ele morreu, e não nasci ainda.
Amanhã levantei sem seu amor.

Nenhum conselho amigo soa seu.
Uma vida padrasta me acompanha.
Meu caminho não quis olhar pra trás.
Tão longe de meu pai me abandonei.

Nem meu, nem de ninguém, nunca fui seu.
Não me quis dar a quem eu estranhava.
Só teu colo, mamãe, era aconchego.

Do pai resta-me um calo de silêncios.
Ai, arranco do peito o corpo estranho.
Coração, cava o chão, busca meu pai.

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Antônio Carlos Secchin, "Cisne"


                                                     À memória de Cruz e Souza
                                                                       A Iaponan Soares

Vagueia, ondula, indomado e belo, 
um cisne insone em solitário canto. 
Caminha à margem com a plumagem negra, 
em meio a um bando de pombas atônitas. 


 Encontra um outro, de alvacentas plumas, 
um ser sagrado no monte Parnaso, 
e enquanto o branco vai vencendo a bruma 
ele naufraga, bêbado de espaço. 


 Em vão indaga, o olhar emparedado 
na vertigem da luz que o sol encerra: 
"Se em torno tudo é treva, tudo é nada, 


como sonhar azul em outra esfera?" 
Negro cisne sangrando em frente a um poço. 
Do alto, um Deus cruel cospe em seu rosto.