sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Abgar Renault, "A vida tem uma faca na mão"


Vamos parar de ler. Paremos de escrever.
Olhos e mãos circulam no papel
ao serviço da dor e da desgraça,
mas as palavras são frias e sem fel
para exprimir o desespero dessa taça.
Ninguém sabe escrever. E ninguém pode ler
o que fica, depois de tanta luta fútil,
a escuridão desvirginada do teu ser
na indiferença de uma folha de papel.
Hoje, ontem, amanhã — amanhã sobretudo —
a vida sempre tem uma faca na mão,
vai sob as unhas, vai direto ao coração,
dói nos olhos, nos pés, dói na alma, dói em tudo,
torna toda a poesia um jogo raso e inútil.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Marilyn Monroe, "Foto de Richard Avedon"

Greta Benitez, "89"


Sou tão velha que meus amantes já são nomes de ruas
Sou tão velha que minhas vontades já estão nuas
Sou tão velha que minhas verdades já são as suas.

Eu sou do tempo em que se fumava no cinema.

Sou tão velha que minha voz agora é boa para ler um poema.

Sou livre:
Posso fazer o que quiser que ninguém liga.

Parte de mim
Mora numa foto antiga.


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Abu Al Hasan Al Husri, "O luto na Andaluzia"


Se na Andaluzia
branca é a cor
dos trajes de luto
- é justa coisa.

Não me vês, a mim,
vestido de cabelos brancos,
porque de luto estou
pela juventude?


ABU AL HASAN AL HUSRI, também conhecido como "o cego", foi um poeta árabe durante a ocupação muçulmana na península ibérica.

Dele se conservou apenas este poema.

Morreu em 1095.

Traduzido do árabe para o espanhol por Emilio Garcia Gómez, e do espanhol para o português por Fernando Couto.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Gilka Machado, "Sensual"


Quando, longe de ti, solitária, medito
neste afeto pagão que envergonhada oculto,
vem-me às narinas, logo, o perfume esquisito
que o teu corpo desprende e há no teu próprio vulto.

A febril confissão deste afeto infinito
há muito que, medrosa, em meus lábios sepulto,
pois teu lascivo olhar em mim pregado, fito,
à minha castidade é como um  insulto.

Se acaso te achas longe, a colossal barreira
dos protestos que, outros, eu fizera a mim mesma
de orgulhosa virtude, erige-se altaneira.

Mas, se estás ao meu lado, a barreira desaba,
e sinto da volúpia a ascosa e fria lesma
minha carne poluir com repugnante baba...

sábado, 21 de fevereiro de 2015

André Ricardo Aguiar, "Longe daqui, aqui mesmo"


Diz-se que um poeta morre
de um grande amor
e cem mil vezes ressuscita em poema.

Trêfego engano, caro leitor
- basta um porre,
uma faxina, um pouco de estricnina

(o poema que estrebuche
de dor, lá longe
nas razões da oficina).

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Fernando Pessoa, "Aquilo que agente lembra"


Aquilo que a gente lembra
Sem o querer lembrar,
E inerte se desmembra
Como um fumo no ar,
É a música que a alma tem,
É o perfume que vem,
Vago, inútil, trazido
Por uma brisa de agrado,
Do fundo do que é esquecido,
Dos jardins do passado

Aquilo que a gente sonha
Sem saber de sonhar,
Aquela boca risonha
Que nunca nos quis beijar,
Aquela vaga ironia

Que uns olhos tiveram um dia
Para a nossa emoção —
Tudo isso nos dá o agrado,
Flores que flores são
Nos jardins do passado

Não sei o que fiz da vida,
Nem o quero saber
Se a tenho por perdida,
Sei eu o que é perder?
Mas tudo é música se há
Alma onde a alma está,
E há um vago, suave, sono,
Um sonho morno de agrado,
Quando regresso, dono,
Aos jardins do passado.

 

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Manuel Bandeira


 










"Poema de uma Quarta-feira de Cinzas"

Entre a turba grosseira e fútil
um pierrot doloroso passa.
Veste-o uma túnica inconsútil
feita de sonho e de desgraça…

O seu delírio manso agrupa
atrás dele os maus e os basbaques.
Este o indigita, este outro apupa…
indiferente a tais ataques,

Nublada a vista em pranto inútil,
dolorosamente ele passa.
Veste-o uma túnica inconsútil,
feita de sonho e de desgraça…

 

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

W.B.Yeats, "Para um amigo cujo trabalho deu em nada"


Agora sabe-se toda a verdade,
Sê reservado e aceita a derrota
De qualquer garganta sem vergonha,
Pois como podes tu competir,
Sendo educado na honra, com alguém
Que, se se provasse que mente,
Não se sentiria envergonhado nem aos seus
Olhos nem aos dos vizinhos?
Educado para uma tarefa mais dura
Do que o Triunfo, afasta-te
E como uma corda sorridente
Tocada por dedos loucos
No meio de um lugar de pedra,
Sê misterioso e exulta,
Porque acima de tudo
Isso é o mais difícil.

Tradução de Maria de Lourdes Guimarães e  Laureano Silveira.

Copiado do site  https://autoreselivros.wordpress.com/

 

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

João da Cruz e Souza, "Ódio sagrado"


Ó meu ódio, ódio majestoso,
Meu ódio santo e puro e benfazejo,
Unge-me a fronte teu grande beijo,
Torna-me humilde e torna-me orgulhoso.

Humilde, com os humildes generoso,
Orgulhoso com os seres sem Desejo,
Sem Bondade, sem fé e sem lampejo
De sol fecundador e carinhoso.

Ó meu ódio, meu lábaro bendito,
De minh'alma agitada no infinito,
Através de outros lábaros sagrados.

Ódio são, ódio bom! sê meu escudo
Contra os vilões do Amor, que infamam tudo,
das sete torres dos mortais pecados!

Nana Caymmi, "Ternura Antiga", de Dolores Duran e J.Ribamar.


Antônio Parreiras, "Iracema"

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Ruy Belo, "Poema de carnaval"


Eu estava só naquela tarde e tu vieste
de dentro povoar-me de cidade o coração
prometido para o lugar
onde costumamos deixar as palavras
Tinham  posto de novo fitas nas árvores
reuniram-se os corpos e as vozes
para todos juntos sentirem
pontualmente  a alegria
E tu pousaste então ó meu pássaro naquele coração
cingido no meio da cidade

sábado, 14 de fevereiro de 2015

e.e. cummings, "Poema 25"


Pedaços (na mais escura
quanto pequena é a mais suja
última rua
de qualquer cidade) de espelho

todos no chão (por que
se diz que dá
azar quebrar um espelho?)
cheios de céu

Tradução de Ferreira Gullar

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

Cruz e Souza, "Sorriso interior"


O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranquila.

Os abismos carnais da triste argila
Ele os vence sem ânsias e sem susto...
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

António Gomes Leal, "Acusação à Cruz"


Há muito, ó lenho triste e consagrado!
Desfeita podridão, velho madeiro!
Que tens avassalado o mundo inteiro,
Como um pendão de luto levantado.

Se o que foi nos teus braços cravejado
Foi realmente a Hóstia, o Verdadeiro,
Ele está mais ferido que um guerreiro
Para livrar das flechas do Pecado.

Há muito já que espalhas a tristeza,
Que lutas contra a alegre Natureza,
E vences, ó Cruz triste! Cruz escura!

Chega-te o inverno, símbolo tremendo!
Queremos vida e Ação - Fica-te sendo
Um emblema de morte e sepultura.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Alessandra Cantero, "não apenas matar"


não apenas matar
mas
esganar
trucidar
mutilar no abate
para que não volte

ressurrecta

depois de 3 dias
essa saudade

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Murilo Mendes, "O homem, a luta e a eternidade"


Adivinho nos planos da consciência
dois arcanjos lutando com esferas e pensamentos
mundo de planetas em fogo
vertigem
desequilíbrio de forças,
matéria em convulsão ardendo pra se definir.
Ó alma que não conhece todas as suas possibilidades,
o mundo ainda é pequeno pra te encher.
Abala as colunas da realidade,
desperta os ritmos que estão dormindo.
À guerra! Olha os arcanjos se esfacelando!

Um dia a morte devolverá meu corpo,
minha cabeça devolverá meus pensamentos ruins
meus olhos verão a luz da perfeição
e não haverá mais tempo.
 
 

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Juliana Bernardo, "Referências"


uma árvore fina se balança
aos pés dos edifícios

não suponham reverências
na sua grande ironia:
ter os pés no chão não a impede
de se sacudir na ventania.
 
 

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Dr. Drauzio Verella, "A felicidade de Margô"


    
Quando voltou para casa às quatro da madrugada, Margô estava feliz como quase nunca.

–Eu devia ter desconfiado. Felicidade, assim, na minha vida?

Nascida na periferia de Feira de Santana, havia experimentado com a mãe e os quatro irmãos as agruras da penúria, desde que o pai decidiu tentar a sorte em Serra Pelada e sabe lá em quantos garimpos do Norte.

Aos oito anos, conseguiu emprego de doméstica. Na casa dos patrões varria, tirava pó, arrumava as camas, lavava os banheiros e o quintal.

–Se a patroa passasse a mão numa prateleira e encontrasse um cisco ia me buscar pela orelha.

Quando completou 15 anos, um vizinho a surpreendeu com a boca no sexo de um rapaz das redondezas. A vida virou um inferno:

–Debochavam e me xingavam na rua. A molecada me passava a mão na bunda e corria.

Intimidada, trancou-se em casa, mas quando saía para o trabalho não escapava das agressões, que suportava calada. Na tarde em que xingou a mãe de três marmanjos que a humilharam quando passou na frente de um botequim, apanhou até ficar com o rosto deformado.

O episódio causou tamanha revolta em seu espírito, que resolveu andar com uma faca de cozinha no cinto.

Duas semanas mais tarde, viu dois dos agressores na porta do mesmo bar. Mudou de calçada, mas eles atravessaram a rua, queriam saber se a putinha não tinha ficado feliz com os carinhos recebidos.

De cabeça baixa, ela tentou seguir em frente, mas eles impediram. O mais magro caiu na primeira facada, o outro ainda quis reagir antes de levar a segunda.

Margô fugiu para Salvador, atrás da boate em que trabalhava uma amiga de infância, a única pessoa que conhecia na capital.

Em Salvador, as duas foram presas por assaltar clientes que atraíam para as espeluncas mais sórdidas da cidade baixa. Passou dois anos e oito meses em celas apinhadas.

Seis meses mais tarde, estava presa outra vez. Pegou três anos. Libertada, veio para São Paulo.

–Tinha que mudar, vivia metida em confusão. Não levava desaforo para casa. A polícia não largava do meu pé.

Na cidade grande, começou a vida na prostituição de rua. Não lhe faltavam clientes. Morava com quatro colegas de trabalho, num prédio decadente na esquina da General Osório com Santa Ifigênia, no coração da antiga Boca do Lixo.

Passou mais uma temporada na cadeia. Quando saiu, jurou que nunca mais voltaria para trás das grades.

Amparada pelos dotes físicos, pôde frequentar um inferninho nas imediações da Augusta. Com o acesso à clientela mais endinheirada, alugou uma quitinete para ficar distante das fofocas e das contravenções das companheiras de moradia.

Uma noite, o dono da boate lhe fez uma oferta:

–Você é a única da casa que não usa cocaína. Trabalha aqui há dois anos e nunca deu alteração. Estou precisando de ajuda.

Margô quase caiu de costas quando recebeu o convite para gerenciar a casa. Aos 35 anos, teria carteira assinada e um salário quase igual ao da prostituição.

No primeiro dia colocou o vestido mais festivo e chegou na boate bem antes de abrir. Recebeu as orientações do patrão e uma mesa no escritório dos fundos.

–Uma mesa cheia de gavetas só para mim.

Estava radiante no caminho de casa às quatro da madrugada daquele dia. Empolgada com o trabalho, só lembrou da fome quando passou pelo bar da esquina de casa. Sentou num banquinho do fundo do balcão e pediu peito de frango grelhado, com arroz e salada de tomate, o prato predileto.

Nessa hora entrou Bentão, ex-policial que extorquia os comerciantes da área. Com andar de bêbado, veio na direção dela:

–Onde pensa que vai o veado com esse vestido de lantejoula?

Margô abaixou a cabeça, brigar naquela noite era o que menos desejava. O brutamontes insistiu:

–Não vou com a tua cara, seu traveco de merda.

Ela continuava cabisbaixa quando levou o soco que lhe abriu o supercílio. Sangrando, correu para a quitinete, sentou na cama e chorou feito criança.

–Logo quando eu estava feliz.

Tinha um lenço amarrado na testa quando voltou ao bar. Entretido com o copo de conhaque, o ex-policial só se deu conta da aproximação quando o punhal lhe penetrou as costas pela primeira vez.


Crônica publicada no jornal "Folha de São Paulo", em 24 de janeiro de 2015.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Al Berto, "Visita-me enquanto não envelheço"


visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne* a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te

* Jeanne Hébuterne foi a companheira de Modigliani, e mãe da sua única filha.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

José Paulo Paes, "O grito"


Um tranquilo riacho suburbano,
Uma choupana em baixo de um coqueiro,
Uma junta de bois e um  carreteiro:
Eis o pano de fundo e, contra o pano,

Figurantes - cavalos, cavaleiros,
Ressaltando o motivo soberano,
A quem foi reservado o maio plano
Onde avulta, solene e sobranceiro.

Complete-se a pintura mentalmente
Com o grito famoso, postergando
Qualquer simbologia irreverente.

Nem se indague do artista, casto obreiro
Fiel ao mecenato e ao seu comando,
Quem o povo, se os bois, se o carreteiro.


O poeta refere-se ao quadro Independência ou Morte, de Pedro Américo.