terça-feira, 31 de maio de 2016

Lúcio Cardoso, "Havia naquele tempo outras praias..."


Havia naquele tempo outras praias
e os nomes soavam aos nossos ouvidos
Nortina - Folha da Inveja - La Negra
como pontos ancorados ao sonho.
Onde ficam as praias selvagens
em que vimos meninos
e pensamos as primeiras fraudes
no encontro novo do amor...
E como tardos se faziam os caminhos
e as esquinas da espera;
onde eu me postava atento e solitário,
assim que me deixavas...

Existia o mar imenso e branco.
tanta luz não vinha ao pensamento,
todo entregue ao seu veneno.
Ah praias de outros tempos,
areias onde nos amamos como os chacais
e onde em madrugadas de dúvida
erramos sem alma e sem sentido.
Trago ainda os pés feridos
nas urzes - e as faces queimadas
desse sol que já não vejo...

Lembras-te? Tudo tem um nome
e a tristeza do passado
é a legenda que agora cubro
tristemente o teu nome.

segunda-feira, 30 de maio de 2016

Sérgio Milliet, "Encontro marcado"


Eu tinha encontro marcado
nas esquinas da minha vida.
Mas cheguei e não vi ninguém...
Agora eu vou pela calçada
sozinho, sozinho, sozinho...
Não tem mais esquina na vida
não tem mais encontro nem nada...
Será que meu amor se enganou
E só me espera no fim?

sábado, 28 de maio de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Soneto da negra"


                                                a Maria da Paixão

A cor da suavidade é que a modula.
Nela se abisma a luz e se revela
incapaz de alterar nada daquela
penumbra que a atrai, absorve, anula.

Nessa paisagem que coleia, ondula
como um rio, ou o mar (e é dela e ela),
um vento violento me desvela
um animal que me trucida e ulula.

O tom da suavidade não se altera,
eleva um canto cálido e me diz
que são garras de amor, e é bela a fera.

E assim, em carne rubra e cicatriz,
entrego à cor profunda que me espera
estes despojos em que sou feliz.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Adriano Espínola












"Lixeira"

a casca de ovo
&   de  banana
a   folha de jor
nal da  semana
p'daços de cou
ve & de tomate
a  história  que
não não houve
o gesto q ficou
pela  met   ade:
tudo isso úmido
tudo   isso  ido
doídoamassado
dentrode mim e
do saco de lixo

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Poema de Judith Teixeira e Desenho de Di Cavalcanti





















"Mais beijos"

Devagar...
outro beijo... ou ainda...
O teu olhar, misterioso e lento,
veio desgrenhar
a cálida tempestade
que me desvaira o pensamento!

Mais beijos!...
Deixa que eu, endoidecida,
incendeie a tua boca
e domine a tua vida!

Sim, amor..
deixa que se alongue mais
este momento breve!...
— que o meu desejo subindo
solte a rubra asa
e nos leve! 

terça-feira, 24 de maio de 2016











"É terrível! Mas o masculino..."

É terrível! Mas o masculino
sou eu havido em mim como um punhal sem solução.
Amo a destruição, o poder e a infâmia,
o forte e o sem piedade.
Amo o diabo. Não amo.

Danar-me na estrada,
como um cão foragido de graça;
danar-me como um comedor de terra
avaro e sem nome.
Danar-me como um artista
maior do que sua inspiração.
Danar-me como morte, como olvido,
como amizade ou como amor,
danar-me de tudo o que pressupõe
santo ou intocado.
Danar-me de mim mesmo
e ser um vento correndo o espaço - à noite, no espaço.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Patrícia Claudine Hoffmann, "Refúgios para guardar meu pai"


                                                                        in memoriam
A saudade desenha seus estiletes, pai.
De dentro para fora.

Teus molinetes, agora
ornamentam a casa
com inconformável beleza:
procuram tua pesca.

Nenhuma fresta entre nós.
Nenhuma isca.

Na antifesta de estar,
o mar desfeito
não comemora comigo:
estamos sós.

E não há pacto
de anzóis que capture
a precocidade de tua ausência
ou te devolva
como devolvíamos os peixes para a água.
— Lembras?

Apareceram uns cansaços nas paredes.
Onde antes teu descanso
sobre o dorso das redes,
agora memórias rendadas
avarandam a chuva
em chamamento.

Enquanto o vento motiva algum sol,
embala-me ainda teu riso
nos braços já fracos
da infância.

— As tarrafas cresceram, pai.
Ainda não aprendi a dobrá-las.


sábado, 21 de maio de 2016

Julio Cortázar, "O que eu gosto de teu corpo..."


O que eu gosto de teu corpo é o sexo.
O que eu gosto de teu sexo é a boca.
O que eu gosto de tua boca é a língua.
O que eu gosto de tua língua é a palavra.

Tradução amadora minha.


Lo que me gusta de tu cuerpo...

Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo.
Lo que me gusta de tu sexo es la boca.
Lo que me gusta de tu boca es la lengua.
Lo que me gusta de tu lengua es la palabra.


sexta-feira, 20 de maio de 2016

Jorge de Sena












"É Tarde, Muito Tarde da Noite"

É tarde, muito tarde da noite,
trabalhei hoje muito, tive de sair, falei com vária gente,
voltei, ouço música, estou terrivelmente cansado.
Exactamente terrivelmente com a sua banalidade
é o que pode dar a medida do meu cansaço.
Como estou cansado. De ter trabalhado muito,
ter feito um grande esforço para depois
interessar-me por outras pessoas
quando estou cansado demais para 
me interessarem as pessoas.

É tarde, devia ter-me deitado mais cedo,
há muito que devera estar a dormir.
Mas estou acordado com o meu cansaço
e a ouvir música. Desfeito de cansaço
incapaz de pensar, incapaz de olhar,
totalmente incapaz até de repousar á força de
cansaço. Um cansaço terrível
da vida, das pessoas, de mim, de tudo.
E fumo cigarro após cigarro no desespero
de estar tão cansado. E ouço música
(por sinal a sonata para violino e piano
de César Franck, e depois os Wesendonck Lieder)
num puro cansaço de dissolver-me
como Brunhilda ou como Isolda
no que não aceitarei nunca
l'amor che muove il sole e l'altre stelle.
Nada há de comum entre esse amor de que estou cansado,
e o outro que não ama, apenas queima e passa , e de cuja
dissolução no espaço e no tempo em que vivo
estou mais cansado ainda. Dissolvam-se essas damas
que eram princesas ou valquírias, se preferem, no eterno.
Eu estou cansado de não me dissolver
continuamente em cada instante da vida,
ou das pessoas, ou de mim, ou de tudo.
Qu ai-je á faire de l eternel? I live here.
Non abbiamo confusion. E aqui é que
morrerei danado de cansaço, como hoje estou
tão terrivelmente cansado.


quinta-feira, 19 de maio de 2016

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Adriano Espínola, "Mãe"


De terra a a tua voz,
de terra os teus gestos,

de terra a tua benção,
de terra a tua mágoa,

de terra os teus restos,
agora enraizados,

árvore crescendo
às avessas - lá onde

tudo começa e finda:
no silêncio do sangue

que me dói ainda.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Carlos Fernandes, "Ofertório"


Foi por vós, catecúmenos* sombrios 
Da excelsa religião do sentimento, 
Que de tudo num vago esquecimento 
Vaguei da morte pelos reinos frios; 

Buscando a essência em flor do sentimento 
Oculta nesses báratros* sombrios, 
Onde a voz tumular de ventos frios 
Geme o salmo de eterno esquecimento. 

Foi por vós que eu vivi nas outras vidas 
As sensações secretas, doloridas, 
Que sufocam os gritos na garganta, 

E é por vós que minh'alma aniquilada, 
Nos sudários do sonho amortalhada, 
Das próprias ruínas ressurgindo, canta. 

*Catecúmeno - s.m. Aquele que se instrui e se prepara para receber o batismo; noviço.
*Báratro - s.m. Precipício onde se jogavam os criminosos em Atenas, abismo, inferno.

domingo, 15 de maio de 2016

Cecília Meireles, "Improviso do Amor-Perfeito"


Naquela nuvem, naquela,
mando-te meu pensamento:
que Deus se ocupe do vento.

Os sonhos foram sonhados,
e o padecimento aceito.
E onde estás, Amor-Perfeito ?

Imensos jardins da insônia,
de um olhar de despedida
deram flor por toda a vida.

Ai de mim que sobrevivo
sem o coração no peito.
E onde estás, Amor-Perfeito ?

Longe, longe, atrás do oceano
que nos meus olhos se alteia,
entre pálpebras de areia...

Longe, longe... Deus te guarde
sobre o seu lado direito,
como eu te guardava do outro,
noite e dia, Amor-Perfeito.


sábado, 14 de maio de 2016

João Carlos Teixeira Gomes, "Portal de segredos"


Olhei a minha cara e vi a morte
nela estampada, sem bijuterias.
E disse para mim: "Terna consorte,
ó verduga amorável dos meus dias!"

Não julguei desprovida a minha sorte
no embalo de veludo das mãos frias
e senti que era doce o canto forte
com que ela me envolveu em melodias.

Ó estranha mulher, sempre ultrajada,
verde morte de rude olhar tristonho,
riso discreto em face escaveirada,

quanto mentem por ti humanos medos,
pois não passas, enfim, de um longo sonho,
ou o portal de mágicos segredos.

quinta-feira, 12 de maio de 2016

Maurice Ravel, "2º movimento (adagio) do Concerto para piano em Sol", com Arturo Benedetti Michelangeli e a Orquestra Sinfônica de Londres sob a regência do maestro Sergiu Celibidache.

Lúcio Cardoso, "E consentirias tu, tão soberbo..."


E consentirias tu, tão soberbo,
quando a noite assim te convida,
abrindo as janelas sobre as ruas
e soprando ao teu ouvido
a triste voz do esquecimento?

Morta é a tua ilusão.
No mundo em que te fizeres soberano,
sê como a árvore sem cuidado,
nua contra a chuva e o sonho,
só na sua estranha primavera!


quarta-feira, 11 de maio de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Essa mulher"


A que nunca amei e me ama pensa em mim à noite
antes de dormir, e nos escombros do sono
vê o meu rosto suave, arrogante, de há muitos anos
e sente uma mão fria empunhar-lhe o coração.

É bela a que nunca amei e me ama, cada vez mais bela
com seus cabelos soltos ao sopro da memória,
com uma voz onde sonham luas que jamais iluminaram
um caminho que me levasse à que nunca amei e me ama.

É doce essa mulher que acorda e diz o meu nome
com unção. Seus olhos me fitam do longínquo
e doem em mim como dói nessa mulher que me ama
amar quem nunca a amou, disperso em seus enganos.

A que nunca amei e me ama acaricia a minha ausência
com pena de mim, que teria sido feliz, bem sabe,
se a tivesse amado; a ela, que me ama e nunca amei
e nunca hei de amar, como até hoje, amargamente.

segunda-feira, 9 de maio de 2016

Jorge de Sena, "IVº dos Sonetos da Visão Perpétua"


O que o teu corpo foi, não imaginas:
A juventude, a força, a agilidade,
A fantasia obscena, a intensidade
Com que dos gestos se constrói prazer.

Mas isso ele foi em sonhos. Hei-de ver
Teu corpo assim, ou como o possuí?
Ou hei-de vê-lo como ao longe o vi?
Ou como estatua, em lixo de ruínas?

Jacente dormirá, estendida e pura?
Mas como dormirás, se em mim não dorme
O tempo que a teu rosto ainda tritura?

Como nos mata esta velhice enorme!
Que vinha vindo entre nós dois, tão dura,
Que melhor fora te tornar informe…

Ou sombra dúbia pela noite escura.


domingo, 8 de maio de 2016

Leis estranhas na Flórida(EUA)


-- Ter intercurso sexual com um porco-espinho é ilegal.
-- A sentença por roubo de cavalo é pena de morte.
-- É ilegal eliminar gases intestinais em público.
-- Casais solteiros não podem realizar “atos libidinosos” e viver juntos na mesma residência.
-- Deixar de avisar ao vizinho que sua casa está incendiando é ilegal.
-- Um homem que sair à rua em qualquer tipo de toga sem listas pode ser multado.
-- Mulher solteira que saltar de paraquedas no domingo pode ser presa.
-- Porcas grávidas não podem ser confinadas em jaulas (Constituição do estado).
-- Ninguém pode cometer “atos anormais” com outra pessoa.
-- Corromper a moral pública, além de chateação, é uma contravenção.
-- As portas em todos os edifícios públicos devem abrir para fora.
-- É ilegal vender os filhos.
-- Mulheres podem ser multadas se dormirem ao usar o secador de cabelos – e os donos de salão também.
-- Sexo oral é ilegal.
-- É proibido beijar os seios da mulher.
-- Em Miami: Imitar animais é ilegal. Também: É ilegal andar de skate em uma delegacia.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Jorge de Sena,"O ter e o dar"


Não me peças, ó vida, o que não dás.
Se o que sempre pedi nunca me deste,
e ao que não me atrevera tu trouxeste
às minhas mãos sem jeito de o conter,

para que pedes o que não me dás?
Se nada tenho do que desejara
e tendo tanto por que não esperara,
como hei-de dar-te, sem jamais saber

que meu foi teu, que teu foi meu, que nosso
foi só de empréstimo, como hei-de ou posso,
entre o que tenho, decidir e dar?

E como ao que não tenho hei-de perder,
pelo que me darias a escolher
como se fora tempo de acabar?


quinta-feira, 5 de maio de 2016

Augusto dos Anjos, "Versos íntimos"


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável.

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Lúcio Cardoso, "Canção da revolta"


                                                          "... E se piedade vos sobrar..."
                                                                   Vinícius de Moraes

... E se piedade vos sobrar
tende piedade vossa
que não sois assim
tão poderoso.

Que vossos filhos
são degenerados, porque
não soubestes ser pai
e eles se perverteram.

Tende piedade vossa
que cometestes erro ainda maior:
Aprisionastes almas de poetas
em corpos de homens.

Tende piedade vossa
que os feitos à vossa semelhança
são vampiros insaciáveis.

Tende piedade vossa
que há gente com fome,
gente com medo,
gente com sede e frio,

e um dia essa fome se transforma em ódio,
esse medo vai se defender e atacar,
essa sede vai ser de vosso sagrado sangue,
esse frio vai querer se aquecer no calor da revolta.

E se piedade vos sobrar
tende piedade vossa que não sois
o deus carinhoso com que eu sonhei
Que sois mal e vingativo,
que castigais quando devíeis perdoar.

E se mais piedade vos sobrar,
tende piedade vossa,
que necessitais muito mais de pena
do que nós, míseros sofredores.


Este poema conversa com o poema "O desespero da piedade", do Vinícius, postado ontem.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

Vinícius de Moraes














"O desespero da piedade"

Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas
E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da própria tristeza e solidão
Mas tende piedade também dos que buscam silêncio
E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heróicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe onde vão...

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo
Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas
Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende píedade das mulheres
Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

Tende piedade da moça feia que serve na vida
De casa, comida e roupa lavada da moça bonita
Mas tende mais piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta - que o homem não presta, não presta, meu Deus!

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o seio na mão.

Tende piedade da mulher no primeiro coito
Onde se cria a primeira alegria da Criação
E onde se consuma a tragédia dos anjos
E onde a morte encontra a vida em desintegração.

Tende piedade da mulher no instante do parto
Onde ela é como a água explodindo em convulsão
Onde ela é como a terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua parindo desilusão.

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade também das mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato muito instante de esquecimento
E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e coração patético
Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçada
Que se crêem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais deseja tanto poesia e sinceridade
Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam
E que têm a única emoção da vida nelas.

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples emoção do amor piedoso
Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas
A vida fere mais fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas, e o mundo está nelas
E a loucura reside nesse mundo.

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos, dos homens humilhados - sede enfim
Piedoso com todos, que tudo merece piedade
E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim