terça-feira, 30 de agosto de 2016

Marly de Oliveira, "Epigrama"


Bom é ser árvore, vento,
sua grandeza inconsciente;
e não pensar, não temer,
ser, apenas, altamente.

Permanecer uno e sempre
só e alheio à própria sorte,
com o mesmo rosto tranquilo
diante da vida e da morte.

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

José Chagas, "O pássaro sem voo"


O pássaro sem voo, solto na sala,
ficou sendo um brinquedo de criança.
Que lhe importa a manhã?
                                             Por que saudá-la
se a cantiga desperta a mão que o alcança?
De que lhe vale o canto? O canto é apenas
alegria de estranhos.
                                                     Não é tudo.
O canto é inútil como são as penas.
O pássaro sem voo, canto, é mudo.

sábado, 27 de agosto de 2016

Haroldo de Campos, "Brancura"


a gata chamada
tamborim (tam-

bi)
olhos amareloesverdeados
cara chim
gosta de telhados livres
e do calor do colo
com miados de cortesia
mandarim
nos cumprimenta toda manhã
solicitando modestíssima
que a recebamos
no interior azulejado
da cozinha
na primeira noite de cio
miou por um gato galante
e com seu galã cinzamalhado
enluarou o telhado
branquíssima de paixão

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Heitor Ferraz Mello, "Fica um par de brincos..."


Fica um par de brincos
em cima da cômoda.
Fica um elástico solto
como retrato, na gaveta.

Fica a marca da cabeça
deitada no travesseiro
(às vezes um fio de cabelo
para restituí-la em silêncio).

Fica a lua — a meia-lua —
que banal comparei
ao seu sorriso (lembra?).

Fica você que caminha.
Seu corpo indeciso muda
e mudo se desmembra.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Aquarela de Takaoka, "Paisagem do Rio de Janeiro"

























Note-se que Takaoka pintou o mesmo lugar que Felisberto Ranzini, postado por mim em 35/01/2011.

http://leiovejoeescuto.blogspot.com.br/2011/01/felisberto-ranzini-paisagem-do-rio-de.html 

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Alexei Bueno, "Rondó"


Selva de corpos, xadrez de ruas,
Casas, auroras, mulheres nuas,
Mais tudo que sofras ou fruas,
          Ao fim, o que
          Dizem? Por quê?

Ou para quê? Para que o empório
Da vida, o espólio contraditório,
Pernas, velórios, taças, casório,
          Para quê, se
          Só há aí por quê?

E ao fim, enfim, no assim do crepúsculo,
O estupefato tempo minúsculo
Que resta ao rubro e cansado músculo
          De bater, e
          Soar: por quê?

Tudo, que é tanto, nele, o segundo
Final, é nada. Só, bem no fundo
De si, sem lastro, é que explode o mundo,
         E, ainda, então, lê
         Ígneo, por quê?

terça-feira, 23 de agosto de 2016

José Paulo Paes, "Taquaritinga"


cidade:
nas ruas em pé
eternas namoradas
me espreitam

eu é que não posso vê-las

cidade:
no jardim a fonte
insiste em jorrar
suas águas luminosas

só que me falta a sede

cidade:
agora nem as pedras
me conhecem



José Paulo Paes nasceu e viveu na juventude em Taquaritinga (São Paulo).


domingo, 21 de agosto de 2016

Paulo Henriques Britto, "1ª das Três Peças Circenses"










"O Prestidigitador"

Este papel que se oferece virgem
ao bel-prazer da pena e tinta
é todo teu, só teu, como não é,
nem nunca foi, a tua vida.

A gozosa vertigem dos começos -
esse friozinho bom no estômago -
aqui encontra lastro, ainda que tênue,
na realidade tão incômoda.

E se esta página inaugural
negar-te a façanha de um verso,
um gesto rápido há de restaurar
a virgindade do caderno.

As vértebras flexíveis da espiral
não vão guardar nenhum vestígio
(como fazem as lombadas traiçoeiras)
deste pequeno infanticídio.

Somente a nova página primeira
testemunhou a recaída.
Tenta outra vez: Este papel, etc.
(Restam noventa e nove ainda.)

sábado, 20 de agosto de 2016

Lúcio Cardoso, "Não passa, Martim, o tempo"


                                                  A Martim Gonçalves

Não passa, Martim, o tempo
como o resto que passa,
alguma coisa passa,
é certo.
Mas fremido no cálice da mão,
que acento inventa
o que resiste ao intento,
o que sendo perfume
ainda é corrupção?
A música demora. Ciúme,
a coisa tarda em seu tempo,
enquanto raleia a hora.
Não passa, Martim, o certo;
claro, existir demora -
mas no acento do esvaído,
aproxima-se o perto:
se somos escuro lume,
o tempo é hora:
ardemos, mas no incerto.

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

Antonio Francisco da Costa e Silva, "A aranha"


Num ângulo do teto, ágil e astuta, a aranha,
Sobre invisível tear tecendo a tênue teia,
Arma o artístico ardil em que as moscas apanha
E, insidiosa e sutil, os insetos enleia.

Faz do fluido que flui das entranhas a estranha
E fina trama ideal  de seda que a rodeia
E, alargando o aranhol, os elos emaranha
Do alvo, disco nupcial, que a luz do sol prateia.

Em flóculos de espuma urde, borda e desenha
O arabesco fatal, onde os palpos apoia
E tenaz, a caçar os insetos se empenha.

Vive, mata e produz, nessa fana enfadonha;
E, o fascinante olhar a arder como uma joia,
Morre na própria teia, onde trabalha e sonha.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Ivo Barroso, "O peixe de Neruda"



Neruda pôs um peixe na bandeira
que desfraldava em frente à sua casa.
Talvez quisesse assim, desta maneira,
dizer que um peixe voa sem ter asa.
  
Dizer que nós podemos transformar
as coisas pela força da vontade:
que o mar pode ser céu, o céu ser mar,
dependendo do olhar, da intensidade.

Talvez quisesse nos dizer que a vida
é o exercício de enganar a morte;
que depende de nós uma saída,
parar os dados, reverter a sorte.
  
Que toda coisa é muito mais que a coisa
em si; que um nome pode ser trocado:
tudo consiste em ser a mariposa
que se transforma num milagre alado.
  
Assim, pensando bem, o que Neruda
buscou simbolizar com o peixe erguido
na flâmula, que agora se transmuda
em onda do mar, tem múltiplo sentido:
  
Antes do mais, é a pura imagem física
do peixe, o seu desenho, o seu traçado
geométrico, a linha elíptica, a risca,
o contorno preciso e elaborado;
  
a exatidão de meios, essa técnica
biológica que o torna a parte viva
da água em que ele vive, a chispa elétrica
que intensa o move, orienta, compulsiva.
  
O peixe de Neruda é mais que um peixe,
é uma bandeira, é mais que uma bandeira,
um conjunto de símbolos, um feixe
de acepções — a mitologia inteira.

É um peixe apostólico, sem dúvida,
a ser multiplicado quando há bodas;
mas é também um peixe só e único,
quando se forem as esperanças todas. 

Pois é o peixe de Cristo e do infinito,
esse oito deitado e em si completo,
oracular, sinal na areia escrito,
signo zodiacal, moto perpétuo.
  
Por isso penso às vezes que Neruda
ao erguer de manhã aquele mastro,
com voz potente e ao mesmo tempo muda,
dizia versos ao seu peixe-astro:
  
‘Acorda, ó peixe inaugural, ó peixe matutino
Longe de teu reduto aquático, nos ares;
Deixa a esponja, o coral, o caramujo
— Teus amigos agora são as aves.
  
Deixa o reduto de imersões profundas,
Liberta-te de abraços isobáricos
E paira livre de teu peso em voo silencioso e estático;
Nada nesse ondulante pavilhão que o vento do mar fustiga.
És agora o peixe em estado virtual, o peixe-pensamento, espadanando
A esbranquiçada metamorfose das escamas.
A ti entrego o destino de uma espécie
Marítima e volátil, a dupla vida
Que intentamos viver sem os recursos
Que ora te empresto da imaginação.
A ti confio o destino de todos estes seres
Que querem ser bem mais do que têm sido.
Mas que lhes falta o anseio de ter asas
Ou temem sempre mergulhar no abismo’.

E tarde, tendo os olhos seus imersos
no pôr-do-sol, descendo o pavilhão,
talvez Neruda lhe dissesse versos
— que o verso de Neruda é uma oração:
  
‘Volta, ó peixe vesperal, mergulhador do ocaso,
Ao seio original de onde saíste, entre líquenes e anêmonas;
Conta às algas o azul do céu quando os stratus
coroam as colinas,
Agora sabes os segredos dos que pairam acima do horizonte,
Mas dize-lhes também que aventura inaudita
É viver em dois mundos, é saber que estás aqui
Mas que podes pairar além do insuspeitado.
Sonda teu elemento com perícia mas denodo,
Não deixes o recôndito esquecido,
Nele há tesouros que ainda não fulguram
Por lhes faltarem olhos que os vejam.
Vai mais fundo, explora os teus recursos mais íntimos,
A força potencial que jaz nessas escamas
Que tatalaram como virgens rêmiges,
Um dia nas alturas.
Usa teus olhos oblíquos para veres na sombra
O que muitos não vêem em pleno dia,
Sê tu mesmo, sabendo bem que podes
Ser outro, muitos mais, ser legião, miríade
Sem trair o que de mais teu trazes contigo.
Amanhã, serás outro meu amigo.’

E ouvindo o Poeta descobri que havia
algo de mais recôndito na imagem:
Além de toda essa mitologia,
há no peixe uma última mensagem.
  
A de que é a Poesia um peixe-alado
e o Poeta um ser que busca o vir-a-ser.
Vive para dar vida ao Incriado,
pois que a missão do Poeta é transcender.



terça-feira, 16 de agosto de 2016

Escultura em mármore de Antonio Frilli, "Mulher na rede"

















Além da beleza da escultura do italiano Antonio Frilli, o que me intrigou nesta foto foi a tela ao fundo, pois trata-se de uma antiga pintura panorâmica da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro.











À esquerda, a imagem mostra o Morro do Pão de Açúcar e o Morro da Urca e mais ao centro o Morro do Corcovada, evidentemente que sem o teleférico (o bondinho) e a estátua do Cristo.

Como a internet informa que o mármore foi leiloado pela casa Sothebys em 1999, suponho que seja a foto da exposição do leilão, ocasião em que também o quadro tenha sido leiloado.

Outros ângulos da escultura em
http://www.fineartphotographyvideoart.com/2014/06/Antonio-Frilli.html

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Mario Quintana












"Ah! Os relógios"

Amigos, não consultem os relógios
quando um dia eu me for de vossas vidas
em seus fúteis problemas tão perdidas
que até parecem mais uns necrológios...

Porque o tempo é uma invenção da morte:
não o conhece a vida - a verdadeira -
em que basta um momento de poesia
para nos dar a eternidade inteira.

Inteira, sim, porque essa vida eterna
somente por si mesma é dividida:
não cabe, a cada qual, uma porção.

E os Anjos entreolham-se espantados
quando alguém - ao voltar a si da vida -
acaso lhes indaga que horas são...

domingo, 14 de agosto de 2016

Wisława Szymborska










"Fim e começo"

Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.

Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.

Alguém tem que se atolar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.

Alguém tem que arrastar a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar a janela.

A cena não rende foto
e leva anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.

As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.

Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor
já começam a rondar
os que acham tudo muito chato.

Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.

Os que sabiam
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem.
Ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.

Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém deve se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.

Tradução de Regina Przybycien.

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Al Berto, "Diários"
















Lx 25 de abril

Desde 6ª feira que nada sei. Vivo cada segundo à espera que o telefone toque. E não tocou. Que terá acontecido? Invento coisas para fazer, para me distrair, para passar o tempo e não pensar. Sinto um medo que me corrói o coração.

Alexandre adormecido no fogo deste poema

Enquanto dormes constrói-me um rosto novo, no fundo do teu sonho. Toca-o e acorda-me.
Caminha comigo, peço-te, na inquietação daquele rosto, e nesta alegria suspensa na solidão.

Ha tantos anos que te esperava para fugirmos. E não sabia que a fuga era possível pelas estradas de giestas, em direção à madrugada do mar.
Dorme e deixa que o meu coração escute o teu. Quero arder contigo, nesta eternidade feita de kms e segundos.

Para trás ficou a cidade. E tu sabes que a cidade só existe no apanhar de um táxi. E perdemo-nos até amanhã, sem sequer podermos dizer adeus, porque não se pode dizer adeus à paixão.

Amanhã, ou enquanto dormes, agora mesmo, vou pensar em ti, intensamente - até que as horas me doam e o movimento do tempo fique suspenso, até que tudo o que me rodeia tome a forma do teu corpo.

E em mim circulas, adormecido no fogo do meu sangue.


                                                               *


A ausência coalha sobre a pele. Por isso te escrevo, com esta luz encostada à boca. e espalho a cinza das palavras no silêncio da noite.

Perder-te me levaria ao fogo duma bala. Viagem de sangue pela terra sem mar deste quarto que me conhece e protege. A paixão foi construída com a lentidão das obras primas. E nela não há equívocos nem sombras. O teu rosto é intenso, brilha assim que lhe toco - borboleta lunar, sinal de vida, estremecer do mundo na tristeza perfeita das mãos.

Assim te raptei numa noite - com ansiedade delícia. E assim te amei (e amo) dentro e fora do poema.

Profecia
despedaçado

obscuro
densidade dos seres
Bruma

as coisas talvez existam porque as palavras o dizem.
morremos de amor quando já nem o amor existe.(?)

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Gomes Leal, "Aos vencedores"


Visto que tudo passa e as épicas memórias
Dos fortes, dos heróis, se vão cada vez mais,
Que tudo é luto e pó! ó vós que triunfais
Não turbeis a razão nos vinhos das vãs glorias!

Não ergais alto a taça, à hora dos gemidos,
Esquecidos talvez nos gozos, nos regalos;
E não façais jamais pastar vossos cavalos
Na erva que cobrir os ossos dos vencidos!

Não celebreis jamais as festas dos noivados,
Não encontreis na volta os lúgubres cortejos!
- E se amardes, olhai que ao som dos vossos beijos
Não respondam da praça os ais dos fuzilados!

Sim! - se venceste emfim, folgai todas as horas,
Mas deixai lastimar-se os órfãos, as amantes,
Nem façais, junto a nós, altivos, triunfantes,
Pelas ruas demais tinir vossas esporas!

Pois toda a gloria é pó! toda a fortuna vã!—
—E nós lassos emfim dos prantos dolorosos,
Regamos já demais a terra - ó gloriosos
Vencedores! talvez, - vencidos de amanhã!

terça-feira, 9 de agosto de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Despedidas"


Despedimo-nos do amigo
no azul da tarde. E, uns nos outros,
fitamos os rostos que
o tempo moldou sobre os
rostos suaves, aqueles
que nos fitam da memória.

Há vagas palavras, vagos
apertos de mão, abraços.
E, despedidos do amigo,
entre nós nos despedimos
- recomeçando a aguardar
a hora de estarmos juntos
numa nova despedida
(permanecendo ou partindo),
aqui neste mesmo ou
noutro qualquer cemitério.

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Fernando Pessoa














"Que triste, à noite, no passar do vento..."

Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.

No sossego sem paz se ergue o lamento
Como de universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.

"Estamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há estrada.

O vácuo incarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

sábado, 6 de agosto de 2016

Cecília Meireles














"Pastora descrida"

Eu, pastora, que apascento
estrelas da madrugada
pelas campinas do vento,

fui falar ao eco antigo,
a cuja voz fui criada,
e que supus meu amigo.

“Sou sempre a de antigamente”,
 murmurei-lhe, enternecida.
E ele anunciou longe: “Mente!”

Mas era a minha verdade
e, vendo-me assim descrida,
padeci com a falsidade.

“Eco amigo, eu não te iludo:
pastora sou destes prados
onde se confunde tudo;

mas sou de ontem e de agora,
dentro dos despedaçados
instantes de nenhuma hora. ..

A amargura não me aumentes..
E o eco antigo, infiel e exato,
repetiu-me perto: “Mentes...”

Vergada em móveis espelhos,
vi nas águas meu retrato,
chorei sobre mim, de joelhos.

Mas o gado que pascia
pelas colinas da aurora,
mascando as margens do dia,

veio a mim sem que o esperasse,
lambeu-me os olhos de outrora,
— reconheceu a minha face.

sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Marcelo Gama, "Feia"


Feia!... Como isso dói na tua alminha débil!
É nobre a coitadita, e muito a contraria
ser forçada a morar numa tal moradia...
Eis aí porque a vejo amargurada e flébil.

E é por seres assim que eu te quero assim tanto,
com este amor tão limpo e tão sem egoísmo,
pois logo a sujaria o meu sensualismo,
se animasse essa carne algum sopro de encanto.

Toda vez que me vem de tua alma perfeita
esse ar de doçura e pesar sossegado,
evocas-me o sabor que já tenho encontrado
em certos frutos sãos, mas de casca suspeita.

Água fresca bebida à beira de uma fonte,
em mau copo de folha, enferrujado e gasto...
Como deve bater penosamente casto,
sob o teu peito murcho, o coração insonte!

Borboleta que sai de um casulo rugoso...
teu sorriso não traz convites para o beijo:
antes pede perdão... manifesta o desejo
de que não se repare em teu corpo anguloso.

Sei que um dia choraste, assistindo a uma boda,
porque viste alguém rir do teu porte mesquinho.
Já chegaste a dizer, encontrando um ceguinho:
— Que bom se fosse cega a humanidade toda!

Entristeceste ao ver, numa revista de arte,
um "tipo de beleza"... E terias a palma
se fosse dado a alguém fotografar tua alma...
— não havia mulher tão linda em toda parte.

Dói-te se ouves falar, quando estás numa roda,
na formosura desta ou daquela mulher.
Vês em cada semblante um motejo qualquer...
e descreste, por fim, dos recursos da moda.

Imagino que horror deves ter aos espelhos!
E a crueldade da água em que lavas o rosto
há de forçosamente encher-te de desgosto,
repetindo que és feia e dando-te conselhos:

— Que não tenhas vaidade e não sejas faceira...
Parece-me que a ti um tal conselho é inútil,
pois tua alma sadia, abençoada e dúctil,
é uma flor que nasceu dentro de uma caveira.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Alexei Bueno











"A hora"

Quando as palavras detêm-se,
Hirtas, perante a visão,
E se entreolham em vão,
Ínscias do que lhes pertence,

Quando a vida é muito vasta
Para o seu ordeiro lar,
Canoa em pleno alto mar,
Florinha que a enchente arrasta,

Ela ergue a chave, a poesia,
E adentra. Ela que é, não diz.
Que é o palco, a platéia e a atriz,
A hora nem noite nem dia.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Manuel Bandeira










"Consoada"

Quando a indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou coroável).
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
                                        - Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.