Agora, como sempre,
é com outros que se obtem perícia,
pois não é fácil abrir
a porta dos poemas ainda escondidos.
(Baquílides)
domingo, 30 de abril de 2017
sábado, 29 de abril de 2017
Alexandra Pizarnik
"Noturno de Chopin por um pianista de quatro anos"
Sua música me leva
a um penhasco com um pássaro
que brinca se ouvindo cantar.
Sua música ilumina-me na chuva
por onde vamos eu e uma jaula vazia.
Tradução amadora minha
"Nocturno de Chopin por pianista de cuatro años"
Su música me lleva
a una acantilado com um pájaro
que juega a oírse cantar.
Su música me alumbra en la lluvia
por donde vamos yo y una jaula vacía.
sexta-feira, 28 de abril de 2017
Donizete Galvão, "Ostra"
A ostra
e a aspereza
de sua crosta.
O acúmulo
de craca
nas rugas
da carapaça.
O cheiro podre
de mangue
entranha-se nas digitais
e no tecido das narinas.
Lembram ao homem
seu invólucro de lama.
A ostra
é metade pedra,
calcárias escaras
brancas que se abrem
aos golpes da faca.
Por fora, objeto
coberto por perebas.
Por dentro, fêmea
líquida em leito
de nácar.
Trêmula rosa,
íntima e recém-nascida,
envolta em gosma.
A ostra
se fecha
e na sua
caixa tosca
purifica-se,
protege-se
do lodo.
Oculta,
eleva
sua carne
ao limite
da sólida
pérola.
quinta-feira, 27 de abril de 2017
quarta-feira, 26 de abril de 2017
José Asunción Silva, "A um pessimista"
Há sombra demasiada nas visões
Que tens, algo de plácido há na vida,
nem tudo na existência é uma ferida
Da qual o sangue jorra aos borbotões.
A luta tem descanso, e ainda as paixões
Agonizantes, e a afeição perdida,
Tudo que amamos e que o tempo olvida
E nos cobre de rudes decepções.
Mas, por que duvidar, se nos reservam
No futuro remoto e em tudo obscuro
Fundas calmas e vividas bonanças
A ternura profunda, o beijo puro,
E femininas mãos que a amar preservam
Os berços cor-de-rosa das crianças.
Tradução de Alexei Bueno
terça-feira, 25 de abril de 2017
Luís de Camões, "Descalça vai pela neve; Assim faz quem Amor serve".
Mote
Descalça vai pela neve;
Assim faz quem Amor serve.
Voltas
Os privilégios que os reis
não podem dar, pode Amor,
que faz qualquer amador
livre das humanas leis.
Mortes e guerras cruéis,
ferro, frio, fogo e neve,
tudo sofre quem o serve.
Moça fermosa despreza
todo o frio e toda a dor.
Olhai quanto pode Amor
mais que a própria natureza:
medo nem delicadeza
lhe impede que passe a neve.
Assim faz quem Amor serve.
Por mais trabalhos que leve,
a tudo se of'receria;
passa pela neve fria
mais alva que a própria neve;
com todo o frio se atreve...
Vede em que fogo ferve
o triste que o Amor serve.
segunda-feira, 24 de abril de 2017
domingo, 23 de abril de 2017
Al Berto, "Diários"
26 maio/ 1984 - quarta-feira
Procurar o meu corpo no corpo dos outros, atravessar espelhos e destruir os reflexos que me incitam a acreditar que aquilo que se reflecte sou eu.
Voltar à superfície e debruçar-me para os teus lábios. Colher neles a intriga da paixão. Devorar-te noite adiante. Mentir-me. Mentir-te.
sábado, 22 de abril de 2017
Victor Loureiro, "Pôr-se..."
Pôr-se
por si
no poente
Põe-se
parte a parte
até se pôr
totalmente
e deixa
a tarde
dispor-se no horizonte
tornando-se depoente
de cores estridentes
onde
três pedidos
são suficientes
pra que o dito seja feito
e a tarde desça
desse jeito comovente.
sexta-feira, 21 de abril de 2017
Lúcio Cardoso, "Tema antigo"
Fiz vibrar a grande corda
e, dentro em mim,
como o sangue sem memória,
a morte estremeceu.
Ó inexistentes terras,
veredas de sol e crime,
eu vos sinto como a febre.
No último assomo,
o verde desdém da paisagem
nos espia atrás desse silêncio
onde dormem cantigas e grinaldas
à espera do noivado.
Ó inexistente terras,
praias do assombro,
portas ermas de um sonho
que há muito o apaziguado redimiu
na linguagem desses olhos,
tão calados sempre.
Ó inexistente! Ó mito!
Sois em mim o suspirado,
o cotidiano veneno.
Asa que se debate e foge,
folha nascida, esperança,
única que me fita
e me perdoa - no espelho
onde inútil me contemplo.
quinta-feira, 20 de abril de 2017
quarta-feira, 19 de abril de 2017
Wislawa Szymborska, "Fim e começo"
Depois de cada guerra
alguém tem que fazer a faxina.
Colocar uma certa ordem
que afinal não se faz sozinha.
Alguém tem que jogar o entulho
para o lado da estrada
para que possam passar
os carros carregando os corpos.
Alguém tem que se afundar
no lodo e nas cinzas
em molas de sofás
em cacos de vidro
e em trapos ensanguentados.
Alguém tem que erguer a viga
para apoiar a parede,
pôr a porta nos caixilhos,
envidraçar as janelas.
A cena não rende foto
e pode levar anos.
E todas as câmeras já debandaram
para outra guerra.
As pontes têm que ser refeitas,
e também as estações.
De tanto arregaçá-las,
as mangas ficarão em farrapos.
Alguém de vassoura na mão
ainda recorda como foi.
Alguém escuta
meneando a cabeça que se safou.
Mas ao seu redor já rondam
os que acham tudo muito chato.
Às vezes alguém desenterra
de sob um arbusto
velhos argumentos enferrujados
e os arrasta para o lixão.
Os que sabem
o que aqui se passou
devem dar lugar àqueles
que pouco sabem,
ou menos que pouco.
E por fim nada mais que nada.
Na relva que cobriu
as causas e os efeitos
alguém vai se deitar
com um capim entre os dentes
e namorar as nuvens.
terça-feira, 18 de abril de 2017
Miguel Torga, Absolvição"
Incendeiam-me ainda os beijos que me não deste
E cegam-me os acenos que me não fizeste
Da janela irreal onde o teu vulto
Era uma alucinação dos meus sentidos.
Mas, decorrida a vida, e oculto
Nestes versos doridos,
A saber que não sabes que te amei
E cantei,
E nem mesmo imaginas quem eu sou
E como é solitária e dói a minha humanidade,
Em vez de te acusar
E me culpar,
Maldigo o arbítrio da fatalidade
Que cruelmente nos desencontrou.
segunda-feira, 17 de abril de 2017
domingo, 16 de abril de 2017
Miguel Torga, "Repto"
Aceito o desafio.
Que poeta se nega
A um aceno do acaso?
Tenho o prazo
Acabando,
O que vier é ganho.
Na lonjura
Da última aventura
É que a alma revela o seu tamanho.
Extremo Oriente da inquietação
Lá vou!
A quê, não sei,
Mas lá descobrirei
Que razão me levou.
Lá, onde tanto que me precederam,
Se perderam,
E aprenderam, na perdição
Que só é verdadeiro português
Quem, um dia, a negar a humana pequenez,
Se inventa e se procura
Nas brumas do mar largo e da loucura.
sábado, 15 de abril de 2017
Antonio Cicero, "Balanço"
A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.
sexta-feira, 14 de abril de 2017
quinta-feira, 13 de abril de 2017
Cecília Meireles
"Recado aos amigos distantes"
Meus companheiros amados,
não vos espero nem chamo:
porque vou para outros lados.
Mas é certo que vos amo.
Nem sempre os que estão mais perto
fazem melhor companhia.
Mesmo com sol encoberto,
todos sabem quando é dia.
Pelo vosso campo imenso,
vou cortando meus atalhos.
Por vosso amor é que penso
e me dou tantos trabalhos.
Não condeneis, por enquanto,
minha rebelde maneira.
Para libertar-me tanto,
fico vossa prisioneira.
Por mais que longe pareça,
ides na minha lembrança,
ides na minha cabeça,
valeis a minha Esperança.
quarta-feira, 12 de abril de 2017
Fernando Pessoa - Bernardo Sores, "O Livro do Desassossego"
Capítulo 262.
Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa. Reparei, num relâmpago íntimo, que não sou ninguém. Ninguém, absolutamente ninguém. Quando brilhou o relâmpago, aquilo onde supus uma cidade era um plaino deserto; e a luz sinistra que me mostrou a mim não revelou céu acima dele. Roubaram-me o poder ser antes que o mundo fosse. Se tive que reencarnar, reencarnei sem mim, sem ter eu reencarnado.
Sou os arredores de uma vila que não há, o comentário prolixo a um livro que se não escreveu. Não sou ninguém, ninguém. Não sei sentir, não sei pensar, não sei querer. Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar.
Penso sempre, sinto sempre; mas o meu pensamento não contém raciocínios, a minha emoção não contém emoções. Estou caindo, depois do alçapão lá em cima, por todo o espaço infinito, numa queda sem direção, infinítupla e vazia. Minha alma é um maelstrom* negro, vasta vertigem à roda de vácuo, movimento de um oceano infinito em torno de um buraco em nada, e nas águas que são mais giro que águas boiam todas as imagens do que vi e ouvi no mundo — vão casas, caras, livros, caixotes, rastros de música e sílabas de vozes, num rodopio sinistro e sem fundo.
E eu, verdadeiramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo; sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem muros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda.
E é, em mim, como se o inferno ele-mesmo risse, sem ao menos a humanidade de diabos a rirem, a loucura grasnada do universo morto, o cadáver rodante do espaço físico, o fim de todos os mundos flutuando negro ao vento, disforme, anacrônico, sem Deus que o houvesse criado, sem ele mesmo que está rodando nas trevas das trevas, impossível, único, tudo.
Poder saber pensar! Poder saber sentir!
Minha mãe morreu muito cedo, e eu não a cheguei a conhecer...
Maelstrom - é um substantivo masculino de origem holandesa que significa grande redemoinho de água.
terça-feira, 11 de abril de 2017
segunda-feira, 10 de abril de 2017
Odylo Costa, Filho, "Arte poética"
Assim, amigo, desejaria eu escrever:
como um galho de árvore seca
entretanto úmido da noite.
Como quem estende a mão, esquecido de si próprio,
aos que a dor ameaça afogar em desespero,
num ímpeto de secreta fraternidade.
Despreocupado e quotidiano como a conversa
dos que não sabem que em breve vão morrer de repente.
Sem adormecer a consciência de ninguém
mas sem tirar o sono a nenhum corpo.
Modesto como quem serve à mesa
leve como quem fala com menino
natural como os bichos na floresta
teimoso como quem quebra pedra no sol.
domingo, 9 de abril de 2017
Adélia Prado, "Sedução"
A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.
sábado, 8 de abril de 2017
sexta-feira, 7 de abril de 2017
Camilo Pessanha "Estátua"
Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, de frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.
Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.
E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correto
Desse entreaberto lábio gelado...
Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.
quinta-feira, 6 de abril de 2017
José Paulo Paes
"A casa"
Vendam logo esta casa, ela está cheia de fantasmas.
Na livraria, há um avô que faz cartões de boas-festas com
(corações de purpurina.
Na tipografia, um tio que imprime avisos fúnebres e programas
(de circo.
Na sala de visitas, um pai que lê romances policiais até o fim
(dos tempos.
No quarto, uma mãe que está sempre parindo a última filha.
Na sala de jantar, uma tia que lustra cuidadosamente
(o seu próprio caixão.
Na copa, uma prima que passa a ferro todas as mortalhas da família.
Na cozinha, uma avó que conta noite e dia histórias do outro mundo.
No quintal, um preto velho que morreu na Guerra do Paraguai
(rachando lenha.
E no telhado um menino medroso que espia todos eles;
só que está vivo: trouxe-o até ali o pássaro dos sonhos.
Deixem o menino dormir, mas vendam a casa, vendam-na
(depressa.
Antes que ele acorde e se descubra também morto.
quarta-feira, 5 de abril de 2017
Caetano Veloso, "Cajuína"
Letra de "Cajuína"
Existirmos: a que será que se destina?
Pois quando tu me deste a rosa pequenina
Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina
Do menino infeliz não se nos ilumina
Tampouco turva-se a lágrima nordestina
Apenas a matéria vida era tão fina
E éramos olharmo-nos intacta retina
A cajuína cristalina em Teresina
A música faz referência a Torquato Neto,que se suicidou em 1972.
Caetano a fez após conhecer a família do poeta em Teresina.
No encontro, quando se despediram o pai de Torquato deu-lhe uma rosa.
terça-feira, 4 de abril de 2017
Carlos Heitor Cony "Pesquisa de Opinião"
Em Fontamara, no alto do morro da região mais miserável da Itália, o governo fascista de Mussolini mandou uma comissão do partido fazer uma espécie de plebiscito entre os "cafoni" (camponeses) para saber o que eles pensavam politicamente.
O líder dos fascistas perguntou ao sapateiro: "Viva quem?". A resposta foi respeitosa: "Viva a rainha Margarida!"; "A rainha Margarida já morreu". O mesmo inquisidor escreveu ao lado: "alienado". O segundo a ser interrogado respondeu: "Abaixo os ladrões". Foi classificado como anarquista. O terceiro não sabia dizer "vivas". Só sabia dizer "abaixo" e respondeu: "Abaixo os impostos". Também foi classificado como anarquista.
O "cafone" seguinte foi Rafael Scarpone, que gritou: "Abaixo os bancos". Foi classificado como comunista. Um outro gritou de mãos postas: "Viva a Virgem de Loreto". Um outro discordou. Mas foi contestado, alguém reclamou: "Viva São Roque". Foi anotado como clerical. O sacristão preferiu dar o viva ao "pão e ao vinho".
Della Croce, alfaiate, considerado um homem prudente e sábio, percebendo que nenhuma das respostas satisfazia a comissão de fascistas, subindo num caixote, proclamou: "Vivam todos!". O chefe dos fascistas mandou anotar: "liberal".
Uliva berrou com emoção: "Viva o governo!". "Qual governo?", perguntaram. "O governo legítimo." Foi definido como "patriota". Em seguida, o lavrador Sexta-Feira Santa respondeu: "O governo ilegítimo". Foi anotado como "subversivo perigoso".
A comissão de fascistas voltou para Roma e fez um relatório sobre Fontamara: "Com jeitinho e óleo de rícino, pode ser aproveitada". Quiseram saber a quem o vigário dera o viva. O vigário não foi encontrado, estava na casa de Gina, a prostituta mais famosa de Fontamara.
Crônica publicada no jornal "Folha de São Paulo" em 02/04/2017.
segunda-feira, 3 de abril de 2017
Jorge Luis Borges
"Borges e eu"
Ao outro, a Borges, é que sucedem as coisas. Eu caminho por Buenos Aires e me demoro, talvez já mecanicamente, para olhar o arco de um saguão e a porta envidraçada; de Borges tenho notícias pelo correio e vejo seu nome num trio de professores ou num dicionário biográfico. Agradam-me os relógios de areia, os mapas, a tipografia do século XVIII, as etimologias, o gosto do café e a prosa de Stevenson; o outro compartilha essas preferências, mas de um modo vaidoso que as converte em atributos de um ator. Seria exagerado afirmar que nossa relação é hostil; eu vivo, deixo-me viver, para que Borges possa tramar sua literatura, e essa literatura me justifica.Nada me custa confessar que conseguiu certas páginas válidas, mas essas páginas não me podem salvar, talvez porque o bom já não é de ninguém, nem sequer do outro, senão da linguagem ou da tradição. Quando ao mais, estou destinado a perder-me, definitivamente, e apenas algum instante de mim poderá sobreviver no outro. Pouco a pouco lhe vão cedendo tudo, se bem que me conste seu perverso costume de falsear e magnificar. Spinoza entendeu que todas as coisas querem perseverar em seu ser; a pedra eternamente quer ser pedra e o tigre um tigre. Eu hei de permanecer em Borges, não em mim (se é que sou alguém), porém me reconheço menos em seus livros do que em muitos outros ou do que no laborioso zangarreio de uma guitarra. Faz anos tratei de livrar-me dele e passei das mitologias do arrabalde aos jogos com o tempo e com o infinito, mas esses jogos são agora de Borges e terei de idear outras coisas. Assim minha vida é uma fuga, e tudo eu perco, e tudo é do esquecimento, ou do outro.
Não sei qual dos dois escreve esta página.
Tradução de Rolando Roque da Silva
domingo, 2 de abril de 2017
sábado, 1 de abril de 2017
Paulo Mendes Campos, "Por que bebemos tanto assim?"
Bar é um objeto que se gasta como camisa, isto é, depois de certo tempo de uso é sempre necessário comprar uma camisa nova e mudar de bar. É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado. O homem que toma o bar errado pode gerar aborrecimentos ou ser a vítima deles.
Não escrevo este artigo no bar. Não entendo pessoas que bebem para escrever. Georges Bernanos escrevia em bares com o risco de passar por bêbado, coisa que talvez tivesse sido (a afirmação é do próprio escritor católico) se as leis alfandegárias não taxassem tão alto os álcoois consoladores. A bebida consola; o homem bebe; logo, o homem precisa ser consolado. A dramaticidade fundamental do destino é o penhor dos fabricantes do veneno. Porque o álcool é um veneno mortal. Um veneno mortal que consola e... degrada o homem. Mas outro escritor católico (teve uma crise de irritação quando chegou a Nova Iorque durante a lei seca), o gordo, sutil e sedento G. K. Chesterton, nega que o álcool degrade o homem: o homem degrada o álcool.
Chesterton foi um louco que perdeu tudo, menos a razão; é claro, por isso mesmo, que a criatura humana é o princípio da degradação de todas as coisas sobre a Terra. O álcool é inocente. Só um típico alcoólico anônimo seria incapaz de entender a inocência do álcool e a inescrutável malícia dos homens.
Depois de dois escritores, cito agora um falecido artista de cinema, Humphrey Bogart, que dizia: "Todo homem está sempre três doses abaixo do normal." That's the question. Na verdade, não é bem isso: bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero... Bebe-se na esperança de igualar o marcador. Uma ilusão, sem dúvida, mas toda la vida es sueño y los sueños sueños son. Calderón de la Barca, se bebia, era escondido; saiba portanto, leitor, que a sentença seguinte foi adulterada por mim: "Aún en sueños — no se pierde el beber bien."
Uma das exclamações mais doces (Luis de Góngora y Argote) da poesia espanhola é esta:
Oh bienaventurado
albergue a cualquier hora!
Um dos aforismos pungentes (Baudelaire) da literatura é este: "É preciso estar sempre bêbado — de vinho, de poesia, de religião". Uma expressão popular: beber para afogar as mágoas.
Bernanos, Chesterton, Humphrey Bogart, o falso Calderón de la Barca, Góngora e o povo estão perfeitamente certos: o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre, para ser consolado; para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz uma sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, a adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista. Quem foge de si mesmo se encontra; quem procura encontrar-se afasta-se de si mesmo. Não é paradoxo, é o imbricamento humano. E este é uma espiral inflacionária cuja moeda, em desvalorização permanente, é a nossa precária percepção da realidade. Somos inflacionados pelo nosso próprio vazio: a reação nervosa da embriaguez parece encher-nos ou pelo menos atenuar a presença do espírito desesperado dentro do corpo, perfeitamente disposto a possuir os bens terrestres e gozá-los. Espírito e corpo não se entendem: o primeiro conhece exaustivamente a morte, enquanto o segundo é imortal, enquanto vive. Daí essa tocata e fuga a repetir-se indefinidamente dentro de cada ser, este desequilíbrio que nos leva ao bar, à igreja, ao consultório do analista, às alcovas sexuais, à arte, à ciência, à ambição de mando e dinheiro, a tudo. As fugas e fantasias são tantas, e tão arraigadas, que se confundem com a própria natureza humana. Não seria possível definir o homem como um animal que nasce, alimenta-se, pensa, reproduz e morre; o que interessa no homem é o que sobra; o fundamental nele é o supérfluo. Uma jovem atirou-se sem explicação dum décimo andar, um cientista experimentou em si mesmo o vírus duma doença mortal, um artista passa vários anos de fome e incompreensão para realizar uma obra, os tranqüilizantes são vendidos aos milhões, multidões acreditam na santidade duma menina, cresce o número de doentes mentais, o alcoolismo é um mal que se generaliza — estas são as manchetes que interessam à psicologia do indivíduo e da coletividade. Todos esses fatos, superficialmente plurais, possuem na base a singularidade da tristeza. É preciso beber. A natureza deu-nos a embriaguez natural do sono. Oito horas de sono não bastam. É preciso estar bêbado — de vinho, poesia, religião. É preciso estar bêbado de todas as mentiras vitais (a expressão é de Ibsen): de poder, de luxo, de luxúria, de bondade, de satanismo (o doutor Relling para consolar um pobre-diabo inventou para ele uma personalidade diabólica), de idealismo, de Deus, de violência, de humildade, de loucura, de qualquer coisa.
O álcool é tão-só a modalidade primária e comum à embriaguez. O bar é a primeira instância da causa do homem. O uísque (cachaça) é apenas uma das formas vulgares de todos os ritos milenares de encantamento.
O que comiam os centauros? O que transformava os homens em deuses? Que se comia durante as cerimônias dos Mistérios na Grécia? Provavelmente um cogumelo chamado amanita muscaria, incomparavelmente superior aos nossos melhores vinhos e aguardentes. O cogumelo leva-nos à morada de Deus — é o testemunho de uma médica e um banqueiro que o experimentavam várias vezes. Acredita Robert Graves que Sansão devia sua força aos cogumelos. A Sulamita refere-se aos cogumelos no Cântico dos Cânticos. Os indígenas mexicanos o usavam em suas festas rituais (culto ainda existente na província de Oaxaca). Portanto:
A embriaguez é religiosa, e o altar das religiões antigas inventou de certo modo a mesa do bar. Aí, o homem punha-se em comunicação com o espírito divino, ligava céu e terra, transcendia-se.
O homem entra no bar para transcender-se — eis a miserável verdade.
Entrei em muitos, bebo alguma coisa desde a minha adolescência, conheço bares em Belo Horizonte, Porto Alegre, Buenos Aires, Florianópolis, São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Manaus, Brasília, João Pessoa, Petrópolis, Belém, Nova Iorque, Lisboa, Vigo, Londres, Stratford-on-Avon, Oxford, Paris, Grenoble, Gênova, Pisa, Arezzo, Florença, San Gemignano, Volterra, Spezia, Roma, Nápoles, Paestum, Reggio di Calabria, Messina, Catania, Siracusa, Licata, Agrigento, Marsala, Trapani, Palermo, Taormina, Veneza, Hamburgo, Berlim (Ocidental e Oriental), Heidelberg, Dusseldorf, Colônia, Munique, Goettingen, Francforte, Bonn, Varsóvia, Estocolmo, Leningrado, Moscou, Surrumi, Ircútsqui, Pequim, Múquiden, Xangai, Santa Luzia e Sabará...
Em 1954, viajando pela Alemanha de automóvel, cheguei pouco depois da meia-noite à cidade universitária de Goettingen. No Brasil, uma cidade cheia de estudantes costuma tumultuar-se pela madrugada. Mas Goettingen àquela hora entregava-se a um repouso unânime. Sem sono, reservei um quarto no hotel, perguntando ao empregado onde poderia beber qualquer coisa.
— Ah, senhor — respondeu entre sentido e orgulhoso o alemão
— Goettingen é uma cidade universitária, não existe nada aberto a esta hora.
— O senhor está completamente enganado — retruquei-lhe.
Ele se riu bondosamente de mim: tinha mais de 60 anos, nascera em Goettingen, conhecia todas as ruas da cidade, todos os bares, seria impossível encontrar qualquer venda aberta depois de meia-noite.
— O senhor está enganado — insistia eu.
Moeller, outro alemão, que viajava comigo, reforçou a opinião do empregado do hotel e começou a dissertar impertinentemente sobre as diferenças entre o Brasil e a Alemanha. Eu estava parecendo bobo — disse ele — não querendo aceitar sua germânica verdade: em Goettingen não havia um único bar aberto depois de meia-noite. A esta altura manifestei-lhes um princípio universal, pelo qual sempre me guiei:
— Pois fiquem vocês sabendo que em todas as cidades, todas as vilas e povoados do mundo, há pelo menos duas pessoas que continuam a beber depois de meia-noite; aqui em Goettingen há pelo menos duas pessoas que estão bebendo neste momento; vou encomendá-las.
Darwin Brandão, o terceiro homem nesta viagem, não me deixa mentir. Meio cético a respeito do meu princípio, mas solidário com o amigo, resolveu acompanhar-me, apesar do sarcasmo dissuasório de Moeller. Saímos para a noite morta de Goettingen, e vimos um gato, tão silencioso quanto os seus conterrâneos, ganhar às pressas o beiral dum telhado secular. Fomos andando pelas ruas paralisadas, eu tranqüilo, e Darwin me espiando de banda. No fim duma rua comprida e oblíqua, vi um cubo iluminado, mais parecido com um anúncio de barbearia, e afirmei:
— É ali. — Nas faces visíveis do cubo estava escrito: Weinclub. Ao fim da passagem lateral, por onde entramos, demos com a porta fechada. Batemos em vão, e já íamos embora, desapontados, quando notei no corredor uma escada circular para o porão, cavada na pedra. No primeiro patamar, ouvimos música. Tomei um ar superior de vidente e desci o segundo lance. Empurrada a grossa porta de carvalho (o carvalho é mera suposição), recebi uma salutar lufada de música, de tabaco, de gente, de aromas etílicos. Foi como se eu reconquistasse o paraíso. O Weinclub dançava e bebia animadamente, repleto de jovens universitários e lindas universitárias de bochechas coradas e riso amorável. Não havia uma única mesa vaga, mas três segundos depois eu estava a beber um magnífico branco do Reno, e a explicar para os estudantes, que nos acolheram com simpatia, o princípio universal que rege a vida noturna. E eles, os mais talentosos matemáticos do mundo, futuros inventores de balísticos e outros inteligentíssimos engenhos mortíferos, acataram o meu pacífico princípio como um axioma luminoso. Foi um dos bares mais consoladores de minha temporada sobre a Terra.
Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida. Isto é raríssimo de acontecer. Quando o garçom é uma flor de sujeito, o dono do bar costuma ser uma besta; se os fregueses são alcoólicos esclarecidos, o ambiente às vezes é quente e abafado; vai ver um excelente e confortável bar refrigerado, e boa porcentagem de uísque é fabricada no Engenho de Dentro. Para dizer toda a verdade, o bar perfeito não existe.
Barmen and jockeys are the only people who are polite any more, doutrinou um homem que consumia álcool em quantidades industriais, o romancista Ernest Hemingway. O barman, de fato, é um dos segredos do bar. Cada freguês deve sentir a ilusão de que o barman tem uma predileção especial por ele, e em nome disso será capaz de resolver qualquer problema. O incompreensível é que resolvem mesmo. O homem que chega a uma grande metrópole desconhecida é como um avião voando em solidão por dentro dum espesso nevoeiro. Mas, se este homem pertence à comunidade internacional dos freqüentadores de bar, cada barman é uma torre com a qual ele poderá entrar em contato a fim de orientar-se. Os únicos estranhos aos quais eu falo sem timidez, com perfeita familiaridade, são os barmen, e estes igualmente reconhecem logo em mim o freguês escolado, curtido em todos os amargos, navegador de longo curso.
Todo freqüentador de bar tem o direito eventual de embriagar-se convenientemente uma vez por outra. Quem vende bebida deve ser linchado quando exige de seus fregueses comportamento de casa de chá. Aclarados neste ponto, podemos afirmar que o maior inimigo do bar e do alcoolismo é o mau bebedor que bebe anos a fio e não aprende a beber, o bebedor diariamente chato, incapaz de entender o tácito acordo de amabilidade e contenção que existe entre todos os bons bebedores do mundo. Eu os conheço todos e os abomino. Conheço toda a imensa variedade da espécie (sentimentalóides, untuosos, agressivos, prolixos, confidenciais, pedantes, questionadores, inoportunos, monocórdios, babugentos, ressentidos etc. etc). Ah, se um dia eu pendurar o meu copo numa prateleira, e passar a beber em casa, podereis estar certos, contemporâneos, de que foram os maus bebedores que me levaram a este extremo!
Não defendo o alcoolismo, sr. Alcoólico Anônimo. Queira entender-me com um pouco mais de sutileza, se me faz o favor. Modestamente embora, falando do alto duma tribuna para uma platéia vazia, defendo é o homem. O uísque não me interessa, o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura, já confrangida por um destino obscuro, arrumada odiosamente em castas duma sociedade sanguessuga, uma sociedade engenhosamente arquitetada para triturar as classes de baixo a fim de transformar a matéria-prima em petróleo, aço, eletricidade, veículos, aparelhos domésticos, tecidos, alimentos. Segue-se a segunda fase do processo industrial: correias de transmissão levam estes bens terrestres ao alto-forno, que os transforma em palácios, iates, cavalos de corridas, jóias, amantes de luxos, em todas as formas de prazer e domínio sobre a vida. Mas os ricos também bebem, e quanto! Bebem às vezes por má consciência, outras por má educação, e bebem porque todos os bens terrestres são fantasias que se desfazem de repente ao hálito da morte. Pois o que advogo no meu desespero-dialético é a melhor distribuição das fantasias terrestres. Será a única maneira eficiente de reduzir o alcoolismo. A máquina social cria sobre o indivíduo uma inumerável série de compreensões, que o desequilibram e infelicitam. O alcoolismo é uma das variadíssimas conseqüências desse extraordinário mal-estar coletivo. Transpondo a porta do bar, o homem age com toda a pureza e inocência, buscando fugir ao sofrimento, tentando cumprir a sua vocação para o prazer; se encontra no bar um novo mal, a degradação, o desemprego, a debilitação orgânica, a morte prematura, isto é outra história. A história triste das drinking classes.















