quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Adélia Prado, "Amor".

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

João Câmara, "Ema"

Pedro Homem de Mello, "Sinceridade".

Deixa que eu beije
Teus olhos que me viram!

Mas não beijes os meus
Que te mentiram…

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Ferreira Gullar, "Falar".

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

Lasar Segall. "Encontro"

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Gastão Cruz, " Relatório em forma fechada".

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam

Maria Callas, "Casta Diva", ária da ópera Norma, de Vincenzo Bellini

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dalila Teles Vera, "Pensamentos luxuriosos"

                                             
                                          Ver-te.Tocar-te.Que fulgor de máscaras 
                                                            (Hilda Hilst)


Pensava nele

quando a seda do vestido
tocou-lhe as coxas
eriçando-lhe os pêlos
(asas a roçar o espírito
tocha a incendiar a carne)

Pensava nele

quando a voz de Maria Callas
alcançou a nota mais aguda
- L'altra notte in fondo al mare -
invocando Mefistofele
(setas fálicas a zumbir junto aos ouvidos
aromas de sândalo a embebedar os sentidos)

De tanto nele pensar
devorou a si própria
l u x u r i o s a m e n t e
(espírito é só carne)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Carlos Chambelland, "Paisagem do Rio de Janeiro"

Paulo Henriques Britto, "Fisiologia da composição"

Também os anjos mudam de poleiro
de vez em quando, se rareia o alpiste
indeglutível que é seu alimento.

Porém você não se conforma, e insiste,
procura em vão possíveis substitutos
que tenham o efeito de atrair de volta

esses seres ariscos, esses putos
que se recusam a ouvir os teus apelos,
como se fossem mesmo coisas outras

que não a tua própria vontade de tê-los
sempre a postos, em eterna prontidão,
a salpicar na tua boca ávida

o alpiste acre-doce da ( com perdão
da péssima palavra ) inspiração.

Mario Quintana


Vida

Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens:
aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Sansor Flexor, "Retrato".

Cecília Meireles, "Até quando ..."

Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?