sábado, 31 de janeiro de 2015

Raul de Leoni, "Vivendo"


Nós, incautos e efêmeros peregrinos,
vaidosas sombras desorientadas,
Sem mesmo olhar o rumo das passadas
- Vamos andando para fins distantes...

Então, sutis, envolvem-nos ciladas
De pequenos acasos inconstantes,
Que vão desviando a todos os instantes,
A linha leviana das estradas...

Um dia, todo a fim a que chegamos,
Vem de um nada fortuito, entretecido
Nas surpresas das horas em que vamos...

Para adiante! Ó ingênuos peregrinos!
Foi sempre por um passo distraído
Que começaram todos os destinos...

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

"Sobrevivente russo identifica um guarda que espancava brutalmente os prisioneiros no Campo de Concentração de Buchenwald ".
















Copiado do site http://historicaltimes.tumblr.com/post/109393748347/a-russian-surv

Jorge de Lima, "Paixão e Arte"


Ter Arte é ter Paixão. Não há Paixão sem verso...
O Verso é a Arte do Verbo — o ritmo do som...
Existe em toda a parte, ao léu da Vida, asperso
E a Música o modula em gradações de tom...

Blasfemador, ardente, amoroso ou perverso
Quando a Paixão que o gera é Marília ou Manon...
Mas é sempre a Paixão que o faz vibrar diverso:
Se o inspira o Ódio é mau, se o gera o Amor é bom...

Diz a História Sagrada e a Tradição nos fala
Dum amor inocente, (o mais alto destino):
A Paixão de Jesus, o perdão a Madala.

Homem, faze do Verso o teu culto pagão
E canta a tua Dor e talha o alexandrino
A quem te acostumou a ter Arte e Paixão.



quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Abgar Renault













"Tarde feia"

Esta tarde é uma mulher feia,
exausta de esperar o amor,
que se esvaziou e ficou cheia
de velhos pensamentos tristes,
de imagens d'água e de sol-por.
Por que é que, feia assim, existes,
tarde sem olhos e sem crianças?
Teus sonhos e teus namorados
atrás de ontem sem esperanças
foram lançados e amassados,
vozes, beijos, luz, cal, argila.
Canção nenhuma, nem uma asa,
nem uma estrela de safira,
nem céu, nenhuma aberta casa
a encher com seu humano cheiro
o fim deste dia sem data;
as portas frias, o canteiro
intacto e fosco, a rua abstrata
sem horizonte lá no fundo,
que as sombras e o silêncio comem.
Ah como pesa mais o mundo
sem a presença escura do homem!

terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Maria Helena Vieira da Silva, "Testamento".


Lego aos meus amigos
um azul cerúleo para voar alto
um azul cobalto para a felicidade
um azul ultramarino para estimular o espírito
um vermelhão para fazer circular o sangue alegremente
um verde musgo para acalmar os nervos
um amarelo ouro: riqueza
um violeta cobalto para sonhar
um garança que faz ouvir o violoncelo
um amarelo barite: ficção científica, brilho, resplendor
um ocre amarelo para aceitar a terra
um verde veronese para a memória da primavera
um anil para poder afinar o espírito pela tempestade
um laranja para exercer a visão de um limoeiro ao longe
um amarelo limão para a graça
um branco puro: pureza
terra de siena natural: a transmutação do ouro
um preto sumptuoso para ver Ticiano
uma terra de sombra natural para aceitar melhor a melancolia negra
uma terra de siena queimada para noção de duração

 

domingo, 25 de janeiro de 2015

Alexei Bueno, "Despedida"


Senhores, me encomendem
Um ataúde violeta
E escrevam com cor preta
Das que não se desprendem
Esta frase de esteta:

Assim: "Descanse em paz"
E então, para o caixão,
Colham ervas do chão
E urtigas infernais,
Não ponham flores não.

Vestido de palhaço
Com galochas nos pés,
Nos dedos nove anéis,
E um gesso em cada braço,
Com as roupas ao revés,

Assim levem-me embora!
Ridículo e atroz,
Corado a pó de arroz!...
Um corpo, a alma fora,
E enfim iguais os dois.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Greta Benitez

 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
"Check-in"
 

Não me importa entrar pela porta arabescada
Do desespero
Descer
Inferno
Destempero
Desequilíbrio
Certas cordas sem rede de proteção
Fogo
Carvão
Súcubos
Exus
Sereias amaldiçoadas, super-heróis do avesso
Nada disso me assusta
Se tiver certeza de que na saída

Eu estarei do lado de fora esperando por mim.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Tomás António Gonzaga, "Soneto"

 
Num fértil campo de soberbo Douro,
Dormindo sobre a relva, descansava,
Quando vi que a Fortuna me mostrava
Com alegre semblante o seu tesouro.
 
De uma parte, um montão de prata e ouro
Com pedras de valor o chão curvava;
Aqui um cetro, ali um trono estava,
Pendiam coroas mil de grama e louro.
 
 Acabou – diz-me então – a desventura:
De quantos bens te exponho qual te agrada,
Pois benigna os concedo, vai, procura.
 
Escolhi, acordei, e não vi nada:
Comigo assentei logo que a ventura
Nunca chega a passar de ser sonhada.
 

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Murilo Mendes, "Vidas opostas de Cristo e dum homem"


Senhor do mundo,
cada vez que ressuscitas um homem, me destruo a mim mesmo.
Enquanto o demônio te tenta no deserto
eu sonho com os corpos que a terra criou.
Enquanto passas fome e sede quarenta dias
os meus sentidos se desalteram.

Cada vez que cais ao peso da tua cruz
eu caio com uma mulher de última classe.

Enquanto te multiplicas na humanidade
não saio dos limites da minha pessoa.

Depois da morte voltas pra absolver o justo e o pecador,
eu antes da morte já condenei o pecador, o justo e eu mesmo.

Senhor do mundo,
me tira de mim pra que eu possa olhar os outros e eu mesmo.

 

terça-feira, 20 de janeiro de 2015

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Alberto de Lacerda, "No túmulo de Mário de Sá-Carneiro, Suicidado pelos Portugueses em Paris""


A maior cobardia talvez seja
Entrar no jogo, permitir a luta.
Nem céu estrelado ou tecto sumptuoso
Nos esperam, na trágica permuta.

A maior cobardia talvez seja
Ouvir quem nunca ouve, olhar os cegos,
Deixar que a pata vil quotidiana
Nos pise satisfeita dos seus pregos.

dispersão mas não indícios de oiro .
Só o dinheiro existe e um bom lugar.
Um homem que se preza põe a morte
Por suas próprias mãos a trabalhar.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Manuel Alegre, "Soneto"


É preciso saber por que se é triste
é preciso dizer esta tristeza
que nós calamos tantas vezes mas existe
tão inútil em nós tão portuguesa.

É preciso dizê-la é preciso despi-la
é preciso mata-la perguntando
porquê esta tristeza como e quando
e porquê tão submissa tão tranquila.

Esta tristeza que nos prende em sua teia
esta tristeza aranha esta negra tristeza
que não nos mata nem nos incendeia

antes em nós semeia esta vileza
e envenena na nascer qualquer ideia.
É preciso matar esta tristeza.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Al Berto, "Os amigos"


no regresso encontrei aqueles
que haviam estendido o sedento corpo
sobre infindáveis areias

tinham os gestos lentos das feras amansadas
e o mar iluminava-lhes as máscaras
esculpidas pelo dedo errante da noite

prendiam sóis nos cabelos entrançados lentamente
moldavam o rosto lívido como um osso
mas estavam vivos quando lhes toquei depois
a solidão transformou-os de novo em dor
e nenhum quis pernoitar na respiração
do lume

ofereci-lhes mel e ensinei-os a escutar
a flor que murcha no estremecer da luz
levei-os comigo
até onde o perfume insensato de um poema
os transmudou em remota e resignada ausência

 

quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Antigo piso grego em mosaico, recentemente escavado na Turquia, perto da fronteira com a Síria.














Copiado do site http://isimeria.tumblr.com/post/108050154680/stunningpicture-this-stunning-ancient-greek

Odylo Costa, filho, "Amor calado"


Ainda que o canto desça, de atropelo
como abelhas no enxame alucinante
em torno a um tronco, e me penetre pelo
ouvido, em sua música incessante,


juro a mim mesmo: nunca hei de escrevê-lo.
Hei de fechá-lo em mim como diamante
dentro da pedra feia. Hei de escondê-lo
na minha alma cansada e navegante.


E nunca mais proclamarei que te amo.
Antes o negarei como os namoros
secretos de menino encabulado.


Que se cale este verso em que te chamo.
Cessem para jamais risos e choros.
Meu amor mineral é tão calado!


quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

terça-feira, 13 de janeiro de 2015

Murilo Mendes, "Solidariedade"


Sou ligado pela herança do espírito e do sangue
Ao mártir, ao assassino, ao anarquista.
Sou ligado
Aos casais na terra e no ar,
Ao vendeiro da esquina,
Ao padre, ao mendigo, à mulher da vida,
Ao mecânico, ao poeta, ao soldado,
Ao santo e ao demônio,
Construídos à minha imagem e semelhança.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Yêda Schmaltz, "Planalto Central"


Se eu abrir esta janela,
não mais verei o mar salgado e as montanhas
e não verei as praias com suas conchas,
os veleiros, as brumas, tana espuma
e nem o encanto alegre das amendoeiras.

Se eu abrir esta janela,
verei mongubas e paineiras;
nenhuma pedra ou montanha: árvores baixas,
retorcidas, parecendo um sofrimento,
verei águas azuis e doces, sem balanços
e um sol, um sol de tudo, um sol de rei.

Se eu abrir esta janela agora,
enxugando com as costas da mão o suor da testa,
de certa forma, apertando os olhos, me verei:
é assim o mundo que eu entendo e gosto -
meu mar salgado é no rosto.

domingo, 11 de janeiro de 2015

sábado, 10 de janeiro de 2015

Paulo Mendes Campos













"Três coisas"

Não consigo entender
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo é muito comprido
A morte não tem sentido
Teu olhar me põe perdido

Não consigo medir
O tempo
A morte
Teu olhar

O tempo, quando é que cessa?
A morte, quando começa?
Teu olhar, quando se expressa?

Muito medo tenho
Do tempo
Da morte
Do teu olhar

sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Fernando Pessoa - Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"














Capítulo 80.

INTERVALO DOLOROSO

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.

Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios de pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro tênue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.

Raciocinar a minha tristeza? Para quê, se o raciocínio é um esforço e quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!

Eu não teria o horror à vida como uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um  refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.

Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão falho de gestos e de actos.


Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar à clareira da angústia.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhece-las durezas. Todos os pesos visíveis de objectos me pesam por a alma a dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela.

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Joaquim Cardozo, "Chuva de caju"


Como te chamas, pequena chuva inconstante e breve?
Como te chamas, dize, chuva simples e leve.
Teresa? Maria?
Entra, invade a casa, molha o chão,
Molha a mesa e os livros.
Sei de onde vens, sei por onde andaste.
Vens dos subúrbios distantes, dos sítios aromáticos
Onde as mangueiras florescem, onde há cajus e mangabas,
Onde os coqueiros se aprumam nos baldes dos viveiros
E em noites de lua cheia passam rondando os maruins:
Lama viva, espírito do ar noturno do mangue.
Invade a casa, molha o chão,
Muito me agrada tua companhia,
Porque eu te quero muito bem, doce chuva,
Quer te chames Teresa ou Maria.

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

José Paulo Paes, "Acima de qualquer suspeita"


a poesia está morta

mas juro que não fui eu

eu até que tentei fazer o melhor que podia para salvá-la
imitei diligentemente augusto dos anjos paulo torres
carlos  drummond de andrade   manuel bandeira   murilo
mendes vladimir maiakóvski  joão cabral de melo neto
paul éluard  oswald de andrade   guillaume apollinaire
sosígenes costa bertolt brecht augusto de campos

não adiantou nada

em desespero de causa cheguei a imitar  um  certo (ou
incerto) josé paulo paes poeta de ribeirãozinho estrada
de ferro araraquarense

porém ribeirãozinho mudou  de nome a estrada  de ferro
araraquarense foi  extinta  e  josé paulo paes  parece
nunca ter existido

nem eu
 

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

domingo, 4 de janeiro de 2015

Frederico Barbosa













"Desexistir"

quando eu desisti
de me matar
já era tarde.

desexistir
já era um hábito.

já disparara
a auto-bala:
cobra-cega se comendo
como quem cava
a própria vala.

já me queimara.

pontes, estradas,
memórias, cartas,
toda saída dinamitada.

quando eu desisti
não tinha volta.

passara do ponto,
já não era mais
a hora exata.

sábado, 3 de janeiro de 2015

José Paulo Paes, "Florença: antidiluviana"


se um dilúvio levasse tudo menos esta
galleria degli uffizi
seria muito fácil reconstruir o mundo:
não como era
mas como deveria ter sido

 

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

Donizete Galvão














"Tapera"

Deixe que os morcegos
ocupem o forro
e as caixas de marimbondo
tomem conta dos seus cantos.
Deixe que a macega
suba pela escada até o alpendre
e prolifere nas rachaduras do reboco.
Deixe que o musgo
cubra o tampo da cisterna
e que os escorpiões
armazenem veneno sob os tijolos.
Nada dói mais do que a lembrança da casa,
encravada como um prego
que lateja na memória.