segunda-feira, 31 de julho de 2017

Vinicius de Moraes, "Soneto à Lua"


Por que tens, por que tens olhos escuros
E mãos lânguidas, loucas e sem fim
Quem és, que és tu, não eu, e estás em mim
Impuro, como o bem que está nos puros?

Que paixão fez-te os lábios tão maduros
Num rosto como o teu criança assim
Quem te criou tão boa para o ruim
E tão fatal para os meus versos duros?

Fugaz, com que direito tens-me presa
A alma que por ti soluça nua
E não és Tatiana e nem Teresa:

E és tampouco a mulher que anda na rua
Vagabunda, patética, indefesa
Ó minha branca e pequenina lua!

domingo, 30 de julho de 2017

Eucanaã Ferraz














"Aceite"

Ninguém nos verá. Os sapatos: mudos;
os corpos; transparentes; o aeroporto
finge que não houve. Ninguém ouvirá
de nós os passos sem cadarços.

Nossos passaportes? Sem fotos. Secreta
Viagem, para onde deixaremos de nós
algo tão belo (uma sílaba, uma letra?
um?) que parecerá imprestável

diante das flores insuportavelmente
doce do Aterro do Flamengo, prontas
para o frasco. Seremos um lugar
silencioso, liso, concentrado,

sem o olor dos parques abertos
à visitação, aos corredores, às bicicletas.
Uma viagem secreta.
Diga que sim,

que sim
(a beleza injustificada dos poemas,
a alegria dos cronópios, o clarão
do gozo, o ramo muito alto do riso).

Viajarmos até onde coubermos,
até onde quisermos a vontade.
Não levaremos a dor.
Não carregaremos medo.

Diga: sim! Depois combinamos
o resto. Marcaremos a data.
Etc. etc.
etc.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Darcy Damasceno














"Não mais à margem de algum rio escuto..."

Não mais à margem de algum rio escuto
Em fuga as águas, a que, um tempo, afeito,
Ouvidos dei, querendo-as cá no peito
Imagem minha, espelho do meu luto:
Antes, austero e coração enxuto,
Aos céus olhei, olhando-os bem ao jeito
De quem despiu metáfora e conceito
E viu no barro o triste do atributo.
Barro desnudo, barro desamado,
Sem rumor de onda e voz de primaveras,
Barro sujeito, mais que predicado,
E barro os olhos com que olhei, à beira
De um rio incerto, mas onde houve esperas,
Ó alma revel, prenúncio de poeira.

quinta-feira, 27 de julho de 2017

Nilo Aparecida Pinto, "Céu e areia"


Homem afeito às solidões terrenas!
Olha, em torno, o deserto que te oprime,
E hás de sentir que, em teu vazio, apenas,
Pesam teus dias, à feição de um crime.

Assim, batido de um simum* de penas,
Sem que te salve o Amor, grande a sublime,
Se ao fulgor das miragens te asserenas,
O infinito da ideia te comprime...

E ouve: por mais que, em sonhos delirantes,
Busques, além, como um deslumbramento,
Os teus oásis de ilusões distantes,

Verás tão só, no espaço em que te enleias,
A inútil vastidão do firmamento
Sobre a humildade inútil das estrelas!


*Simum - Vento quente e forte do deserto.

terça-feira, 25 de julho de 2017

Dantas Motta, "Corpo"


Nem velhice, nem mocidade.
Perdi a fé, o ouro, o gosto da alegria.
E uma tristeza talvez somente minha
Tem trânsito na solidão do meu corpo.

Corpo por onde a amargura caminha,
Frágil, sem mistério e sem mulheres.
A ele tanto se lhe dá este como aquele fato.
Uma gravata contudo não lhe fica mal.

Põe-lhe um sorriso. Beija-lhe a boca.
A boca afinal tem suas utilidades.
Depois, olhe-o trotando solene pelas avenidas.

O corpo então dança: se tem farda é general,
Trapo é mendigo, oração é fechado.
E é num corpo desses que eu caminho emprestado.

segunda-feira, 24 de julho de 2017

Cesário Verde














"Pró Pudor"

Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada a langorosa.

Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepção vertiginosa.

Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...

Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...

sábado, 22 de julho de 2017

Domingos Carvalho da Silva














"Anti-Kipling"

Se cresceres sinuoso como entre esguias
árvores cresce o cipó, meu filho,
ou se engordares no charco, como lodosa planta,
olha o azul do céu
que o mais não tem a mínima importância.

Águia ou chacal serás. O mundo
tudo comporta e o sol não discrimina
entre alcantis e pântanos.
Cometerás os pecados mais torpes
e eu te absolverei. Nada compromete
ou dignifica a vida. A verdade e a virtude
agonizam na mesma solidão do ataúde
onde os vermes e os ratos
não mais têm importância.

Estarás com Cristo, sem Cristo ou contra Cristo
e te importunarás num mundo desolado
e assaltado
pelos lobos do bem, pelas pombas do mal,
os cordeiros da guerra, os tigres da bonança.

Hás de amar alguém que um dia trairá
a tua confiança.
Poderás vingar-te na mulher de teu irmão,
na tua próprias irmã. Cometerás ainda
outros incestos sem nenhuma importância.

Se fores ausente a tudo - e isto nada importa -
e for teu sol brilhante, logo atrás
desse brilho acharás tua face morta
e a nada mais darás
a menos importância.

Mas se participares, sofreres, morreres
maldizendo a vida que foi tua única herança
 e teu pai e tua mãe e o mundo que, um dia,
te aborreceu do fórceps à última agonia,
na hora derradeira saberás ainda
que isso tudo não teve a mínima importância.

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Leis estranhas no Missouri (EUA)


-- É ilegal para um bombeiro salvar uma mulher ainda em suas roupas de dormir.
-- Homens solteiros, de 21 a 50 anos, devem pagar um imposto anual de US$ 1 (lei de 1820).
-- Quatro mulheres não podem alugar um apartamento juntas.
-- Sexo oral é ilegal.
-- Em Buckner: Refugos do jardim podem ser queimados a qualquer dia, menos aos domingos.
-- Em Columbia: Antenas externas são proibidas, mas antenas parabólicas, de até 25 polegadas, são permitidas. Também: Varais são proibidos, mas secar a roupa na cerca é permitido. Ainda: É proibido beber das 2h às 6h.
-- Em Marceline: Menores podem comprar fumo e papel para enrolá-lo, mas não isqueiros.
-- Em Marquette: Quatro pessoas sem parentesco não podem ocupar a mesma residência (Lei do Bordel).
-- Em Mole: Amedrontar um bebê é contra a lei.
-- Em St. Louis: É ilegal se sentar em um meio-fio, em qualquer rua da cidade, e beber cerveja em um balde. Também: O leiteiro em serviço não pode correr.

quarta-feira, 19 de julho de 2017

Geraldo Carneiro, "O espelho"



do outro lado um estranho
faz simulações como se fosse
um demônio familiar
é sempre noite, um assassino sonha
com mulheres assassinadas em série
sob as palmeiras de Malibu
o mundo é só uma ficção plausível
a imagem que baila ao rés-da-lâmina
é um último e improvável vestígio
da existência de Deus
o resto são ecos de outras faces
gestos de espanto e despedida
a música dos relógios, a morte

terça-feira, 18 de julho de 2017

Jorge de Lima, "Soneto IV do Canto IV (As aparições) da Invenção de Orfeu"


Era um cavalo todo feito em lavas
recoberto de brasas e de espinhos.
Pelas tardes amenas ele vinha
e lia o mesmo livro que eu folheava.

Depois lambia a página, e apagava
a memória dos versos mais doridos;
então a escuridão cobria o livro,
e o cavalo de fogo se encantava.

Bem se sabia que ele ainda ardia
na salsugem* do livro subsistido
e transformado em vagas sublevadas.

Bem se sabia: o livro que ele lia
era a loucura do homem agoniado
em que o incubo cavalo se nutria.


*Salsugem - Lodo que contém substâncias salinas.

domingo, 16 de julho de 2017

Ruy Espinheira Filho, "Soneto noturno"


Penso na noite como um rio profundo
e lembro coisas deste e de outro mundo.
Outros mundos, aliás, que a vida é vasta
como diversa. E mesmo assim não basta,

o que nos faz tecer ainda outras vidas
nas nuvens da alma, e que nos são vividas
com tanta força quanto as outras mais,
em seus sonhos de agora e de jamais

(ou melhor: com mais força, pois estamos
ainda mais vivos no que nos sonhamos).
Penso na noite como um mar sem fim

quebrando sombras sobre o cais de mim.
E, enfim, sem esperanças e sem prece,
pressinto a noite que não amanhece.

sábado, 15 de julho de 2017

Nuno Rau, "today, that’s the question"


                                                              para Geraldo Carneiro

a forma fixa: o conteúdo não,
a mente é livre, o pensamento inquieto,
e exposto a mais esta contradição
cometo – extemporâneo – outro soneto.
O que me trouxe o uso da Razão
não sei dizer se é bom ou mau, exceto
que me arranharam fundo o coração
uns versos íntimos, um mal secreto.
Nunca aceitei o Tempo que me coube
ou por erro escolhi – e ser barroco,
parnasiano, moderno, pop, concreto,
no meu to be or not eu nunca soube:
“a vida, com seu desconcerto louco,
fugiu de vez da cela dos sonetos?”

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Francisco Marcelo Cabral



"Ars Poetica"

O leitor se assenta
a poesia puxa a cadeira
a poesia é o tombo.

O leitor se enleva
o poeta o empurra no abismo
a poesia é o voo.

O leitor se esquece
o poeta o sacode aos berros
a poesia é o susto.

O leitor é a ninfa
o poeta, o fauno no cio
a poesia é o gozo.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

Adriano Espínola















"Fragmentos de uma poética do lugar"

E daí, se eu não fui para as montanhas,
encher minhas mãos de calos,
tomar banho de cuia,
plantar milho e versos
caipiras ao amanhecer?
.........................................

E daí, se eu não zarpei em uma jangada,
passei duas semanas no mar
e não voltei triunfante
com um caçuá na mão?
.........................................

Mas o que eu vejo é a cidade.

A poesia, companheiro, está onde se é.
O resto vem na imaginação.

Não necessita de ser buscada
no topo das montanhas não-mágicas,
no sal dos sacrifícios
ou no suor dos lavradores distantes.

Quanto esforço!

A mim me basta vê-la (onde estou),
no meio da rua,
desritmada como a vida,
entrando
           na contra-mão,
                               correndo,
           apertando-se
(dentro dos ônibus e do salário)
      tropeçando na multidão,
............................................
seguindo
pelas ruas da memória & do esquecimento,
           lá fora/
                                 no centro,
           cá dentro
           de mim mesmo ou dos subúrbios
.............................................

(Se eu vivesse noutro lugar,
a poesia estaria naturalmente        
                                     noutro lugar,
mesmo se eu imaginasse o contrário disso tudo).

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Francisco Marcelo Cabral, " Outro talvez te amasse mais ameno..."


Outro talvez te amasse mais ameno,
ou mais terras de além, praias e espantos;
outro talvez, outrora, ora sereno,
ora crispada crista, espuma e planctos,
te afagasse com o falso desempeno
de longilíneos enfunados mantos;
eu te quero sem planos, mas tão pleno,
que nem tento um intento e eles são tantos;
eu te quero tão manso e tão intenso,
que o senso verdadeiro não alcanço:
olha o mar, olha o mar como é imenso,
olha bem como é belo o seu balanço!
Quero te amar amargurado e denso
Com inventos de vento e sem descanso.

domingo, 9 de julho de 2017

José Paulo Paes, "Il poverello"


Desgrenhado e meigo, andava na floresta.
Os pássaros dormiam em seus cabelos.
As feras o seguiam mansamente.
Os peixes bebiam-lhe as palavras.

Dentro dele todo o caos se resolvera
Numa ingênua certeza: - “Preguei a paz,
Mostrei o erro, domei a força, curei o mal.
Antes de mim, o crime. Depois de mim, o amor.”

Mas a floresta esqueceu, no outro dia,
O bíblico sermão e, novamente,
O lobo comeu a ovelha, a águia comeu a pomba,
Como se nunca houvera santos nem sermões.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

Glauco Flores de Sá Brito, "Sentados frente a frente"


Rosto estranho a meu reino
                            de solidão
que de repente acorda
todo meu gosto de abismos

Corpo demais pressentido
Nova fórmula do mito
                         terreno

Subitamente o desejo
enorme impossível
estende entre nós um grito
sem som, inaudível apelo

Separa-nos somente a mesa
copos, garrafas, destino


quinta-feira, 6 de julho de 2017

Antero de Quental, "1º dos poemas do 'Elogio da Morte'"


                                              Morrer é ser iniciado
                                                (Antologia grega)

Altas horas da noite, o Inconsciente
Sacode-me com força, e acordo em susto.
Como se o esmagassem de repente,
Assim me pára o coração robusto.

Não que de larvas me povoe a mente
Esse vácuo nocturno, mudo e augusto,
Ou forceje a razão por que afugente
Algum remorso, com que encara a custo...

Nem fantasmas nocturnos visionários,
Nem desfilar de espectros mortuários,
Nem dentro de mim terror de Deus ou Sorte...

Nada! o fundo dum poço, húmido e morno,
Um muro de silêncio e treva em torno,
E ao longe os passos sepulcrais da Morte.

terça-feira, 4 de julho de 2017

Nuno Rau, "por dentro, por fora"


vivendo pela margem, neste exílio
de uma pátria que não existe, a não
ser na mais absurda alucinação,
nenhum dia me abre o seu sentido;
mas isso é por dentro: além do corpo,
mundo afora, as coisas seguem normais
em seu destino, superficiais
até o limite e assim é o mundo todo;
só que isto é por fora: sob estas coisas,
sob a pele das coisas arde um tal
incêndio, uma inconstância, um vago mal
estar sem ponto fixo, entre as doidas
vertigens da espiral que é pensar,
via inútil entre as muitas que há.

segunda-feira, 3 de julho de 2017

Teixeira de Pascoaes











"Ao crepúsculo"

Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!
É a hora, sim, do Enigma. Eis o momento
Da extrema-unção da luz... E tudo vai
Com ela. E só nos fica o pensamento!

Pela flor que murchou no esquecimento;
Pela asa que se eleva e logo cai;
Pelo sol, pelas nuvens, pelo vento,
Ó tristes lábios meus, rezai, rezai!

Rezai por tudo quanto a morte leva,
Nas horas doloridas, em que a treva
Mostra seu negro vulto que arrepia...

E sinto, em mim, um vago horror profundo,
Uma tristeza já de fim do mundo,
Como se nunca mais houvesse dia...

sábado, 1 de julho de 2017

João Cabral de Melo Neto, "Autobiografia de um só dia"


                            A Maria Dulce e Luiz Tavares 

No Engenho Poço não nasci:
minha mãe, na véspera de mim,

veio de lá para a Jaqueira,
que era onde, queiram ou não queiram,

os netos tinham de nascer,
no quarto-avós, frente à maré.

Ou porque chegássemos tarde
(não porque quisesse apressar-me,

e se soubesse o que teria
de tédio à frente, abortaria)

ou porque o doutor deu-me quandos,
minha mãe no quarto-dos-santos,

misto de santuário e capela,
lá dormiria, até que para ela,

fizessem cedo no outro dia
o quarto onde os netos nasciam.

Porém em pleno Céu de gesso,
naquela madrugada mesmo,

nascemos eu e minha morte,
contra o ritual daquela Corte

que nada de um homem sabia:
que ao nascer esperneia, grita.

Parido no quarto-dos-santos,
sem querer, nasci blasfemando,

pois são blasfêmias sangue e grito
em meio à freirice de lírios,

mesmo se explodem (gritos, sangue),
de chácara entre marés, mangues.