quinta-feira, 31 de maio de 2012

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Manuel Bandeira"


Que fraterna ternura não te inclina
ao que é simples e puro, ao que na vida
resta humilde, perdido, e a comovida
alma recebe e, amando-o, se ilumina!

Um camelô ingênuo é que te ensina
doce lição de infância... A voz dorida
lembra os carvoeirinhos...E em surdina
a criança que a criatura já vivida

leva no peito, canta... A permanência
da infância é que te assegura tal pureza
à poesia que de tudo extrais,

a poesia, fonte de inocência,
que transfigura a humana natureza
e em ti palpita como em mais ninguém.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Luís Veiga Leitão, "Domingo".

Hoje é domingo ?  Não e sim.
Para ser dia que se vive
mergulho as mãos em mim
e tiro os domingos que tive.

(Na época, o poeta estava na prisão.)

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mário Faustino, "Soneto branco"


E quando a luz e o vento me deixaram,
Negro e silente, fulcro do horizonte,
Mil vezes me acordei, e mais dormiam
Em mim, tão dormentes, que arrancar
Do verdadeiro a máscara foi duro;
Vi-me, entretanto, hirsuto e nu, presente;
E aprendi mais, naquele frio estar
Ali, que entre os doutores e os ladrões;
E muito que antes dava como oposto,
Imigo, adverso, carne e estrela, vi
Amar-se e penetrar-se, fogo e mar
Gerando esta cidade palpitante,
Feita de sangue e flama e grito, um só
Candente ser humano que me chama.

domingo, 27 de maio de 2012

sábado, 26 de maio de 2012

Miguel Torga















"Mensagem"

Não me posso render, haja o que houver.
Salvar a vida pouco me adianta.
O pendão que levanta
A minha decidida teimosia
Transcende a noite e o dia
De uma breve e terrena duração.
Mas assim:
Desprendido da própria perdição.

É o espírito da terra que eu defendo,
Numa cega constância
De namorado:
Esta causa perdida em cada instância,
E sempre a transitar de tempo e de julgado.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

José Régio, "Epitáfio para um poeta"


As asas não lhe cabem no caixão!
A farpela* de luto não condiz
Com seu ar grave, mas, enfim, feliz;
A gravata e o calçado também não.
Ponham-no fora e dispam-lhe a farpela!
Descalcem-lhe os sapatos de verniz!
Não vêem que ele, nu, faz mais figura,
Como uma pedra ou uma estrela?
Pois atirem-no assim à terra dura,
Ser-lhe-á conforto:
Deixem-no respirar ao menos morto!

* Farpela -  roupa.


quarta-feira, 23 de maio de 2012

Cecília Meireles, "PISTÓIA - Cemitério Militar Brasileiro".



Eles vieram felizes, como
para grande jogos atléticos:
com um largo sorriso no rosto,
com forte esperança no peito,
- porque eram jovens e eram belos.

Marte, porém, soprava fogo
por estes campos e estes ares.
E agora estão na calma terra,
sob estas cruzes e estas flores,
cercados por montanhas suaves.

São como um grupo de meninos
num dormitório sossegado,
com lençóis de nuvens imensas,
e um longo sono sem suspiros,
de profundíssimo cansaço.

Suas armas foram partidas
ao mesmo tempo que seu corpo.
E, se acaso sua alma existe,
com melancolia recorda
o entusiasmo de cada morto.

Este cemitério tão puro
é um dormitório de meninos:
e as mães de muito longe chamam,
entre as mil cortinas do tempo,
cheias de lágrimas, seus filhos.

Chamam por seus nomes, escritos
nas placas destas cruzes brancas.
Mas, com seus ouvidos quebrados,
com seus lábios gastos de morte,
que hão de responder estas crianças?

E as mães esperam que ainda acordem,
como foram, fortes e belos,
depois deste rude exercício,
desta metralha e deste sangue,
destes falsos jogos atléticos.

Entretanto, céu, terra, flores,
é tudo horizontal silêncio.
O que foi chaga, é seiva e aroma,
- do que foi sonho, não se sabe -
e a dor anda longe, no vento...

terça-feira, 22 de maio de 2012

Carlos Drummond de Andrade











"Sentimento do mundo"

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.

domingo, 20 de maio de 2012

Ibn Darrãj Al-Qastalli, "Pois não sabes ..."


Pois não sabes, minha amiga,
    Que ficar é morrer
E que a morada do cobarde é o seu túmulo?
O perigo me dará a recompensa.
Não viste o voo das aves da noite
Por ti afugentadas? Não auguraram,
Voando pela direita, que era tempo de alegria?
Ensinaram-me a temer longas viagens,
Mas são o meio de beijar a mão de Almançor*.
Venha, pois, a água salobra dos desertos
Para alcançar a torrente límpida da generosidade!
Quando a minha amiga veio para o adeus
Trouxe soluços e suspiros, inimigos da coragem,
E suplicou-me: Em nome do nosso amor, em nome da paixão!
No berço ficava nosso filho: Um menino chorando,
Que não falava, mas através do olhar
Me trespassava a alma.
Mas nem a dona de mim
Nem meu filho das entranhas
Fizeram que obedecesse.
E na ânsia da viagem
Eis que, por fim,
   Eu parti...

* Almançor -Abu Amir Muhammad Ibn Abdullah Ibn Abi Amir, Al-Hajib Al-Mansur foi o governador de Al-Andalus, antigo nome árabe da região da Andaluzia na Espanha.
Seu governo marcou o auge do império Omíada na Península Ibérica.

Ibn Darrãj Al-Qastalli nasceu em Cacela (Portugal- Algarve) em 958 e morreu em 1038.


Tradução de Adalberto Alves, do livro "O meu coração é árabe".



sábado, 19 de maio de 2012

Juan Ramón Jimenez, "Desfolhei-te ..."


Desfolhei-te, como uma rosa,
para ver tua alma,
e não a vi.
                  Mas tudo em teu redor
- horizontes de terras e de mares -,
tudo, até ao infinito,
transbordou de uma essência
imensa e viva.

Tradução de José Bento.

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Li Tai-Po, "A rosa vermelha"


A esposa do guerreiro esta sentada à janela.
De coraçao aflito, borda uma rosa branca numa almofada de seda.
Picou-se no dedo! Seu sangue corre na rosa branca, que se torna vermelha.

Seu pensamento vai ter com seu amado, que esta na guerra,
e cujo sangue tinge, talvez, a neve de vermelho.

Ouve o galope de um cavalo... Chega, enfim, seu amado? 

É apenas o coraçao que lhe salta com força no peito...

Curva-se mais sobre a almofada e borda com prata
as lágrimas que cercam a rosa vermelha.

Tradução de Cecilia Meireles


Li Tai-Po, ou Li Po, ou Li Bai, foi um poeta chinês da Dinastia Tang, que viveu entre os anos 701 e 762.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

Paulo Henriques Britto, "Esse rosto que me olha"


Esse rosto que me olha de esguelha
(talvez para não ser reconhecido)
não é o mesmo que ontem vi no espelho,

o rosto familiar de um velho amigo
que desde sempre eu via à minha frente
e que no entanto agora anda sumido.

Não. Este novo é um rosto diferente,
de quem está ali a contragosto,
só por honra da firma, e se ressente

da obrigação de refletir um rosto
que
— fora um ou outro aspecto físico
que nada significa
— é o seu oposto.

(Um dos dois rostos é um impostor, no mínimo.
Um dos dois vai ouvir: Para com isso,
porra. É com você mesmo, seu cínico.)





segunda-feira, 14 de maio de 2012

Jorge Luis Borges, "Não és os outros"


Não haverá de salvar-te o que deixaram
Escrito aqueles que teu medo implora;
Não é os outros e te vês agora
Centro do labirinto que tramaram
Os teus passos. Não te salva a agonia
De Jesus ou de Sócrates nem o forte
Siddhartha de ouro que aceitou a morte
Em um jardim, ao declinar o dia.
É pó também esta palavra escrita
Por tua mão ou o verbo pronunciado
Por tua boca. Não há lástima no fado
E a noite de Deus é infinita.
Tua matéria é o tempo, o incessante
Tempo. Tu és todo solitário instante.

domingo, 13 de maio de 2012

Roberto Piva, "Piazza VIII"


Eu aprendi com Rimbaud
   & Nietzsche os meus
   toques de INFERNO
(Anjos de Freud),
         sustentai-me!)
& afirmando isto
   através dos quartos sem tetos
   & amores azuis
eu corro até a colher de espuma fervente
   driblando-me no cemitério
faminto da última FOME
com tumbas & amantes cheios de pétalas
porque o céu foi nossa última esperança
   esta noite

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Konstantinos Kaváfis, do livro "Reflexão sobre poesia e ética"


Da impressão, ou pouco depois dela, surge o poema.
A impressão - sensual ou intelectual - era viva e sincera: o poema (não forçosamente porque ela o fosse, mas por uma feliz coincidência) também é belo, vivo e sincero. O tempo passa. A impressão - seja pelo concurso de outras circunstâncias antes desconhecidas, seja pelo desenvolvimento das coisas ou pessoas que a suscitaram - parece agora vã e risível. Assim também o poema. Não sei se isto é justo. Por que deslocar o poema na atmosfera de 1908? (Ainda bem que os poemas são muitas vezes crípticos*; podem assim acomodar-se a outros sentimentos ou circunstâncias conexas).

* - adj (cripta+ico) 1 Biol. Que vive em cavernas. Pertencente ou relativo a cripta (acepção 4). 3 Secreto, oculto, escondido. 4 Enigmático, misterioso, obscuro.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Eucanaã Ferraz, "Mais doce"


Confesso: não pude desamar de ti.
Tornei-me, então, tua mãe.

Afinal, não serias o meu homem,
eu sabia. Não vacilei, e dedico-me

à condição mais intestina,
mais doce - a de quem cozinha,

cose, espera, cala, tece,
aconselha, espera, vela

(mesmo que não, é como se fosse),
à condição de quem vê passar

o tempo no cabelo, nos gestos,
nas histórias, nos amigos, nos dentes

do seu pequeno príncipe, do seu dolorido,
do seu príncipe feliz.

Porque não me querias como homem,
porque não poderia ser teu pai,

restou-me não ser menos que este amor
que segue ao teu lado

mesmo quando é tão distante teu caminho,
teu silêncio, teu passo rápido, teu sonho.

Choro,
que o destino das mães é sempre triste.

Porque é triste não poder ser
a mulher do seu menino.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Casimiro de Brito, "Do poema"


O problema não é
meter o mundo no poema; alimentá-lo
de luz, planetas, vegetação. Nem
tão pouco
enriquecê-lo, ornamentá-lo
com palavras delicadas, abertas
ao amor e à morte, ao sol, ao vício,
aos corpos nus dos amantes -

o problema é torná-lo habitável, indispensável
a quem seja mais pobre, a quem esteja
mais só
do que as palavras
acompanhadas
no poema.

domingo, 6 de maio de 2012

Ibn 'Ammãr, "Bom é que não esqueçais..."

Bom é que não esqueçais
Que o que dá ao amor rara qualidade
É a sua timidez envergonhada.
Entregai-vos ao travo doce das delícias
Que filhas são dos seus tormentos.
Porém, não busqueis poder no amor...
Que só quem da sua lei se sente escravo
Pode considerar-se realmente livre.

Tradução de Adalberto Alves.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Jacqueline du Pré, "3º mov. (allegro molto) do 1º Concerto para violoncelo de Haydn", com a English Chamber Orchestra, e regência de Daniel Barenboim.

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Que"

Que fizemos a Deus ou que fez Deus a nós
para que a vida fosse este silêncio atroz?

Para que a vida fosse este vocabulário
que parece a aflição de peixes num aquário ?

Que fizemos a Deus por que Ele se doesse?
Ou que fez Deus a nós para que estremecesse

o precário pilar do nosso espanto
com a esperança (não mais) de ouvir-lhe a voz e o canto ?

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Antônio Carlos Secchin. "A casa não se acaba ..."

A casa não se acaba na soleira,
nem na laje, onde pássaros se escondem.
A casa só se acaba quando morrem
os sonhos inquilinos de um homem.

Caminha no meu corpo abstrata e viva,
vibrando na lembrança como imagem
de tudo que não vai morrer, embora
as maçãs apodreçam na paisagem.

Sob o ríspido sol do meio-dia,
me desmorono diante dela, e tonto
bato a porta de ser ontem alegria.

O silêncio transborda pelo forro.
E eu já não sei o que fazer de tanto
passado vindo em busca de socorro.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Luís Miguel Nava



















Na pele


O mar, venho ver-lhe a pele a rebentar
ao longo das falésias, o que sempre
me traz a exaltação desses rapazes que circulam
por Lisboa no verão.
O mar está-lhes na pele. Partilho
com eles os quartos das pensões baratas, sentindo as ondas
a avançar entre os lençóis. Perco-me à vista
da pedra onde o mar vem largar a pele.