sábado, 30 de abril de 2011

Mario Quintana


















" O mapa"

Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo…
(E nem que fosse o meu corpo!)

Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei…

Ha tanta esquina esquisita,
Tanta nuança de paredes,
Ha tanta moca bonita
Nas ruas que não andei
(E ha uma rua encantada
Que nem em sonhos sonhei…)

Quando eu for, um dia desses,
Poeira ou folha levada
No vento da madrugada,
Serei um pouco do nada
Invisível, delicioso

Que faz com que o teu ar
Pareça mais um olhar,
Suave mistério amoroso,
Cidade de meu andar
(Deste já tão longo andar!)

E talvez de meu repouso…

sexta-feira, 29 de abril de 2011

Miguel Torga, "Desfecho"

Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte).
Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente,
Do teu vulto calado,
E paciente...
E lutei, como luta um solitário
Quando, alguém lhe perturba a solidão
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.
Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Bach, "Passacaglia - BWV 582, 1", com Karl Richter

Pedro Weingartner, "Arredores de Bento Gonçalves"

Introdução às "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Estas são as "Cartas a um jovem poeta", de Rainer Maria Rilke, que encontrei pela rede.

Serei obrigado a publicar em cinco arquivos, porque o blog está recusando o tamanho total numa só postagem.

São dez cartas com as respostas de Rilke, enviadas a um certo Franz Xaver Kappus, que havia escrito ao poeta, pedindo-lhe a opinião sobre seus poemas.


Franz Kappus escreveu alguns livros de poemas e romances, sem atingir grande sucesso.

INTRODUÇÃO

Era o final do outono de 1902. Sentado no parque da Academia Militar em Wiener-Neustadt, sob castanheiros antiqüíssimos, eu estava lendo um livro. De tão profundamente mergulhado na leitura, mal notei quando o único não-oficial entre os nossos professores, Horacek, o bondoso e erudito capelão da academia, aproximou-se de mim. Ele pegou da minha mão o volume, observou a capa e balançou a cabeça.

- Poemas de Rainer Maria Rilke? - perguntou pensativo.

Folheou o livro, acompanhou um ou outro verso, lançou um olhar distraído para o vazio e, por fim, fez um gesto de assentimento com a cabeça.

- Então o aluno René Rilke se tornou um poeta.

Foi assim que fiquei sabendo de algumas informações acerca do jovem pálido e magro que os pais haviam inscrito, havia mais de quinze anos, na Escola Militar em Sankt Põlten, a fim de que ele viesse a ser um oficial. Naquele tempo, Horacek exercia sua função nessa escola, e ele ainda lembrava muito bem do antigo aluno. Descreveu-o como um rapaz quieto, sério, muito talentoso, que gostava de se manter afastado dos outros, suportava com paciência o constrangimento da vida de internato e, após o quarto ano, passou junto com os colegas para a Escola Superior Militar, que ficava em Mãhrisch-Weifíkirchen. Ali ficou evidente que a sua resistência física não era suficiente para seguir a carreira, por isso seus pais o tiraram da instituição e lhe permitiram que continuasse os estudos perto de casa, em Praga. Horacek não sabia dizer como a sua vida havia caminhado desde então.

Depois dessa conversa, é compreensível que eu tenha decidido, naquela mesma hora, enviar minhas tentativas poéticas a Rainer Maria Rilke e lhe pedir sua avaliação. Ainda antes de fazer vinte anos e no limiar de um emprego que eu sentia contradizer minhas inclinações, tinha esperança de que, caso alguém pudesse me compreender, seria o poeta de Mir zur Feier.2

Escrevi, para acompanhar meus versos, uma carta na qual me expunha sem reservas, com uma abertura que escapava ao meu controle, de maneira que nunca fizera antes e nunca voltaria a fazer para qualquer outra pessoa.

Várias semanas passaram até que a resposta chegasse. A carta pesada, lacrada com selo azul, tinha o carimbo do correio de Paris e exibia no envelope as mesmas letras claras, belas e seguras com que o texto fora escrito, da primeira à última linha. Com isso teve início minha correspondência regular com Rainer Maria Rilke, que durou até 1908, diminuindo gradativamente porque a vida me impeliu para regiões das quais o cuidado terno, delicado e tocante do poeta havia pretendido justamente me resguardar.

Mas isso não é importante. Só são importantes as dez cartas que se seguem, importantes para o conhecimento do mundo em que Rainer Maria Rilke viveu e criou, e importantes também para muitos dos que crescem e se transformam hoje e amanhã. Quando fala alguém grandioso e único, os pequenos têm de se calar.

Berlim, junho de 1929
Franz Xaver Kappus

Primeira e Segunda cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Primeira carta

Paris,
17 de fevereiro de 1903
Prezado Senhor,

Sua carta só me alcançou há poucos dias. Quero lhe agradecer por sua grande e amável confiança. Mas é só isso o que posso fazer. Não posso entrar em considerações sobre a forma dos seus versos; pois me afasto de qualquer intenção crítica. Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica: elas não passam de mal-entendidos mais ou menos afortunados. As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.

Feita essa observação prévia, posso lhe dizer ainda que seus versos não possuem uma forma própria, mas apenas indicações silenciosas e veladas de personalidade. Sinto esse tipo de indicação de modo mais claro no último poema, "Minha alma". Ali, algo de próprio quer ganhar expressão. E no belo poema "A Leopardi" talvez se desenvolva uma espécie de afinidade com aquele grande solitário. Apesar disso, os poemas ainda não são independentes, não têm autonomia, mesmo o último e o dedicado a Leopardi. Sua carta amável que os acompanha não deixou de me esclarecer alguma insuficiência que senti ao ler seus versos, sem no entanto ser capaz de designá-la pelo nome.

O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus versos para revistas. Faz comparações entre eles e outros poemas e se inquieta quando um ou outro redator recusa suas tentativas de publicação. Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples "Preciso", então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso. Então se aproxime da natureza. Procure, como o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite a princípio aquelas formas que são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes. Por isso, resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza - descreva tudo isso com sinceridade íntima, serena, paciente, e utilize, para se expressar, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante. Mesmo que estivesse em uma prisão, cujos muros não permitissem que nenhum dos ruídos do mundo chegasse a seus ouvidos, o senhor não teria sempre a sua infância, essa riqueza preciosa, régia, esse tesouro das recordações? Volte para ela a atenção. Procure trazer à tona as sensações submersas desse passado tão vasto; sua personalidade ganhará firmeza, sua solidão se ampliará e se tornará uma habitação a meia-luz, da qual passa longe o burburinho dos outros.

E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos. Também não tentará despertar o interesse de revistas por tais trabalhos, pois verá neles seu querido patrimônio natural, um pedaço e uma voz de sua vida. Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta para a questão de saber se precisa criar. Aceite-a como ela for, sem interpretá-la. Talvez ela revele que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou.

Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-lo). Mesmo assim não terá sido em vão o exame de consciência que lhe peço. Seja como for, sua vida encontrará a partir dele caminhos próprios, e que eles sejam bons, ricos e vastos é o que lhe desejo mais do que posso manifestar.

O que ainda devo dizer ao senhor? Parece-me que tudo foi enfatizado da maneira apropriada; por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento. Não há meio pior de atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranqüila.

Foi para mim uma alegria encontrar em sua carta o nome do professor Horacek; guardo uma grande estima por esse amável sábio, e uma gratidão que se mantém através dos anos. Por favor, mencione a ele o que sinto; é muita bondade que ainda se recorde de mim, e sei apreciá-la. Devolvo também os versos que o senhor me confiou amigavelmente. E lhe agradeço mais uma vez pela grandeza e pela cordialidade de sua confiança, de que procurei me tornar um pouco mais digno do que realmente sou, como um estranho, por meio desta resposta sincera, feita da melhor maneira que pude.

Com toda devoção e toda simpatia,
Rainer Maria Rilke


Segunda carta

Viareggio perto de Pisa (Itália),
5 de abril de 1903

É preciso que me perdoe, caro e prezado senhor, por só lembrar agora, com gratidão, de sua carta de 24 de fevereiro: passei todo esse tempo indisposto, não exatamente adoecido, mas como que oprimido por um abatimento parecido com o da influenza, que me deixou prostrado, incapaz para tudo. Por fim, já que não melhorava, viajei para este mar do sul, cujo efeito benéfico já me ajudou uma vez. Mas ainda não estou saudável, escrever ainda é algo difícil, sendo assim o senhor deve considerar estas poucas linhas como se fossem muitas.

Deve ter certeza de que sempre me alegrará com cada carta, só tem de ser indulgente em relação à resposta, que talvez venha a deixá-lo muitas vezes de mãos vazias. Pois, no fundo, e justamente quanto aos assuntos mais profundos e mais importantes, estamos indizivelmente sozinhos, de modo que muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez.

Hoje eu queria dizer apenas mais duas coisas ao senhor. Primeiro, quanto à ironia.

Não se deixe dominar por ela, principalmente em momentos sem criatividade. Nos momentos criativos, procure fazer uso dela como de mais um meio para abarcar a vida. Usada com pureza, ela também é pura, e não é preciso envergonhar-se dela. Caso a intimidade seja excessiva, caso o senhor tema essa crescente intimidade com a ironia, volte-se para assuntos grandes e sérios, diante dos quais ela se torna pequena e desamparada. Procure o fundo das coisas: ali a ironia nunca chega. Assim, se o senhor seguir seu caminho à beira do que é grandioso, pergunte-se também se esse modo de compreender o mundo corresponde a uma necessidade de seu ser. Pois, sob a influência de coisas sérias, ou a ironia o abandonará (se ela for algo ocasional), ou então ela ganhará força (se lhe pertencer como algo inato) e se converterá em uma ferramenta séria, assumindo seu lugar no encadeamento dos recursos com os quais o senhor terá de constituir sua arte.

E a segunda coisa que eu queria dizer hoje é o seguinte:

Dos livros que possuo, apenas alguns são indispensáveis, e só dois se encontram sempre entre as minhas coisas, onde quer que eu esteja. Eles também estão perto de mim por aqui: a Bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen. Não sei se o senhor conhece suas obras. Pode providenciá-las facilmente, pois uma parte delas foi publicada na Biblioteca Universal da editora Reclam, em ótima tradução. Providencie o volumezinho Seis novelas, de J. P. Jacobsen, e seu romance Niels Lyhne, então comece pela primeira novela daquele volume, chamada Mogens. Um mundo se abrirá para o senhor, a felicidade, a riqueza, a grandeza inconcebível de um mundo. Viva por algum tempo nesses livros, aprenda com eles o que lhe parecer digno de aprendizado, mas sobretudo os ame. Esse amor lhe será retribuído milhares e milhares de vezes, de modo que, seja qual for o rumo tomado pela sua vida, tenho certeza de que ele percorrerá o tecido de seu ser como um dos fios mais importantes entre todos os fios que compõem a trama de suas experiências, decepções e alegrias.

Se devo dizer com quem aprendi alguma coisa sobre a essência da criação, sobre sua profundidade e eternidade, só há dois nomes que posso mencionar: o de Jacobsen, do grande poeta, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas vivos hoje em dia.

Que tudo dê certo em seus caminhos!

Seu,
Rainer Maria Rilke

Terceira e Quarta cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Terceira Carta

Viareggio perto de Pisa (Itália),
23 de abril de 1903

Fiquei muito alegre, caro e prezado senhor, com sua carta de Páscoa, pois ela diz muitas coisas boas a seu respeito. O modo como o senhor falou da grande e amável arte de Jacobsen demonstrou que não me enganei ao encaminhar sua vida e suas várias questões em direção a essa abundância.

Agora o senhor descobrirá Niels Lyhne, um livro das glórias e das profundezas; quanto mais a gente o lê, parece que tudo se encontra nele, do mais leve perfume da vida até o gosto pleno e carregado de seus frutos mais pesados. Ali não há nada que não tenha sido entendido, apreendido, experimentado e reconhecido nas ressonâncias vibrantes da lembrança; nenhuma vivência foi ínfima demais, e o menor acontecimento se desdobra como um destino, o próprio destino é como um tecido maravilhoso, amplo, no qual cada fio é conduzido por dedos de uma delicadeza infinita, posto ao lado de outro fio, ligado a centenas de outros que o sustentam. O senhor experimentará a grande felicidade de ler esse livro pela primeira vez, passando por suas incontáveis surpresas como em um sonho renovado. Mas posso lhe dizer que, mesmo depois, o leitor volta sempre a percorrer esses livros com espanto, e que eles não perdem nada do seu poder fantástico, persiste seu caráter fabuloso, com o qual cumularam quem os leu pela primeira vez.

Sempre temos prazer com eles, ficamos cada vez mais agradecidos e, de algum modo, melhores, com uma visão mais simples, com uma fé mais profunda na vida e sendo mais afortunados e maiores nela.

Posteriormente, o senhor precisa ler o maravilhoso livro sobre o destino e sobre o anseio de Marie Grubbe, além das cartas, das páginas de diário e dos fragmentos de Jacobsen, passando por fim a seus versos, que (embora a tradução seja apenas mediana) vivem em ressonâncias infinitas. (Por isso, recomendo ao senhor que compre, quando tiver a oportunidade, a bela edição das obras completas de Jacobsen, que inclui tudo isso. Ela foi publicada em três volumes em Leipzig, com boa tradução de Eugen Diederichs, e custa, pelo que sei, apenas cinco ou seis marcos por volume.)

Com sua opinião sobre Aqui deveria haver rosas...3 (essa obra de incomparável refinamento e forma), o senhor certamente tem toda razão contra a pessoa que escreveu a introdução. Por isso, que fique registrado aqui, desde logo, um pedido meu: leia o mínimo possível textos críticos e estéticos - ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a visão contrária. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica. Apenas o amor pode compreendê-las, conservá-las e ser justo em relação a elas. Dê razão sempre a si mesmo e a seu sentimento, diante de qualquer discussão, debate e introdução; se o senhor estiver errado, o crescimento natural de sua vida íntima o levará lentamente, com o tempo, a outros conhecimentos. Permita a suas avaliações seguir o desenvolvimento próprio, tranqüilo e sem perturbação, algo que, como todo avanço, precisa vir de dentro e não pode ser forçado nem apressado por nada. Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.

Não há nenhuma medida de tempo nesse caso, um ano de nada vale, e mesmo dez anos não são nada. Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades de primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isto diariamente, aprendo em meio a dores às quais sou grato: a paciência é tudo!

Richard Dehmel4: com relação a seus livros (e, diga-se de passagem, também com relação à pessoa, que conheço superficialmente), ocorre que, ao encontrar uma de suas belas páginas, sempre tenho receio da seguinte, que pode estragar tudo e transformar o que era louvável em algo indigno. O senhor o caracterizou muito bem com as palavras: "Viver e escrever no cio". De fato a vivência artística está tão inacreditavelmente próxima da vivência sexual, de sua dor e de seu prazer, que os dois fenômenos na verdade constituem apenas formas diversas de um mesmo anseio e de uma mesma ventura. Se, em vez de cio, pudéssemos dizer sexo, em um sentido elevado, amplo, puro, não afetado por nenhuma suspeita equivocada por parte da Igreja, a sua arte seria grandiosa e infinitamente importante. Sua força poética é intensa como um impulso primitivo, ela possui alguns ritmos próprios violentos e jorra como que de uma montanha.

Contudo, parece que essa força nem sempre é sincera e sem vaidade. (Mas essa é mesmo uma das mais difíceis provações para o criador: ele precisa permanecer sempre inconsciente, desprevenido de suas melhores virtudes, caso não queira tirar delas a inocência e a integridade!) Quando então, irrompendo em seu ser, essa força chega à sexualidade, não encontra ali um ser humano inteiramente puro, como necessitaria encontrar. Há ali um mundo sexual que não é totalmente amadurecido e puro, um mundo que não é suficientemente humano, apenas viril, que é cio, embriaguez e intranqüilidade, carregado com os velhos preconceitos e vaidades com que o homem deformou e sobrecarregou o amor. Como ele ama apenas enquanto homem, não enquanto ser humano, há em suas sensações sexuais algo restrito, aparentemente selvagem, enraivecido, temporário, efêmero. Essa arte não é destituída de máculas, ela é caracterizada pelo tempo e pela paixão, pouca coisa dela há de durar e permanecer. (Mas a maioria das formas de arte é assim!) Apesar disso, porém, é possível alegrar-se profundamente com o que nela é grandioso, sem se perder com isso e sem se tornar um adepto daquele mundo dehmeliano, tão infinitamente inquieto, recheado de adultérios e distúrbios, distante dos destinos reais, que causam mais sofrimentos do que essas perturbações temporárias, mas também dão mais ocasião para a grandeza e mais coragem para a eternidade.

Por fim, no que diz respeito a meus livros, adoraria lhe enviar todos os que poderiam trazer alguma alegria para o senhor. Mas sou muito pobre, e meus livros não me pertencem mais, desde que foram publicados. Eu mesmo não posso comprá-los e, como gostaria de fazer com freqüência, dá-los para as pessoas que lhes demonstrariam afeição.

Por isso lhe escrevo em um papel os títulos (e as editoras) dos meus livros mais recentes (ao todo, publiquei bem uns doze ou treze) e deixo a seu cuidado, caro senhor, encomendar algum deles quando tiver uma oportunidade.

Gosto de saber que meus livros estão em suas mãos.
Felicidades!

Seu,
Rainer Maria Rilke


Quarta carta

Temporariamente em Worpswede,
perto de Bremen,
16 de julho de 1903

Há mais ou menos dez dias deixei Paris, bastante indisposto e cansado, e viajei para uma grande planície nórdica, cuja amplidão e tranqüilidade e céu deveriam me restituir a saúde. Entretanto me deparei com um longo período de chuva, que só hoje começa a clarear um pouco sobre esta terra em que o vento não pára de soprar; e eu faço uso do primeiro instante de claridade para saudá-lo, meu caro.

Caríssimo senhor Kappus, deixei uma carta sua por muito tempo sem resposta, mas isso não significa que a esqueci. Pelo contrário, ela é do tipo de carta que alguém relê quando encontra no meio da sua correspondência, e eu o reconheci nela como se pessoalmente. Era a carta de 2 de maio, da qual o senhor com certeza recorda. Quando a leio, como agora, na grande quietude desta distância, fico comovido por seu belo cuidado com a vida, mais ainda do que já tinha ficado em Paris, onde tudo reverbera e cessa de ecoar de um modo diferente por causa do barulho excessivo que faz as coisas vibrarem. Aqui, onde há uma região poderosa em torno de mim, sobre a qual avançam os ventos vindos do mar, aqui sinto que nunca um homem poderá dar uma resposta às perguntas e aos sentimentos que têm vida no fundo do seu ser. Pois mesmo os melhores erram nas palavras quando elas devem significar o que há de mais leve e quase indizível. Apesar disso, acredito que o senhor não precise ficar sem uma solução, caso se atenha às coisas que lhe são semelhantes, nas quais meus olhos descansam agora. Se o senhor se ativer à natureza, ao que há de mais simples nela, às pequenas coisas que quase não vemos e que, de maneira imprevista, podem se tornar grandes e incomensuráveis; se o senhor tiver esse amor pelo ínfimo e procurar com toda simplicidade conquistar como um servidor a confiança do que parece pobre - então tudo se tornará mais fácil, pleno e de algum modo reconciliador para o senhor, talvez não no campo do entendimento, que fica para trás, espantado, mas em sua consciência mais íntima, no campo da vigília e do saber. O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração. Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias perguntas, como quartos fechados e como livros escritos em uma língua estrangeira. Não investigue agora as respostas que não lhe podem ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto que se trata, de viver tudo. Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas. Talvez o senhor já traga consigo a possibilidade de construir e formar, como um modo de viver especialmente afortunado e puro; eduque-se para isso. Mas aceite com grande confiança o que vier, e se vier apenas de sua vontade, se for proveniente de qualquer necessidade de seu íntimo, aceite-o e não o odeie. A carne é um fardo, verdade. Mas é difícil a nossa incumbência, quase tudo o que é sério é difícil, e tudo é sério. Se o senhor reconhecer apenas isso e chegar a conquistar, a partir de si, de sua disposição e de seu modo de ser, de sua experiência e infância e força, uma relação inteiramente própria (não dominada pela convenção e pelo hábito) com a carne, então o senhor não precisa mais ter receio de se perder e se tornar indigno de sua melhor posse.

A volúpia corporal é uma vivência dos sentidos, não difere do simples olhar ou da pura sensação de água na boca causada por uma fruta; ela é uma grande experiência, infinita, que nos é dada, um saber do mundo, a plenitude e o brilho de todo saber. Não é ruim o fato de a aceitarmos; ruim é o fato de que quase todos abusam dessa experiência e a desperdiçam, usando-a como um estímulo nos momentos cansados de sua vida, como uma distração, em vez de uma concentração para alcançar pontos mais altos. Os homens converteram até mesmo o ato de comer em uma outra coisa: carência por um lado e excesso por outro obscureceram a clareza dessa necessidade; e igualmente obscurecidas se tornaram todas as necessidades profundas e simples nas quais a vida se renova. Mas o indivíduo pode esclarecê-las para si mesmo e viver claramente (senão o indivíduo que é muito dependente, pelo menos o solitário). Ele pode recordar que toda a beleza nos animais e nas plantas é uma forma tranqüila e duradoura de amor e anseio, pode ver o animal, como vê as plantas, unindo-se paciente e voluntariamente, multiplicando-se e crescendo não por desejo físico nem por dor física, voltando-se para necessidades que são maiores do que o desejo e a dor, mais poderosas do que a vontade e a resistência. Ah, que o homem pudesse aceitar humildemente esse segredo, do qual a Terra está repleta até em suas menores coisas, e o suportasse com seriedade, sentindo como ele é terrivelmente pesado, em vez de tomá-lo de maneira leviana. Que ele tivesse respeito diante de sua própria fecundidade, que é uma só, mesmo parecendo ora espiritual ora corporal; pois também a criação espiritual provém da física, constitui uma mesma essência, apenas como uma repetição mais silenciosa, mais cativante e eterna da volúpia corporal. "A idéia de ser um criador, de gerar, de formar" não é nada sem a sua contínua e grandiosa confirmação e realização no mundo, nada sem o consenso mil vezes repetido por parte das coisas e dos animais. E só por isso o seu gozo é tão indescritivelmente belo e rico, porque é feito das recordações herdadas da geração e da gestação de milhões de seres. Em um pensamento criador revivem milhares de noites de amor esquecidas que o preenchem com altivez e elevação. Assim, aqueles que se juntam durante as noites e se entrelaçam em uma volúpia agitada fazem um trabalho sério, reúnem doçuras, profundidade e força para a canção de algum poeta vindouro que surgirá para expressar deleites indizíveis. Eles convocam o futuro; mesmo que errem e se abracem cegamente, o futuro virá apesar de tudo, um novo homem se elevará, e a partir do acaso que parece se realizar aqui desponta a lei pela qual um germe forte e resistente se lança em direção ao óvulo, que vem receptivo a seu encontro. Não se deixe enganar pelo que é superficial; nas profundezas tudo se torna lei. Os que vivem mal e de modo falso o segredo (e são muitos) o perdem só para si mesmos, e no entanto o transmitem como uma carta fechada, sem saber. Não se deixe confundir pela multiplicidade dos nomes e pela complicação dos casos. Talvez se encontre acima de tudo uma grande maternidade, como anseio comum. A beleza da virgem, uma criatura que (como o senhor diz de modo belo) "ainda não cumpriu nada", é maternidade que se anuncia e se prepara, que se teme e se anseia. A beleza da mãe é maternidade que serve, e a da mulher idosa é uma grande recordação. Também no homem a maternidade, ao que me parece, é corporal e espiritual; sua produção também é um modo de dar à luz, quando ele cria a partir da plenitude de seu íntimo está dando à luz. Talvez os sexos tenham mais afinidade do que se considera, e a grande renovação do mundo talvez venha a consistir no fato de que o homem e a mulher, libertados de todos os sentimentos equivocados e de todas as contrariedades, não se procurarão mais como adversários, mas como irmãos e vizinhos, unindo-se como seres humanos, para simplesmente suportar juntos, com seriedade e paciência, a difícil sexualidade que foi atribuída a eles.

Mas tudo o que talvez um dia ainda seja possível para muitos o solitário pode, já agora, preparar e construir com suas mãos, que erram menos. Por isso, caro senhor, ame a sua solidão e suporte a dor que ela lhe causa com belos lamentos. Pois os que são próximos do senhor estão distantes, é o que diz, e isso mostra que o espaço começa a se ampliar à sua volta. Se o próximo está longe, então o que é distante vaga entre as estrelas, na imensidão. Alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja seguro e tranqüilo diante deles, sem perturbá-los com as suas dúvidas nem assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender. Procure constituir com eles algum tipo de comunhão simples e fiel, que não precise ser alterada à medida que o senhor mesmo se modifica cada vez mais. Ame neles a vida em uma outra forma e seja indulgente com pessoas mais velhas que temem a solidão na qual o senhor tem confiança. Evite alimentar aquele drama que sempre existe entre pais e filhos; ele desperdiça muita força dos filhos e consome o amor dos pais, um amor que atua e acolhe, mesmo que não seja compreensivo. Não reivindique deles conselho algum e não conte com compreensão alguma, mas acredite em um amor que foi conservado para o senhor como uma herança, confie no fato de que há nesse amor uma força e uma bênção, das quais não escapará para ir muito longe.

É bom, antes de tudo, que o senhor exerça uma profissão, porque isso o tornará independente e o entregará por completo a si mesmo, em todos os sentidos. Aguarde com paciência para saber se a sua vida mais íntima ficará restrita pela forma dessa profissão. Eu a considero muito difícil e muito exigente, uma vez que é carregada de grandes convenções e não deixa quase nenhum espaço para uma concepção pessoal de suas tarefas. Mas a sua solidão será um pouso e um lar, mesmo em meio a relações muito hostis, e a partir dela o senhor encontrará os seus caminhos. Todos os meus desejos estão prontos para acompanhá-lo e a minha confiança está com o senhor.

Seu,
Rainer Maria Rilke

Quinta e Sexta cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Quinta carta

Roma,
29 de outubro de 1903
Caro e prezado senhor,

Recebi sua carta de 29 de agosto em Florença, e só agora - depois de dois meses - falo dela. Perdoe-me essa lentidão, mas não gosto de escrever cartas durante as viagens, porque para fazê-lo preciso de algo além dos apetrechos indispensáveis: um pouco de quietude e solidão e uma hora que não seja de completa estranheza.

Chegamos a Roma faz mais ou menos seis semanas, em um momento no qual a cidade ainda era aquela Roma vazia, quente, com a má reputação da febre. E essa circunstância, junto com outras dificuldades práticas de instalação, contribuiu para que a inquietude em torno de nós não tivesse fim e para que o lugar estrangeiro pesasse sobre nós com a carga da desambientação. Além disso, Roma (quando a pessoa ainda não conhece bem a cidade) tem um efeito opressivo de tristeza durante os primeiros dias: pela impressão de museu, sem vida e sombria, que a cidade exala, pela plenitude de seus passados recuperados e preservados com grande esforço (dos quais um pequeno presente se alimenta), pela indescritível supervalorização, apoiada por estudiosos e filólogos e imitada por viajantes convencionais, de todas essas coisas deslocadas e desgastadas que, no fundo, não passam de vestígios ocasionais de um outro tempo e de uma vida que não é a nossa e que não deve ser a nossa. Finalmente, depois de algumas semanas de uma diária atitude defensiva, o visitante se restabelece, embora ainda um pouco confuso, e diz para si mesmo: Não, aqui não há mais beleza do que em qualquer outro lugar, e todos esses objetos admirados ao longo de gerações, recuperados e completados por artesãos não têm significado algum, não são nada e não possuem coração nem valor algum - no entanto há muita beleza aqui, como há muita beleza em toda parte. Águas infinitamente vivas correm nos antigos aquedutos para a grande cidade e dançam nas diversas praças sobre conchas brancas de pedra, jorram em pias amplas e espaçosas, rumorejam durante o dia e aumentam o seu murmúrio noite adentro, pela madrugada grandiosa e estrelada, com ventos suaves. Há por aqui jardins, alamedas e escadas inesquecíveis, escadas projetadas por Michelangelo, escadas construídas segundo o modelo das águas que escorrem por córregos - amplo declive em que um degrau gera o outro como uma onda sai da outra. Por meio de tais impressões, uma pessoa se recolhe, recupera-se da multidão pretensiosa que fala e tagarela (como é expansiva!) e aprende devagar a reconhecer as poucas coisas em que perduram o que de eterno se pode amar e a solidão de que se pode tomar parte em silêncio.

Ainda estou morando na cidade, no Capitólio, não muito longe da mais bela estátua eqüestre que nos foi conservada da arte romana - a de Marco Aurélio. Mas em algumas semanas devo me mudar para um lugar simples e silencioso, uma antiga alterna (5), que fica perdida no fundo de um parque, protegida da cidade, de seu barulho e de seu acaso. Passarei ali todo o inverno, alegrando-me com uma grande quietude, da qual espero receber de presente horas boas e produtivas...

De lá, onde estarei mais em casa, escreverei para o senhor uma carta maior, na qual falarei também do que me escreveu. Hoje preciso lhe dizer apenas (e talvez seja errado não ter feito isso antes) que o livro anunciado em sua carta (que deveria conter trabalhos seus) não chegou aqui. Ele foi remetido de volta ao senhor, talvez de Worpswede? (Pois não é permitido remeter pacotes para o exterior.) Essa possibilidade é a mais favorável, e gostaria de vê-la confirmada. Espero que não se trate de um extravio - o que não seria uma exceção no caso do correio italiano, infelizmente.

Teria sido um prazer receber esse livro (como tudo aquilo que vem do senhor); e quanto aos versos que venham a ser escritos enquanto isso, sempre os lerei (caso o senhor me confie os poemas) e acolherei da melhor maneira que puder.

Com felicitações e cumprimentos.

Seu,
Rainer Maria Rilke


Sexta carta

Roma,
23 de dezembro de 1903
Meu caro senhor Kappus,

O senhor não deve ficar sem um cumprimento meu quando o Natal se aproxima e, no meio da festa, sua solidão pesa mais do que nunca. Mas se perceber então que ela é grande, alegre-se com isso; pois o que (pergunte a si mesmo) seria uma solidão sem grandeza? Existe apenas uma solidão, e ela é grande, nada fácil de suportar. Acabam chegando as horas em que quase todos gostariam de trocá-la por uma união qualquer, por mais banal e sem valor que seja, trocá-la pela aparência de uma mínima concordância com o próximo, mesmo que com a pessoa mais indigna... No entanto, talvez sejam justamente essas as horas em que a solidão cresce, pois o seu crescimento é doloroso como o crescimento de um menino e triste como o início da primavera. Mas isso não deve confundi-lo. O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres.

E um dia, ao percebermos que suas ocupações são mesquinhas, que suas profissões são enrijecidas e não estão mais ligadas à vida, por que não olhar para eles como uma criança observa algo de estranho, a partir da profundeza do próprio mundo, da amplitude da própria solidão, que é ela mesma um trabalho, um cargo e uma profissão? Por que se desejaria trocar o sábio não-entendimento de uma criança pela atitude defensiva e pelo desprezo, uma vez que o não-entendimento é estar sozinho, mas a atitude defensiva e o desprezo são participações naquilo de que, com esses recursos, as pessoas querem se afastar?

Pense, meu caro, no mundo que o senhor leva dentro de si, então dê a esse pensamento o nome que quiser; pode ser lembrança da própria infância ou anseio do próprio futuro - apenas preste atenção no que surge a partir de dentro e eleve-o acima de tudo o que o senhor percebe em torno. Se um acontecimento mais íntimo é digno de todo o seu amor, é nesse acontecimento que o senhor deve trabalhar de algum modo, sem perder muito tempo nem muito esforço para esclarecer sua posição em relação aos outros homens. Quem é que lhe diz que o senhor tem uma posição? Eu sei, a sua profissão é dura e cheia de contradições que o afetam, e eu previa as suas queixas, já sabia que elas viriam um dia. Agora que vieram, não posso tranqüilizá-lo, posso apenas aconselhar que pondere se todas as profissões não são assim, cheias de exigências, cheias de animosidade contra o indivíduo, repletas do ódio daqueles que se conformaram, resignados e rabugentos, com sua obrigação insossa. O cargo com o qual o senhor tem de viver agora não é mais carregado de convenções, preconceitos e enganos do que todos os outros cargos; se há alguns que revelam uma liberdade maior, mesmo assim não existe nenhum que seja amplo e espaçoso, que se relacione com as grandes coisas de que a verdadeira vida é constituída.

Apenas o indivíduo solitário é como uma coisa submetida às leis profundas, e quando alguém sai de casa durante uma manhã que se inicia, ou olha para fora ao entardecer carregado de acontecimentos, quando sente o que acontece lá fora, qualquer cargo se desprende dele como de um morto, por mais que se encontre no meio da vida em sua plenitude. O que o senhor precisa enfrentar agora como oficial, caro senhor Kappus, é algo que seria sentido em qualquer outra profissão, até mesmo caso, sem qualquer cargo, tivesse procurado sozinho um contato leve e independente com a sociedade, não seria poupado desse sentimento opressor. - É assim em toda parte; mas isso não é motivo para medo ou tristeza; se não há nenhuma comunhão entre os homens e o senhor, procure estar próximo das coisas, que não o abandonarão; ainda lhe restam as noites e os ventos que passam pelas árvores e sobre muitas terras; entre as coisas e os animais, tudo ainda é pleno de acontecimentos em que se pode tomar parte; e as crianças ainda são como o senhor era quando criança, igualmente tristes e igualmente felizes. Quando pensar em sua infância, viva de novo entre elas, de modo que os adultos não sejam nada e suas virtudes não tenham valor algum.

Se é algo angustiante e perturbador pensar em sua infância, na simplicidade e na quietude que a envolvem, porque o senhor não pode mais acreditar em Deus como o via antes, pergunte a si mesmo, caro senhor Kappus, se perdeu realmente Deus. O que ocorre não é que não chegou jamais a possuí-lo? Pois quando isso teria acontecido? O senhor acredita que uma criança pode sustentá-lo, se os homens só o suportam com esforço, se seu peso esmaga os anciãos? Acredita que alguém, caso realmente o possua, pode perdê-lo como se perde uma pedrinha qualquer, ou não percebe também que quem o tivesse só poderia ser perdido por ele? - Contudo, se o senhor reconhece que ele não se encontrava em sua infância, nem antes, se intui que Cristo foi iludido por sua nostalgia e Maomé foi enganado por seu orgulho - e se o senhor sente com temor que Deus também não existe agora, neste momento em que falamos dele -, então de que lhe vale sentir falta dele, que nunca existiu, como de algo passado, e procurá-lo como se o tivesse perdido?

Por que não pensar que ele é aquele que está por vir, aquele que se encontra diante da eternidade, o futuro, o derradeiro fruto de uma árvore cujas folhas somos nós? O que o impede de projetar seu nascimento nos tempos por vir, de modo a viver sua vida como um dia doloroso e belo na história de uma grande gravidez? O senhor não percebe como tudo o que acontece é sempre de novo um começo? E não poderia ser o começo dele, já que todo início é sempre tão belo? Se ele é o mais perfeito, o que há de pequeno não tem que estar antes dele, de maneira que ele possa se escolher a partir da plenitude e da superabundância? Ele não tem de ser o último, a fim de abarcar tudo? E qual sentido teríamos nós se aquele pelo qual ansiamos já tivesse existido?

Assim como as abelhas juntam o mel, reunimos o que há de mais doce em tudo e o construímos. É com o que há de menor, com o que há de insignificante (caso resulte do amor) que começamos, em seguida recorremos ao trabalho e ao descanso, a um silêncio ou a uma pequena alegria solitária, a tudo aquilo que fazemos sozinhos, sem participantes e colaboradores, assim damos início àquele que não presenciaremos, do mesmo modo que nossos antepassados não nos puderam presenciar. E no entanto eles, que se foram há muito tempo, se encontram em nós, como projeto, como carga pesando sobre o nosso destino, como sangue que corre em nós e como um gesto que desponta das profundezas do tempo.
Alguma coisa pode tirar a sua esperança de estar um dia nele, no mais distante, no mais extremo?
Caro senhor Kappus, festeje o Natal com esse sentimento piedoso de que talvez ele precise exatamente dessa angústia por parte do senhor, para começar. Esses dias de transição talvez sejam justamente o tempo em que tudo no senhor trabalha nele, como no passado, quando era criança, o senhor trabalhou nisso, sem fôlego. Seja paciente, sem má vontade, e pense que o mínimo que podemos fazer é não dificultar sua vinda mais do que a Terra dificulta a chegada da primavera quando ela se anuncia.
Fique alegre e seja confiante.

Seu,
Rainer Maria Rilke

Sétima e Oitava cartas, das "Cartas a um jovem poeta, de Rilke

Sétima carta

Roma,
14 de maio de 1904
Meu caro senhor Kappus,

Passou muito tempo desde que recebi sua última carta. Não me guarde rancor; primeiro foi o trabalho, depois uma perturbação e finalmente uma doença que me impediram de dar uma resposta que partisse (assim eu queria) para o senhor de dias calmos e agradáveis. Agora me sinto novamente um pouco melhor (o início da primavera, com suas transições cruéis e geniosas, também foi difícil por aqui) e venho cumprimentá-lo, caro senhor Kappus, e lhe dizer (o que gosto muito de fazer) uma ou outra coisa sobre sua carta, da melhor maneira que posso.

O senhor pode notar que copiei seu soneto, porque achei que ele é belo e simples, nascido em uma forma na qual se desenrola com tão tranqüila sobriedade. São os melhores versos que cheguei a ler de sua parte. E agora lhe dou essa cópia, porque sei que é importante e uma experiência inteiramente nova reencontrar um trabalho próprio escrito com a letra de outra pessoa. Leia os versos como se fossem alheios, então sentirá de maneira mais íntima o quanto são seus...

Foi uma alegria para mim ler muitas vezes esse soneto e sua carta; portanto agradeço pelos dois.

Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará.

É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.

Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?) O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmos ("escutar e bater dia e noite"), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado. A absorção e a entrega e todo tipo de comunhão não são para eles (que ainda precisam economizar e acumular por muito tempo); a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante.

É aí que os jovens erram com freqüência, gravemente: pelo fato de eles (faz parte de sua natureza não ter paciência alguma) se atirarem uns para os outros quando o amor vem, derramando-se da maneira como são, em todo o seu desgoverno, na desordem, na confusão... Mas o que deve resultar disso? O que a vida deve fazer desse acúmulo de equívocos a que eles chamam de união e gostariam de chamar de sua felicidade? E o futuro?

Então cada um se perde por causa do outro e perde o outro e muitos outros que ainda desejariam surgir. Perdem-se as vastidões e as possibilidades, troca-se a aproximação e a fuga de coisas quietas, cheias de pressentimentos, por um desespero infrutífero do qual nada mais pode resultar; nada mais do que um pouco de náusea, desapontamento e pobreza, e com isso a salvação em uma das muitas convenções que estão disponíveis em grande número, como abrigos para todos nesse caminho extremamente perigoso. Nenhuma região da experiência humana é tão munida de convenções quanto essa: salva-vidas dos mais diversos, botes e bóias; refúgios de todos os tipos foram criados pela compreensão comum, pois ela estava inclinada a considerar a vida amorosa como um prazer, por isso tinha de torná-la fácil, barata, inofensiva e segura, como são os prazeres públicos.

De fato muitos jovens que amam de modo falso, ou seja, simplesmente entregando-se, sem preservar a solidão (a maioria não passará nunca disso), sentem a opressão de um erro e querem, de uma maneira própria e pessoal, tornar vivida e fértil a situação em que se precipitaram. Pois a sua natureza lhes diz que as questões do amor, de tudo o que é importante, são as que menos podem ser resolvidas abertamente, segundo um acordo qualquer; são perguntas íntimas feitas de uma pessoa para outra, perguntas que exigem em cada caso uma resposta nova, especial, apenas pessoal. Mas como é que eles poderiam encontrar uma saída em si mesmos, do fundo de sua solidão já desperdiçada, eles que se atiraram, que não se delimitam nem se diferenciam, e que portanto não possuem nada de próprio?

Os jovens tomam atitudes a partir de um desamparo comum e, quando querem evitar de boa vontade a convenção que se anuncia (por exemplo o casamento), caem nos braços de uma solução menos explícita, mas igualmente convencional e mortal. Pois tudo o que existe em torno deles é convenção; onde quer que se trate de uma comunhão precipitada e turva, todas as atitudes são convencionais. Toda relação resultante de tal mistura possui a sua convenção, mesmo que seja pouco usual (ou seja, imoral em sentido comum). Até a separação seria um passo convencional, uma decisão ocasional e impessoal sem força e sem frutos.

Quem observa com seriedade descobre que, assim como para a morte, que é difícil, também para o difícil amor não se reconheceu ainda nenhum esclarecimento, nenhuma solução, nem aceno, nem caminho. Para essas duas tarefas, que carregamos e transmitimos secretamente sem esclarecer, nunca se achará uma regra comum baseada em um acordo. Contudo, à medida que começamos a tentar a vida como indivíduos, essas grandes coisas se aproximam muito de nós, os solitários. As exigências que o difícil trabalho do amor impõe ao nosso desenvolvimento são sobre-humanas, e nós, como iniciantes, não podemos estar à altura delas. Mas se perseveramos e assumimos esse amor como uma carga e um período de aprendizado, em vez de nos perdermos em todo o jogo fácil e frívolo atrás do qual as pessoas se esconderam da mais séria gravidade de sua existência, talvez se perceba um pequeno avanço e um alívio para aqueles que virão muito depois de nós; e isso já seria muito.

No entanto, só chegamos no máximo a considerar objetivamente e sem preconceitos a relação de um indivíduo com outro indivíduo, e nossas tentativas de viver tais relacionamentos não têm nenhum modelo diante de si. Mesmo assim há, na própria passagem do tempo, algo que ajuda a nossa iniciação hesitante.

A menina e a mulher, em seu desdobramento novo e próprio, serão apenas de passagem imitadoras dos vícios e das virtudes masculinos e repetidoras das profissões dos homens. Depois da incerteza dessas transições, o que se revelará é que as mulheres só passaram por todos esses sucessivos disfarces (muitas vezes ridículos) para purificar sua própria essência das influências deformadoras do outro sexo. As mulheres, nas quais a vida se instala e habita de modo mais imediato, frutífero e cheio de confiança, no fundo precisam ter se tornado seres humanos mais maduros, mais humanos do que o homem, pois ele não passa de um ser leviano, que é mergulhado sob a superfície da vida pelo peso de um fruto carnal, que menospreza, arrogante e apressado, aquilo que pensa amar. Essa humanidade da mulher, realizada em meio a dores e humilhações, virá à tona quando ela tiver se livrado das convenções do exclusivamente feminino nas transformações de sua situação exterior. E os homens, que hoje não a sentem vir ainda, serão surpreendidos e derrotados por essa humanidade. Um dia (já agora, especialmente nos países nórdicos, os indícios confiáveis a favor disso são eloqüentes), um dia se encontrarão a menina e a mulher cujos nomes não significarão apenas uma oposição ao elemento masculino, mas algo de independente, algo que não fará pensar em complemento ou em limite, apenas na vida e na existência: o ser humano feminino.

Tal progresso transformará profundamente a vivência do amor, agora cheia de equívocos, trará alterações profundas (a princípio contra a vontade dos homens ultrapassados), configurando uma relação de ser humano com ser humano, não mais de homem e mulher. E esse amor mais humano (que se realizará de modo infinitamente delicado e discreto, certo e claro, em laços atados e desatados) será semelhante àquele que nós preparamos, lutando com esforço, portanto ao amor que consiste na proteção mútua, na delimitação e saudação de duas solidões.

E ainda isto: não creia que aquele grande amor que um dia se impôs ao senhor, quando garoto, perdeu-se. Será possível saber com certeza se, naquele tempo, não amadureceram grandes e belos desejos, propósitos dos quais o senhor vive ainda hoje? Acredito que aquele amor permanece tão forte e intenso em sua lembrança porque foi sua primeira solidão profunda, o primeiro trabalho íntimo com que o senhor elaborou sua vida.
Tudo de bom, caro senhor Kappus!

Seu,
Rainer Maria Rilke


Oitava carta

Soneto

Pela minha vida, sem amargura,
Sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
É a bênção de meu mais tranqüilo dia.
Às vezes cruza a trilha que acompanho
A grande questão. Sigo assim, frio,
Pequeno, como à margem de um rio
Do qual não ouso medir o tamanho.
Então me vem um lamento, um torpor
Cinza como, nas noites de verão,
Céus em que raro uma estrela se acende.
Minhas mãos tateiam por amor,
Porque gostaria de fazer uma oração
Mas ela escapa à minha boca quente...
(Franz Kappus)


Borgeby Gard, Flàdie, Suécia,
12 de agosto de 1904

Quero conversar de novo com o senhor por um momento, meu caro Kappus, embora não possa dizer quase nada que o ajude, quase nada de útil. O senhor teve muitas e grandes tristezas que passaram. E diz que mesmo esta passagem foi difícil e perturbadora. Mas, por favor, avalie se essas grandes tristezas não atravessaram o seu íntimo, se muita coisa no senhor não se transformou, se algum lugar, algum ponto do seu ser não se modificou enquanto o senhor estava triste. Só são ruins e perigosas as tristezas que carregamos em meio às pessoas para dominá-las; como doenças que são tratadas de modo superficial e leviano, elas apenas recuam e, após uma pequena pausa, irrompem ainda mais terríveis.

Essas tristezas se acumulam no íntimo e constituem a vida, constituem uma vida não vivida, desdenhada, perdida, de que se pode morrer. Se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentimento, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que nossas alegrias. Pois elas são os instantes em que algo de novo penetrou em nós, algo desconhecido; nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio.

Acredito que quase todas as nossas tristezas são momentos de tensão, que sentimos como uma paralisia porque não ouvimos ecoar a vida dos nossos sentimentos que se tornaram estranhos para nós. Isso porque estamos sozinhos com o estranho que entrou em nossa casa, porque tudo o que era confiável e habitual nos foi retirado por um instante, porque estamos no meio de uma transição, em um ponto no qual não podemos permanecer. É por isso que a tristeza também passa: o novo em nós, o acréscimo, entrou em nosso coração, alcançou seu recanto mais íntimo e mesmo ali ele já não está mais - está no sangue. E não percebemos o que houve. Seria fácil nos fazer acreditar que nada aconteceu, no entanto nos transformamos, como uma casa se transforma quando chega um hóspede. Não somos capazes de dizer quem chegou, talvez nunca cheguemos a saber, mas vários sinais indicam que o futuro entra em nós dessa maneira, para se transformar em nós muito antes de acontecer. Por isso é tão importante estar sozinho e atento quando se está triste: porque o instante aparentemente parado, sem nenhum acontecimento, no qual o nosso futuro entra em nós, está bem mais próximo da vida do que aquele outro ponto, ruidoso e acidental, em que ele acontece como que vindo de fora. Quanto mais tranqüilos, pacientes e receptivos formos quando estamos tristes, tanto mais profundo e mais firme o modo como o novo entra em nós, tanto mais fazemos por merecê-lo, tanto mais ele se torna o nosso destino. Assim, quando em um dia distante o novo "acontecer" (ou seja: sair de nós e aparecer para os outros), estaremos intimamente familiarizados com ele e nos sentiremos próximos. É necessário que isso ocorra. É necessário - e dessa maneira se dá aos poucos a nossa evolução - que não experimentemos nada de estranho, mas apenas aquilo que nos pertence há muito tempo. Já foi preciso modificar tantos conceitos relativos ao movimento, e também se aprenderá gradativamente que vem de dentro dos homens aquilo a que damos o nome de destino, não se trata de algo que entra neles partindo de fora. Muitos destinos não foram absorvidos pelos homens, não foram transformados enquanto viviam neles, só por isso eles não foram identificados como algo que era proveniente dos próprios homens. O acontecimento aparecia como algo tão estranho, que eles, em seu espanto confuso, julgavam que ele tinha surgido neles exatamente naquele instante, pois juravam nunca ter encontrado nada semelhante em si mesmos. Assim como, por muito tempo, os homens se enganaram a respeito do movimento do sol, eles ainda se enganam quanto ao movimento do porvir. O futuro permanece firme, caro senhor Kappus, mas nós nos movemos no espaço infinito.

Como isso não seria difícil para nós?

Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí. Com certeza acontecerá de sentirmos vertigens, pois todos os pontos em que nossos olhos costumavam descansar nos são tirados, não há mais nada próximo, e toda distância é uma distância infinita. Quem fosse retirado de seu quarto, quase sem preparação ou transição, e posto nas alturas de uma grande montanha, necessariamente sentiria algo semelhante: uma insegurança sem igual, um abandono ao inominável quase o aniquilariam. Ele pensaria estar caindo ou sendo arrastado pelos ares ou destroçado em mil pedaços. Seu cérebro precisaria inventar uma mentira enorme para captar e esclarecer a situação de seus sentidos. É assim que se modificam, para quem se torna solitário, todas as distâncias, todas as medidas; dessas modificações, há muitas que ocorrem repentinamente. Como para aquele homem no pico da montanha, surgem então imaginações inabituais e sensações estranhas, que parecem ultrapassar a medida do que se pode suportar. No entanto é necessário que vivamos também isso. Precisamos aceitar a nossa existência em todo o seu alcance; tudo, mesmo o inaudito, tem de ser possível nela. No fundo é esta a única coragem que se exige de nós: sermos corajosos diante do que é mais estranho, mais maravilhoso e mais inexplicável entre tudo com que nos deparamos. O fato de os homens terem sido covardes nesse sentido causou danos infinitos à vida; as experiências que são chamadas de "fenômenos", todo o suposto "mundo dos espíritos", a morte, todas essas coisas tão familiares para nós foram tão excluídas da vida, por meio de uma atitude cotidiana defensiva, que os sentidos com os quais poderíamos apreendê-las se atrofiaram. Sem falar em Deus. Mas o medo do inexplicável não empobreceu apenas a existência individual, também as relações entre as pessoas foram limitadas por ele, como que transferidas do leito de um rio de infinitas possibilidades para um local ermo da margem, onde nada acontece. Pois não é apenas a indolência que faz as relações humanas se repetirem de modo tão monótono e sem renovação de caso a caso, é a timidez diante de qualquer experiência nova, imprevista, para a qual não nos consideramos amadurecidos. Mas apenas quem está pronto para tudo, quem não exclui nada, nem mesmo o mais enigmático, viverá a relação com uma outra pessoa como algo vivo e irá até o fundo de sua própria existência. Pois, se pensamos a existência do indivíduo como um cômodo de dimensões maiores ou menores, revela-se que a maioria de nós só chega a conhecer um canto de seu quarto, um local perto da janela, uma faixa na qual se anda para lá e para cá. Contudo, é muito mais humana do que essa segurança aquela incerteza, cheia de perigos, que leva os prisioneiros dos contos de Poe a tatearem as formas de seus cárceres aterrorizantes e a não serem alheios aos horrores indizíveis de sua permanência ali. E no entanto nós não somos prisioneiros. Não há armadilhas e emboscadas armadas em torno de nós, nada que nos devesse angustiar ou perturbar. Estamos lançados na vida como no elemento ao qual correspondemos melhor, além disso nos tornamos, por meio de uma adaptação de milhares de anos, tão semelhantes a essa vida que, por um mimetismo afortunado, se nos mantivermos quietos, quase não nos diferenciaremos daquilo que nos cerca. Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los. Se orientarmos a nossa vida segundo aquele princípio que nos aconselha a nos aferrarmos sempre ao que é difícil, o que agora nos parece ser muito estranho se tornará o que há de mais familiar e confiável. Como poderíamos esquecer aqueles antigos mitos que se encontram nos primórdios de todos os povos, os mitos sobre os dragões que, no último momento, transformam-se em princesas; talvez todos os dragões de nossa vida sejam princesas, que só esperam nos ver um dia belos e corajosos. Talvez todo terror não passe, em última instância, do desamparo que requer nossa ajuda.

Assim, não é preciso se assustar, meu caro Kappus, quando uma tristeza se ergue à sua frente, tão grande como o senhor nunca viu; quando uma inquietação passa por sobre as suas mãos e perpassa todas as suas ações, como a luz e as sombras das nuvens. É preciso pensar que acontece algo com o senhor, que a vida não o esqueceu, que ela segura sua mão e não o deixará cair. Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam? Por que perseguir a si mesmo com estas perguntas: de onde pode vir tudo isso e para onde vai? No entanto, o senhor sabe que está em meio a transições e não desejaria nada mais do que se transformar. Se algum dos seus procedimentos for doentio, considere que a doença é um meio com o qual o organismo se liberta de corpos estranhos; por isso é apenas preciso ajudá-lo a estar doente, a assumir e ter sua doença por completo, pois é esse o seu curso natural. Agora acontece tanta coisa em seu íntimo, meu caro Kappus. É preciso ter paciência como um doente e ter confiança como um convalescente, pois talvez o senhor seja ambas as coisas. Mais ainda: o senhor também é o médico que tem de tratar de si mesmo. Mas em toda doença há muitos dias em que o médico não pode fazer nada além de esperar. E é isso, mais do que qualquer outra coisa, que o senhor, por ser seu próprio médico, precisa fazer agora.

Não se observe demais. Não tire conclusões demasiado apressadas daquilo que lhe acontece; deixe simplesmente as coisas acontecerem. Senão facilmente chegará a considerar com censuras (morais) o seu passado, que naturalmente tem participação em tudo aquilo com que o senhor se depara agora. Mas, dos erros, desejos e nostalgias de seu tempo de menino, o que atua agora em sua pessoa não é o que o senhor tem na memória e reprova. As relações extraordinárias de uma infância solitária e desamparada são tão difíceis, tão complicadas, submetidas a tantas influências, e ao mesmo tempo tão desligadas de todas as circunstâncias reais da vida, que quando surge um vício não se deve dar a ele sem mais o nome de vício. Em geral, é preciso ter muito cuidado com os nomes; muitas vezes é o nome de um crime que destrói uma vida, e não a própria ação, pessoal e inominada, que talvez fosse uma necessidade muito determinada dessa vida e pudesse ser acolhida sem esforço por ela. O dispêndio de energia só lhe parece tão grande porque o senhor superestima a vitória; não é ela a "grandiosa" realização que o senhor pretende ter conseguido, embora tenha razão com relação a seu modo de sentir; o grandioso é o fato de haver algo ali que o senhor pôde colocar no lugar daquele engano, algo de verdadeiro e real. Sem isso, mesmo a sua vitória teria sido apenas uma reação moral, sem um significado amplo, mas dessa maneira ela se tornou uma parcela da sua vida. Da sua vida, caro senhor Kappus, na qual penso fazendo tantos votos. Lembra-se de como essa vida aspirava desde a infância pelos "grandes"? Vejo como ela agora parte dos grandes para aspirar pelos maiores. É por isso que ela nunca deixa de ser difícil, mas também é por isso que nunca deixará de crescer.

Se ainda posso acrescentar algo, é o seguinte: não acredite que quem procura consolá-lo vive sem esforço, em meio às palavras simples e tranqüilas que às vezes lhe fazem bem. A vida dele tem muita labuta e muita tristeza e permanece muito atrás dessas coisas. Se fosse de outra maneira, nunca teria encontrado aquelas palavras.

Seu,
Rainer Maria Rilke

Nona e Décima cartas, das "Cartas a um jovem poeta", de Rilke

Nona carta

Furuborg, Jonsered, Suécia,
4 de novembro de 1904
Meu caro senhor Kappus,

Nesse período que passou sem carta alguma, ora eu estava em viagem, ora tão ocupado que não pude escrever. Mesmo hoje me é penoso fazê-lo, porque já precisei escrever muitas cartas, de modo que minha mão está cansada. Se pudesse ditar, lhe diria muitas coisas, mas por escrito aceite poucas palavras em resposta à sua longa carta.
Penso com freqüência no senhor, e com tal concentração em meus votos, que isso certamente o ajudaria de alguma maneira. Mas duvido muito que minhas cartas possam servir de auxílio. Não me diga que sim, que elas são uma ajuda. Receba-as com tranqüilidade, sem muitos agradecimentos, e permita-nos esperar o que está por vir.

Talvez não adiante eu examinar palavra por palavra a sua carta, pois não há novidade no que poderia dizer acerca de sua tendência para a dúvida ou de sua incapacidade de harmonizar a vida interior e a exterior, ou acerca de tudo mais que o atormenta: é sempre o que eu já disse, sempre o desejo de que o senhor descubra em si mesmo paciência o bastante para suportar e simplicidade o bastante para acreditar. Que o senhor ganhe mais e mais confiança para aquilo que é difícil, para a sua solidão em meio aos outros. De resto, deixe a vida acontecer. Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.

Quanto aos sentimentos: são puros todos os sentimentos que o senhor acumula e eleva; impuro é o sentimento que abrange apenas um lado de seu ser e assim o desfigura. Tudo o que o senhor pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo o que faz do senhor mais do que foi até agora em suas melhores horas é correto. Toda a intensificação é boa, caso esteja em todo o seu sangue, caso não seja embriaguez, nem obscuridade, mas alegria da qual se enxerga o fundo. Entende o que quero dizer?

Sua tendência para a dúvida pode se tornar uma boa qualidade se o senhor a educar. Ela precisa se tornar saber, precisa se tornar crítica. Pergunte a ela, a cada vez que quiser estragar algo seu, por que algo é feio, exija provas dela, teste-a, e o senhor talvez a deixe indecisa e confusa, talvez revoltada. Mas não desista, reivindique argumentos e aja assim, de modo atento e coerente, a cada vez. Dessa maneira chegará o dia em que sua dúvida se converterá de uma destruidora em sua melhor colaboradora - talvez a mais esperta no meio de tudo aquilo que trabalha na construção de sua vida.

Isso é tudo o que sou capaz de lhe dizer hoje, caro senhor Kappus. Mas lhe envio junto uma cópia de um pequeno poema que foi publicado no Deutsche Arbeit de Praga.(6) Nele continuo a lhe falar sobre a vida e a morte, sobre o quanto ambas são grandes e magníficas.
Seu,
Rainer Maria Rilke


Décima carta

Paris,
dia posterior ao Natal, 1908

O senhor deve saber, caro senhor Kappus, como estou alegre por ter em mãos esta sua bela carta. As notícias que me dá, reais e explícitas como são desta vez, parecem-me boas, e quanto mais considero o assunto, mais as percebo como sendo boas de fato. Na verdade, pretendia lhe escrever isso para a noite de Natal, mas, em função do trabalho variado ao qual dedico minha vida ininterruptamente neste inverno, a velha festa chegou tão depressa que mal tive tempo para tomar as providências necessárias, muito menos para escrever.
Entretanto pensei no senhor muitas vezes nesses dias festivos e fiquei imaginando como devia estar em seu forte solitário, entre as montanhas isoladas, sobre as quais se precipitam aqueles grandes ventos do sul, como se quisessem devorá-las.

Deve ser imenso o silêncio em que tais ruídos e movimentos têm lugar. E quando se pensa que a tudo isso ainda se acrescenta a presença do mar longínquo, ressoando talvez como o tom mais íntimo daquela harmonia pré-histórica, só se pode desejar ao senhor que, cheio de confiança e paciência, deixe trabalhar em sua pessoa a grandiosa solidão que não poderá mais ser riscada de sua vida. Essa solidão permanecerá e atuará, de modo decisivo e sutil, em tudo o que o senhor tem a experimentar e a fazer, como uma influência anônima, como o sangue de antepassados que percorre as nossas veias continuamente, compondo com o nosso próprio sangue o que somos de único e irrepetível a cada nova guinada de nossa vida.

Sim, alegra-me que o senhor tenha essa existência firme e manifesta, esse título, esse uniforme, esse serviço, tudo de palpável e delimitado que, em tais circunstâncias, com uma guarnição isolada e não muito numerosa, ganha seriedade e necessidade. Acima do caráter brincalhão e da vadiação que fazem parte da profissão militar, tudo isso significa uma aplicação diligente e não só permite, mas justamente educa uma atenção independente. O fato de nos encontrarmos em situações que trabalham em nós, que de tempos em tempos nos põem diante de grandes coisas da natureza, é tudo que se faz necessário.
Também a arte é apenas um modo de viver, e é possível se preparar para ela sem saber, vivendo de uma maneira ou de outra. Em tudo o que é real há mais proximidade dela do que nas falsas profissões semi-artísticas que, ao simular uma proximidade da arte, na prática negam e atacam a existência de qualquer arte. Por exemplo, todo o jornalismo faz isso, assim como quase toda a crítica e três quartos do que se chama e pretende ser chamado de literatura. Alegra-me, em suma, que o senhor tenha superado o perigo de cair nessa armadilha e se encontre em meio a uma realidade bruta, solitário e corajoso. Espero que o próximo ano o mantenha assim e o fortaleça.

Sempre seu,

Rainer Maria Rilke


Notas:

2. Para celebrar-me (1899), coletânea de poemas posteriormente publicada pelo autor com alterações sob o título Die frühen Gedichte [Os primeiros poemas] (1909). (N. T.)

3. Uma das novelas incluídas no livro Seis novelas, de (acobsen. (N. T.)

4. Richard Dehmel (1863-1920), escritor e poeta alemão ligado ao Naturalismo. (N. T.)

5. Tipo de construção da arquitetura italiana, trata-se de uma plataforma aberta em andar superior, normalmente sustentada por pilastras.(N.T.)

6. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke, poema que foi escrito em 1899 e publicado em livro em 1906, tornou-se uma das obras mais conhecidas do autor. No Brasil, o texto foi traduzido por Cecília Meireles com base na versão em francês de Suzanne Kra. (N. T.)


terça-feira, 26 de abril de 2011

Orides Fontela, "Cisne"

Humanizar o cisne
é violentá-lo. Mas
também quem nos dirá
o arisco esplendor
– a presença do cisne?

Como dizê-lo? Densa
a palavra fere
o branco
expulsa a presença e – humana –
é esplendor memória
                                            e sangue.

                                            E
                                            resta
não o cisne: a
                                            palavra

– a palavra mesmo
                                            cisne.

domingo, 24 de abril de 2011

Abgar Renault, "Desintegração"

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer...
E a minha voz, se eu acaso falasse,
teria a força de uma revelação.

Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito
de asas prisioneiras que se dilaceraram
na arrancada impossível da libertação e da altura.

Minhas mãos tremem ainda ao contato
imaterial, sub-humano e fugitivo
de qualquer coisa além e acima deste mundo...

Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos
a saudade de paisagens estranhas e longínquas,
que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço.

Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos.
Meu espírito palpita! Tenho o coração cheio de coisas para dizer...
Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto.

sábado, 23 de abril de 2011

Flávio Aguiar, "Às vezes ..."

Às vezes é preciso abandonar o barco,
A luta, o carrossel, o circo inteiro,
E partir como ave migratória para o norte
Em busca de terras de verão e sol,
Mas quando isto for preciso
Que se faça com rosto limpo,
A face descoberta e voltada para a frente,
Que não haja mentiras nem tristeza.
Queimem-se as lembranças, quebrem-se
As garrafas; enterrem-se cinzas e cacos.
Seja-se até os ossos mais frágeis
Uma ave migratória: a volta existe
Mas é outra história, e não desculpa
A permanência no ponto de partida.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Gerana Damulakis, "O Suicida"

                        I

Tem os olhos cansados de paisagens
e os ouvidos repletos de mil sons.
Bebeu toda a taça doce e selvagem
e o vinho tinto e rubro não o atordoou.

Talvez esteja bêbado de amor
talvez tenha, na alma, o peso esmagador
das páginas lidas,
das músicas ouvidas; ou
o remorso dos risos que não riu
e o descaso de quem já viveu.

                        II

Sente uma angústia
imensa que amargura
a vida, essa vida,
um dia bela e hoje

sente um horror covarde;
um gesto simples e
tudo
será a paz do Nada.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Armando Freitas Filho












"Escritório irritante"

Não acho nada, nem o que não
procuro, nenhum livro se abre
e os que se abrem, raivosos
não prestam para o momento.

Se apertam nas estantes, se
embaralham, fora de ordem
se precipitam, suicidas
mortos, amarrotados, muitos.

Não os lerei mais, morri
com eles, minhas marcas
no pó das passadas páginas

se desbotam, os personagens
idem, a flor no papel de poema
se fecha, furada por traças.

terça-feira, 19 de abril de 2011

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Walt Whitman




















"Vi uma aranha silenciosa e paciente ..."

Vi uma aranha silenciosa e paciente
Isolada num pequeno promontório
Que, para explorar os amplos e desertos arredores,
Emitia filamentos e filamentos e filamentos de seu próprio
                 corpo,
Desenrolando-os sempre, sempre velozmente.
Também tu, ó minha alma, aí onde estás, esperas
Cercada, desgarrada, em imensuráveis oceanos de espaço,
Incessantemente divagando, especulando, procurando
                 esferas para a conexão,
Até que a ponte de que precisas se forme, que a âncora
                 maleável se encrave,
Que o fio da teia que lances a algo se entrelace, Ó minha
                 alma.

Tradução de Jorge Wanderley

domingo, 17 de abril de 2011

Fernando Pessoa, "Prece"

Senhor, a noite veio e a alma é vil.
Tanta foi a tormenta e a vontade!
Restam-nos hoje, no silêncio hostil,
O mar universal e a saudade.

Mas a chama, que a vida em nós criou,
Se ainda há vida ainda não é finda.
O frio morto em cinzas a ocultou:
A mão do vento pode erguê-la ainda.

Dá sopro, a aragem – ou desgraça ou ânsia-,
Com que a chama do esforço se remoça,
E outra vez conquistemos a Distância-
Do mar ou outra, mas que seja nossa!

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Rainer Maria Rilke, "Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?"

Que farás tu, meu Deus, se eu perecer?
Eu sou o teu vaso – e se me quebro?
Eu sou tua água – e se apodreço?
Sou tua roupa e teu trabalho
Comigo perdes tu o teu sentido.

Depois de mim não terás um lugar
Onde as palavras ardentes te saúdem.
Dos teus pés cansados cairão
As sandálias que sou.
Perderás tua ampla túnica.
Teu olhar que em minhas pálpebras,
Como num travesseiro,
Ardentemente recebo,
Virá me procurar por largo tempo
E se deitará, na hora do crepúsculo,
No duro chão de pedra.

Que farás tu, meu Deus? O medo me domina.

Tradução de Paulo Plínio Abreu

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Paulo Mendes Campos












"Translúcido"
Rosas raras se alçavam puras.
Eu sonho que vivi sempre exaltado.

Amo os danos do mundo, quero a chama
Do mundo, vós, paixões do mundo. E penso:
Estrangeiro não sou, pertenço à terra.

Um céu abriu as mãos sobre o meu rosto.
Barcos de prata cantam vagamente.

Pensando, desço então pelas veredas
Do mar, do mar, do mar !
Sinto-me errante.

Que faz no meu cortejo essa alegria ?
O tempo é meu jardim, o tempo abriu
Cantando suas flores insepultas.
Canta, emoção antiga, meus amores,
Canta o sentido estranho do verão,

Canta de novo para mim que fui
Vago aprendiz de mágico, abstrata
Sentinela do espaço constelado.
Conta que sempre sou, quem fui, menino.

A pantera do mar da cor de malva
Uivava sobre a vaga chamejante.
Eu sonho que vivi sempre exaltado.
Meu pensamento forte é quase um sonho.
Nos meus ombros, o pássaro final.

Íntimo, atroz, lirismo a que me oponho.
Quando a manhã subir até meus lábios
Suscitarei segredos novos.
Ah!Esta paixão de destruir-me à toa.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Vinícius de Moraes, "Poema de Natal"

Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Ezra Pound



















"A água-furtada"

Vamos, lamentemos os que estão em melhor
          situação que a nossa.
Vamos meu amigo, e lembra-te:
          os ricos têm mordomos e não têm amigos.
E nós temos amigos e não temos mordomos.
Vamos, lamentemos os casados e os solteiros.

A aurora entra com pés pequenos,
          Pavlova dourada(*),
E estou perto do meu desejo.
E a vida não tem nada de melhor
Que esta hora de claro frescor,
          a hora de acordar juntos.

(*) Pavlova dourada - Referência à Anna Pavlova, bailarina russa muito conhecida na época.

Tradução de Mário Faustino

domingo, 10 de abril de 2011

Adélia Prado, "O vestido"

No armário do meu quarto escondo de tempo e traça
meu vestido estampado em fundo preto.
É de seda macia desenhada em campânulas vermelhas
à ponta de longas hastes delicadas.
Eu o quis com paixão e o vesti como um rito,
meu vestido de amante.
Ficou meu cheiro nele, meu sonho, meu corpo ido.
É só tocá-lo, volatiza-se a memória guardada:
eu estou no cinema e deixo que segurem a minha mão.
De tempo e traça meu vestido me guarda.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Paulo Leminski, "Assim como os sorrisos ..."

Azuis como os sorrisos das crianças
e pesados como os provérbios das velhas,
anos cultivei a idéia do poema,
coisa inteira, ovo, ânsia e antena,
meus poemas são idéias
ontem, coisa inteira, hoje, apenas manchas

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Roberto Piva














"No Parque Ibirapuera"


Nos gramados regulares do parque Ibirapuera
Um anjo da Solidão pousa indeciso sobre meus ombros
A noite traz a lua cheia e teus poemas, Mário de Andrade,
                                                                                                [regam minha
            imaginação
Para além do parque teu retrato em meu quarto sorri
            para a banalidade dos móveis
Teus versos rebentam na noite como um potente batuque
            fermentado na rua Lopes Chaves
Por detrás de cada pedra
Por detrás de cada homem
Por detrás de cada sombra
O vento traz-me o teu rosto
Que novo pensamento, que sonho sai de tua fronte noturna?
É noite. E tudo é noite.
É noite nos pára-lamas dos carros
É noite nas pedras
É noite nos teus poemas, Mário!
Onde anda agora a tua voz?
Onde exercitas os músculos da tua alma, agora?
Aviões iluminados dividem a noite em dois pedaços
Eu apalpo teu livro onde as estrelas se refletem
            como numa lagoa
É impossível que não haja nenhum poema teu
            escondido e adormecido no fundo deste parque
Olho para os adolescentes que enchem o gramado
            de bicicletas e risos
Eu te imagino perguntando a eles:
            onde fica o pavilhão da Bahia?
            qual é o preço do amendoim?
            é você meu girassol?
A noite é interminável e os barcos de aluguel
        fundem-se no olhar tranqüilo dos peixes
Agora, Mário, enquanto os anjos adormecem devo
            seguir contigo de mãos dadas noite adiante
Não só o desespero estrangula nossa impaciência
Também nossos passos embebem as noite de calafrios
Não pares nunca meu querido capitão-loucura
Quero que a Paulicéia voe por cima das árvores
            suspensa em teu ritmo.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Fernando Pessoa, "D. Sebastião, Rei de Portugal"

Louco, sim, louco, porque quis grandeza
Qual a Sorte a não dá.
Não coube em mim minha certeza;
Por isso onde o areal está
Ficou meu ser que houve, não o que há.

Minha loucura, outros que me a tomem
Com o que nela ia.
Sem a loucura que é o homem
Mais que a besta sadia,
Cadáver adiado que procria?

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Jorge de Lima, Poema XI do Canto Primeiro, da "Invenção de Orfeu.

Quem te fez assim soturno
quieto reino mineral,
escondido chão noturno ?

Que bico rói o teu mal ?
Quem antes dos sete dias
te argamassou em seu gral ?

Quem te apontou pra onde irias ?
Quem te confiou morte e guerra ?
Quem te deu ouro e agonias ?

Quem em teu seio de terra
infundiu a destruição ?
Quem com lavas em ti berra ?

Quem fez do céu o chão
quieto reino mineral ?
Quem te pôs tão taciturno ?

Que gênio fez por seu turno
antes do mundo nascer;
a criação do metal,
a danação do poder ?

domingo, 3 de abril de 2011

Natureza Morta: Aldo Bonadei e Pedro Alexandrino


Dos temas clássicos na pintura, acho a Natureza Morta um dos mais interessantes, porque indica uma característica da verdadeira Arte: a Arte é criada pelo Artista.

Nenhuma beleza ou atrativo especiais existem individualmente em objetos banais do cotidiano como garrafas, frutas, legumes, pratos, talheres, copos etc ... , e no entanto esses meros utensílios dispostos e representados artisticamente elevam-se à Arte.

Isso demonstra e explica que Arte é uma alegoria criada pelo verdadeiro artista em cima de coisas, fatos e episódios corriqueiros, cujo potencial artístico em estado bruto não é percebido pela maioria das pessoas.

No caso da natureza morta, onde o pintor tem total domínio da coisa retratada, a Arte já começa na arrumação do ambiente, com a disposição de toalhas, talheres e taças, buscando o equilíbrio ideal entre eles, numa condição diferente e muito mais difícil do que pintar uma paisagem, onde o seu objeto, além de ser, basicamente, coisa dada, já tem o seu encanto próprio de Natureza Viva.

É claro que o pintor também precisa ser um bom artesão para copiar sombras, reflexos, contrastes, mas não basta ser um "copista" da realidade, porque acima da realidade há a sua interpretação da vida ou do momento, que vai determinar o "clima" no quadro.

Essa interpretação da vida é "a sua representação alegórica do real", que pode ser alegre, triste, eufórica, melancólica ... Mas que só existe como Arte quando há genialidade no pintor; quando ele é um artista e está tecnicamente habilitado para transpô-la no quadro.

Não fosse assim, as fotos abaixo com os objetos físicos realmente utilizados por Pedro Alexandrino e Aldo Bonadei nas suas Naturezas Mortas seriam Arte:

Objetos de Pedro Alexandrino:















Objetos de Aldo Bonadei:


















E não as suas Naturezas Mortas:

Aldo Bonadei:


Pedro Alexandrino: