sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Fernando Pessoa (Ricardo Reis), "Sei, sei bem..."


Sim, sei bem
Que nunca serei alguém.
Sei de sobra
Que nunca terei uma obra.
Sei, enfim,
Que nunca saberei de mim.
Sim, mas agora,
Enquanto dura esta hora,
Este luar, estes ramos,
Esta paz em que estamos
Deixa-me crer
O que nunca poderei ser.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Enquanto isso, nos Estados Unidos ...



Odylo Costa, filho, " A meu filho"


Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores,
onde há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias.

Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.

Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.

Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Antero de Quental, "Palavras de um certo morto"


Há mil anos, e mais, que aqui estou morto,
Posto sobre um rochedo à chuva e ao vento:
Não há como eu espectro macilento,
Nem mais disforme que eu nenhum aborto...

Só o espírito vive: vela absorto
Num fixo, inexorável pensamento:
"Morto, enterrado em vida!" o meu tormento
É isto só... do resto não me importo...

Que vivi sei-o eu bem... mas foi um dia,
Um dia só — no outro, a Idolatria
Deu-me um altar e um culto... ai! adoraram-me,

Como se eu fosse alguém! como se a Vida
Pudesse ser alguém! — logo em seguida
Disseram que era um Deus... e amortalharam-me!

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Ricardo Aleixo














"Paupéria Revisitada"

Putas, como os deuses,
vendem quando dão.
Poetas, não.
Policiais e pistoleiros
vendem segurança
(isto é, vingança ou proteção).
Poetas se gabam do limbo, do veto
do censor, do exílio, da vaia
(e do dinheiro não).
Poesia é pão (para
o espírito, se diz), mas atenção:
o padeiro da esquina balofa
vive do que faz; o mais
fino poeta, não.
Poetas dão de graça
o ar de sua graça
(e ainda troçam
— na companhia das traças —
de tal “nobre condição”).
Pastores e padres vendem
lotes no céu
à prestação.
Políticos compram &
(se) vendem
na primeira ocasião.
Poetas (posto que vivem
de brisa) fazem do No, thanks
seu refrão.

sábado, 23 de setembro de 2017

Jorge de Sena














"IIIº Soneto da Visão Perpétua"

Não mais! Não mais! Que eu esqueça que te tive,
E tu me esqueças debruçado em ti!
Que tudo seja como outrora eu vi:
Uma figura ao longe recortada,

E fina e esbelta, ou suave e alongada,
Não tão distante que me não entendas,
Nem tão perto de mim que tu me vendas,
No mesmo corpo belo, o que não vive

Nesse teu rosto ou sob a tua pele:
Uma malícia esplêndida, capaz
De se entregar violenta quando a impele,

Sem mais que orgulho, a força juvenil.
Assim será que, em mim, teu corpo jaz.
E sem nos lábios o sorriso vil.

Mas como há-de teu corpo em mim ter paz?

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Ferreira Gullar












"O Louva-Deus"

Se faz de vegetal
           de talo seco
as asas são
           folhas de palha

e tem no entanto uma cabeça
e dois olhos
                  por onde entra nele
                  a floresta
ou o que seja aquele
intrincado de caules
e cálices

            e sabe
            que por ali andam lagartas
            deliciosas voam libélulas
            besouros todos
                           comestíveis
que (sem vê-lo) dele
se aproximarão para morrer

ou não
ou sim
ou tanto faz

           pois que
           na natureza
não há crimes nem culpas

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

João Rui de Souza, "Ponto de fuga"


Procuro a minha voz e não a encontro.
Procuro o meu silêncio e não o tenho.
Ao desencontro vem o desencontro,
do maior ao menor é o meu tamanho.

No alto das esferas rolam as esferas,
ermo adormecido, doida escuridão.
Procuro ali a voz e não a encontro.
Procuro o meu silêncio e não mo dão.

A espaços vi tão perto o meu querer,
a dúvida desfeita, puro abraço,
que logo pensei eu que a voz viesse
ou chegasse o silêncio ao meu cansaço.

Mas não. No grande desencanto (e frio)
em que na rua, gasto, me detenho,
procuro a minha voz e não a encontro,
procuro o meu silêncio e não o tenho.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Chacal, "O outro"


só quero
o que não
o que nunca
o inviável
o impossível

não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível

só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o incrível

não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível

eu quero
o outro

domingo, 17 de setembro de 2017

Eugénio de Andrade, "Pequena elegia de setembro"


Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos pousados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

sábado, 16 de setembro de 2017

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Goesa"


Tudo era atravessado por um rio de memórias
E brisas sutis e lentas se cruzavam
E enquanto lá fora baloiçavam
Os grandes leques verdes das palmeiras
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada
Atravessou o quarto leve e lenta
Num silêncio de guitarra dedilhada

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Alejandra Pizarnik




                                                         










 "A um poema sobre a água, de Silvana Ocampo"

                                                           A Silvana e à Condessa de Trípoli
                                                           que a noite toda emana profecias
                                                                                                     O. Paz

Teu modo de silenciar-te no poema.
Me abris como a uma flor
(sem dúvida uma flor pobre, lamentável)
que já não esperava a terrível delicadeza
da primavera. Me abris, me abro,
volto-me em água no teu poema de água
que a noite toda emana profecias.




"A un poema acerca del agua, de Silvana Ocampo" 

                                                            A Silvana y la condessa de Trípoli
                                                            que emana toda la noche profecias
                                                                                                        O. Paz

Tu modo de silenciarte en el poema.
Me abrís como a una flor
(sin duda una flor pobre, lamentable)
que ya no esperaba la terrible delicadeza
de la primavera. me abrís, me abro,
me vuelvo de agua en tu poema de agua
que emana toda la noche profecias.


Tradução amadora minha.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

José Paulo Paes, "Retrato"


Eu mal o conheci quando era vivo.
Mas o que sabe um homem de outro homem?
Houve sempre entre nós certa distância,
um pouco maior que a desta mesa onde escrevo
até esse retrato na parede
de onde ele me olha o tempo todo.
Para quê?
Não são muitas as lembranças que dele guardo:
a aspereza da barba no seu rosto quando eu o
beijava ao chegar para as férias.
O cheiro de tabaco em suas roupas;
O perfil mais duro do queixo
quando estava preocupado;
o riso reprimido até saltar-se na risada.
Falava pouco comigo.
Estava sempre noutra parte:
ou trabalhando ou lendo ou conversando
com alguém ou então saindo de viagem.
Só quando adoeceu e o fui buscar
em casa alheia e o trouxe para minha casa
estivemos juntos por mais tempo.
Mesmo então dele eu só conheci
a luta pertinaz contra a dor,
o desconforto, a inutilidade forçada,
os negaceios da morte já bem próxima.
Até o dia em que tive de ajudar
a descer-lhe o caixão à sepultura.
Aí então eu o soube mais que ausência.
Senti com minhas próprias mãos o peso
do seu corpo, que era o peso imenso do mundo.
Então o conheci. E conheci-me.
Ergo os olhos para ele na parede.
Sei agora, pai, o que é estar vivo.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

João Cruz e Souza, "Acrobata da dor"


Gargalha, ri, num riso de tormenta,
como um palhaço que, desengonçado,
nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
de uma ironia e de uma dor violenta.

De gargalhada atroz, sanguinolenta,
agita os guizos e, convulsionado,
salta, gavroche, salta, clown, varado
pelo estertor dessa agonia lenta.

Pedem-te bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
nessas macabras piruetas de aço.

E embora caias sobre o chão, fremente,
afogado em teu sangue estuoso e quente,
ri, Coração, tristíssimo palhaço!

domingo, 10 de setembro de 2017

Eucanaã Ferraz, "O equilibrista"


Traz consigo resguardada
certa idéia que lhe soa
clara, exata.

No entanto, hesita: que palavra
a mais bem medida e cortada
para dizê-la?

Enquanto não lhe vem o verso, a frase, a fala,
segue lacrada a caixa
no alto da cabeça.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Al Berto, "Diário"












23 Fev.91 Lx

Pensei nisto, não sei porque razão: uma força incontrolável, superior, desconhecida, pode crescer em mim, do fundo de mim; da parte mais obscura e quase animal, selvagem, de mim. / existirá um lobo, de ferocidade incalculável, adormecido algures em mim? (uma espécie de força telúrica invade-me, às vezes, e essa força dá-me alento para odiar o mundo. acho que sou um homem corajoso - e isso dá-me vontade de rir.)
Depois da paixão - pergunto-me - o que restará? em que sítio do caos brotará outra coisa? ou será ainda possível morrer - morrer simplesmente, por enjoo de tudo. O melhor de mim não é físico, por isso guardo esta desmedida disponibilidade para te amar. através do meu olhar escondido no teu posso ver o mundo, o pouco de alegria que lhe resta, e essa alegria não é nossa alegria.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Depois de não ter dormido..."


Depois de não ter dormido,
Depois de já não ter sono,
Interminável madrugada em que se pensa sempre sem se pensar,
Vi o dia vir
Como a pior das maldições -
A condenação ao mesmo.

Contudo, que riqueza de azul verde e amarelo dourado de vermelho
No céu eternamente longínquo -
Nesse oriente que estragaram
Dizendo que vêm de lá as civilizações;
Nesse oriente que nos roubaram
Com o Conto do Vigário dos mitos solares,
Maravilhoso oriente sem civilizações nem mitos,
Simplesmente céu e luz,
Material sem materialidade...
Todo luz, mesmo assim
A sombra, que é a luz da noite dada ao dia,
Enche por vezes, irresistivelmente natural.
O grande silêncio do trigo sem vento,
O verdor esbatido dos campos afastados,
A vida e o sentimento da vida.
A manhã inunda toda a cidade.
Meus olhos pesados do sono que não tivestes,
Que amanhã inundará o que está por trás de vós.
Que é vós,
Que sou eu?

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Ângelo de Lima, "Soneto"


Para-me de repente o pensamento
Como que de repente refreado
Na doida correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento…

Para surpreso, escrutador, atento,
Como para um cavalo alucinado
Ante um abismo súbito rasgado…
Para e fica e demora-se um momento.

Para e fica na doida correria…
Para à beira do abismo e se demora
E mergulha na noite escura e fria

Um olhar de aço que essa noite explora…
Mas a espora da dor seu flanco estria
E ele galga e prossegue sob a espora.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Cidade"


Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.

sábado, 2 de setembro de 2017

Fiama Hasse Pais Brandão, "Epístola para os amados"


Ainda vos amos, porque aqui não há só tempo
e o amor, no tempo, é tão intenso e absoluto,
que transborda do tempo para o não-presente.
Havendo tempo e não-tempo, eu vos confesso agora
que em parques ao poente ainda vos estou a amar.
E não que vos ofereça hoje alucinados versos,
mas porque do meu tempo sois donos, como os poemas
que eu escrevo do tempo para o não-tempo, sempre.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Casimiro de Brito, "Cidade caótica..."


Cidade caótica -
a borboleta atravessa a rua
com o sinal vermelho.