quarta-feira, 22 de agosto de 2018



Devido a alguns problemas particulares ficarei algum tempo sem postar.
Tchau, e até qualquer dia.

domingo, 19 de agosto de 2018

Abgar Renault, "Como quem pede uma esmola "


Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Adriano Espínola, "Dante"


Exilado em mim mesmo e do país,
sonhei a fera e Virgílio companheiro.
No céu, de mim ausente, a Beatriz.

Depois, no inferno pus o mundo inteiro.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Augusto dos Anjos, "O coveiro"


Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.

Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh'alma entristecida
E interroguei-o: 'Eterno companheiro

Da morte, quem matou-te o coração?"
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!

Depois, tomando a enxada, gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
-"Ai, foi por isso que me fiz coveiro!"

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Eucanaã Ferraz, "A costureira"


Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta

para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse

o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Ivan Junqueira, "Talvez o vento saiba dos meus passos..."


Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

sábado, 4 de agosto de 2018

Eucanaã Ferraz, "Times old Roman"


Quer que o diga, não o digo,
o teu nome já não brilha

não o digo sob as cinzas
de janeiros muito antigos

mal respira nos escombros
desse breve apartamento

o teu nome quem diria
não é coisa que se diga

som de um som que
se partira não insista

já não tento já não posso

é simples o que te digo
e te digo sem remorso

calmamente sim repito
sem espanto não o digo

nenhuma pedra se move
rio seco letra morta.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Augusto dos Anjos, "Solitário"


Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta.
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

terça-feira, 31 de julho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Naquele instante"


Amor só vem mais tarde, amar
só vem depois, amor é quando
tudo se foi, virá no próximo
trem, talvez no ano que vem

tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.

Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.

Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Abgar Renault, "7"


Este poema exigiu 7 folhas de papel.
Para escrevê-lo já fumei raivosamente 7 cigarros
e rasguei-o 7 vezes.
7 é um mau número: é o número 13 da minha vida.
Segundo várias aritméticas, não é divisível por 2,
e eu tenho horror a todos os números (e a todas as coisas)
não divisíveis por 2.
Sexta-feira, 7...
Isto hoje não acaba bem...
Vai a chuva ficar chovendo para sempre.
O meu relógio vai continuar disparado,
marcando horas inexistentes.
Ah, se os ponteiros andassem para trás!
Ah, se ao menos a chuva chovesse para cima
e eu fizesse destes nulos versos
uma folha noturna e molhada!

sábado, 28 de julho de 2018

Alexei Bueno, "Documentos vencidos"


As mudanças. Se abres uma gaveta
Dessas há uns vinte anos esquecidas
Só encontras cacos de diversas vidas,
Não só da tua, e como está repleta.

Há algum naufrágio tão longe da meta
Que, no entanto, nem teve? As doloridas
Faces a nos fitar, só concebidas
Para isso, não murmuram, a hora é quieta.

Exumação mais dura que a dos ossos
Tão incaracterísticos, que herança
Sublime é a nossa, escola de destroços?

E ainda há aqueles que falam da esperança
Neste lado feliz, fazendo esboços
De florzinhas e risos de criança.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Vinícius de Moraes e Paulo Mendes Campos, "Soneto a quatro mãos"


Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Melancolia de Jasão, filho de Cleândro, poeta em Comagena, 959 D.c."


O envelhecimento do meu corpo, do meu rosto
é a ferida de um punhal terrível.
Como não tenho resignação nenhuma,
recorro a ti, oh Arte da Poesia,
que algo sabes de remédios,
na tentativa de embotar a dor com Fantasias e Verbo.

É a ferida de um punhal terrível. –
Dá-me dos teus remédios, Arte da Poesia,
que me fazem – um instante – não sentir a ferida.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Florbela Espanca, "Amar"


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…

domingo, 22 de julho de 2018

Adriano Espínola, "O poeta relê o velho manual de instruções"


Diante do branco, sangro:
aurora de papel que singro,
A palavra, angra.

2

O poema: lambida
da língua na fala ferida.

3

Triste, sim, de tão alegre:
a beleza que fica é breve. 

sábado, 21 de julho de 2018

Fernando Pessoa, "O rei"


O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto do trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares fitados e visinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As palpebras descidas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,
O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade:
Fala a Verdade nessa boca muda;
Suas mãos presas são a Liberdade.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Al Berto, "Diários"



29.1.1985                                                                 rua do forte

lágrima

esqueci como se ama furiosamente. não venhas ter comigo, sobretudo hoje, que tanto tenho pensado em ti. não venhas.só na ausência ainda consigo desejar-te, se aqui vieres será um dia terrível para mim. terei de fingir, de enganar-me. quando estás não te amo, ou amo-te tão intensamente que às vezes me parece que isto não é amor. quando te sentas à minha frente e mexes as mãos ao falar, sinto-me atraiçoado. nenhum dos teus gestos me pertence verdadeiramente, nenhum deles foi criado só para mim. e fico cheio de ciúmes das tuas mãos. queria ser, ao menos, uma delas, ou um dedo apenas para poder andar sempre ligado a ti. saber o que tocas e acaricias. saber quem apontas e quem desejas, saber tudo que os dedos segredam quando adormecem enleados uns nos outros. estremeço ao pensar em ti, mas esqueci quase completamente como se ama. por isso vem, vem junto a mim e sorri. o teu sorriso aliviar-me-á da escuridão dos dias até amanhã.

quarta-feira, 18 de julho de 2018

Ferreira Gullar, "O musgo"


Em frente à janela do alpendre
por volta de 1949
                            o musgo
tomou todo o muro com seu veludo vivo
                            e verde
assim o mantinha dominado
sob a multidão de suas patinhas macias

e ali ficava como se dormisse
                             grudado a ele
                             feito o pêlo de um bicho
prenhe de luz e noite
pois nele formigava um escuro, úmido alarido
                             e que
                             de qualquer ponto da cidade
                             eu podia escutar

eu e os mortos todos
cristalizados no chão da ilha

segunda-feira, 16 de julho de 2018

Sousândrade, "Dá meia-noite"


Alb.....

Dá meia-noite; em céu azul ferrete
Formosa espádua a lua
Alveja nua,
E voa sobre os templos da cidade.

Nos brancos muros se projetam sombras;
Passeia a sentinela
À noite bela
Opulenta da luz da divindade.

O silêncio respira; almos frescores
Meus cabelos afagam;
Gênios vagam,
De alguma fada no ar andando a caça.

Adormeceu a virgem; dos espíritos
Jaz nos mundos risonhos –
Fora eu os sonhos
Da bela virgem... Uma nuvem passa.

domingo, 15 de julho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Por vezes, não raro"


Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

Junqueira Freire, "Desejo (Hora de Delírio)"


Se além dos mundos esse inferno existe,
    Essa pátria de horrores,
Onde habitam os tétricos tormentos,
    As inefáveis dores;

Se ali se sente o que jamais na vida
    O desespero inspira:
Se o suplício maior que a mente finge,
    A mente ai respira;

Se é de compacta, de infinita brasa
    O solo que pisa:
Se é fogo, e fumo, e súlfur, e terrores
    Tudo que ali se visa;

Se ali se goza um gênero inaudito
    De sensações terríveis;
Se ali se encontra esse real de dores
    Na vida não possíveis;

Se é verdade esse quadro que imaginam
    As seitas dos cristãos;
Se esses demônios, anjos maus, ou fúrias,
    Não são erros vãos;

Eu – que tenho provado neste mundo
    As sensações possíveis;
Que tenho ido da afecção mais terna
    Às penas mais incríveis;

Eu – que tenho pisado o colo altivo
    De vária e muita dor;
Que tenho sempre das batalhas dela
    Surgido vencedor;

Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
    E que pareço eterno;
Eu quero morrer pra sempre,
    Entrar por fim no inferno!

Eu quero ver se encontro ali no abismo
    Um tormento invencível:
– Desses que achá-los na existência toda
    Jamais será possível!

Eu quero ver se encontro alguns suplícios
    Que o coração me domem;
Quero lhe ouvir esta palavra incógnita:
    – “Chora por fim, – que és homem!”

Que de arrostar as dores desta vida
    Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo:
    Quero vencer o inferno!


quinta-feira, 12 de julho de 2018

Carlos Drummond de Andrade, "Instante"


Uma semente engravidava a tarde.
Era o dia nascendo, em vez da noite.
Perdia amor seu hálito covarde,
e a vida, corcel rubro, dava um coice,

mas tão delicioso, que a ferida
no peito transtornado, aceso em festa,
acordava, gravura enlouquecida,
sobre o tempo sem caule, uma promessa.

A manhã sempre-sempre, e dociastutos
eus caçadores a correr, e as presas
num feliz entregar-se, entre soluços.

E que mais, vida eterna, me planejas?
O que se desatou num só momento
não cabe no infinito, e é fuga e vento.

quarta-feira, 11 de julho de 2018

terça-feira, 10 de julho de 2018

André Verdet, "À hora da morte"


À hora da morte
ele tornou a ver os mansos cães vadios de outrora
que se abstinham
de lhe devolver suas pedradas.

Tradução de Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 9 de julho de 2018

David Mourão-Ferreira, "Herança"


Ouvir, ouvir de noite uma ambulância
e desejar que estejas a morrer;
fechar a porta à minha própria infância;
amigos, conhecidos, nem os ver;

quebrar nas mãos o aro da esperança;
mas de mim para mim depois dizer:
"Calma! Quem nada espera tudo alcança..."!
e guardar o revólver; e beber,

a sós, o vinho que na taça baste
a recompor-te, viva, na distância:
isto foi, como herança, o que deixaste.

E ainda o mais que não te quis dizer:
ouvir, ouvir de noite uma ambulância,
e desejar ser eu quem vai morrer...

sábado, 7 de julho de 2018

Edna St. Vincent Millay, "Canto fúnebre sem música"


Não me conformo em ver baixarem à terra dura os corações amorosos,
É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos imemoriais:
Partem para a treva os sábios e os encantadores. Coroados
De louros e de lírios, partem; porém não me conformo com isso.

Amantes, pensadores, misturados com a terra!
Unificados com a triste, indistinta poeira.
Um fragmento do que sentíeis, do que sabíeis,
Uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor se perdeu.

As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o amor
foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante, ondulosa
é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.

Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo
Suavemente, os belos, os carinhosos, os bons.
Tranquilamente baixam os espirituosos, os engraçados, os valorosos.
Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me conformo.

Tradução de Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 6 de julho de 2018

Adriano Espínola, "A árvore"


Incêndio esverdeado no meio
da praça.
Chama vegetal.
As folhas bebem
de estalo
a luz matinal.

O sol
a tudo assiste: atento.
imperial.

Sim, o sol
- ó pai de todo pensamento.

quarta-feira, 4 de julho de 2018

Carlos Drummond de Andrade













"Canção amiga"

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.

terça-feira, 3 de julho de 2018

Alexei Bueno, "Camões, além do desconcerto"


Camões, nessas terras duras
De cafres, mouros, gentios,
Quantos mares, quantos rios,
Quantas terríveis lonjuras
Até as faces que são tuas.

Quantos meses, ou mais que eles,
Entre uma carta e outra carta,
Mundo vão que nos aparta,
Espumas que salgam, reles,
Nossas mãos só nisso imbeles.

A essência da solidão
Caminha em Goa, nas ruas,
Ao pensar que as mesmas luas
Banham de argênteo clarão
Olhos que cá e lá estão.

Mestre, não sei se é consolo,
Todos nós marchamos sós,
Mas é em nós que a tua voz
Vibra, não no coevo tolo
Que de Olisipo é hoje o solo.

De Ceuta, de Índia ou Macau
Nunca estiveste tão perto,
Tão sobre o salso deserto,
Sobre o torpe, sobre o mau,
Sobre o inconfiável vau

Quanto agora, em nosso peito,
Nosso pai, irmão e amigo,
Finda a Sorte, ido o Perigo,
Na Santa Cidade, eleito,
Para onde vai nosso preito.

sábado, 30 de junho de 2018

Augusto dos Anjos, "Eterna mágoa"


O homem por sobre quem caiu a praga
Da tristeza do Mundo, o homem que é triste
Para todos os séculos existe
E nunca mais o seu pesar se apaga!

Não crê em nada, pois, nada há que traga
Consolo á Mágoa, a que só ele assiste.
Quer resistir, e quanto mais resiste
Mais se lhe aumenta e se lhe afunda a chaga.

Sabe que sofre, mas o que não sabe
E que essa mágoa infinda assim, não cabe
Na sua vida, é que essa mágoa infinda

Transpõe a vida do seu corpo inerme;
E quando esse homem se transforma em verme
E essa mágoa que o acompanha ainda!

sexta-feira, 29 de junho de 2018

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Cecília Meireles, "Quarto motivo da rosa"


Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.
Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.

Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.
E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Sylvia Plath, "Não entres docilmente nesta noite mansa"


Não entres docilmente nesta noite mansa:
A idade deve arder e irar-se ao fim do dia;
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

Mesmo sabendo no final que a justa escuridão avança,
Pois seus gestos não forjaram raios, o homem sábio
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem, à onda derradeira, gemendo
Que seus frágeis atos poderiam ter brilhado e dançado na enseada,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

O homem louco que reteu e cantou o sol em fuga,
E aprendeu, tão tarde, que apenas lamentava seu passar,
Não entra docilmente nesta noite mansa.

O homem grave, ao morrer, já cego vendo
Que olhos cegos poderiam brilhar como as estrelas e alegrar-se,
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

E tu, meu pai, aí da tua altura triste,
Amaldiçoa-me, abençoa-me, te peço, com tuas lágrimas ferozes.
Não entres docilmente nesta noite mansa.
Grita, grita contra a luz que está morrendo.

Tradução de Ana Cristina Cesar 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

domingo, 24 de junho de 2018

Manuel António Pina, "Amor como em casa"


Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.

sábado, 23 de junho de 2018

Vinicius de Moraes, "O anjo de pernas tortas"


A um passe de Didi, Garrincha avança
Colado o couro aos pés, o olhar atento
Dribla um, dribla dois, depois descansa
Como a medir o lance do momento.

Vem-lhe o pressentimento; ele se lança
Mais rápido que o próprio pensamento
Dribla mais um, mais dois; a bola trança
Feliz, entre seus pés — um pé de vento!

Num só transporte, a multidão contrita
Em ato de morte se levanta e grita
Seu uníssono canto de esperança.

Garrincha, o anjo, escuta e atende: — Goooool!
É pura imagem: um G que chuta um o
Dentro da meta, um l. É pura dança!

sexta-feira, 22 de junho de 2018

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Machado de Assis, "Quando ela fala"


Quando ela fala, parece
Que a voz da brisa se cala;
Talvez um anjo emudece
Quando ela fala

Meu coração dolorido
As suas magoas exala.
E volta o gozo perdido
Quando ela fala.

Pudesse eu eternamente,
Ao lado dela, escuta-la
Ouvir sua alma inocente
Quando ela fala.

Minh’alma, já semimorta,
Conseguira ao céu alçá-la
Porque o céu abre uma porta
Quando ela fala.

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Jorge Luis Borges, "Soneto do vinho"


Em que reino, em que século, sob que silenciosa
Conjugação dos astros, em que secreto dia
Que o mármor não salvou, surgiu a valiosa
E singular ideia de inventar a alegria.
Com outonos dourados o criaram. O vinho
Refluiu rubro ao longo de muitas gerações;
Como o rio do tempo em seu árduo caminho
Prodigou-nos a música, seu fogo e seus leões.
Na noite jubilosa ou na jornada adversa,
Ele exalta a alegria ou nos mitiga o espanto,
E o ditirambo novo que este dia lhe canto
Lhe foi cantado outrora pelo árabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver a minha história
Como se esta já fosse a cinza da memória.

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Contrição"


Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel das paixões que me arrastava;
Ah! cego eu cria, ah! mísero eu pensava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
A existência falaz me não doirava!
Mas eis sucumbe a natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres sócios meus, e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
no abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, ó Deus! Quando a morte à luz me roube,
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

domingo, 17 de junho de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Desde as nove"


A imagem de meu corpo jovem,
desde as nove quando acendi o candeeiro,
veio encontrar-me e fez-me lembrar
quartos fechados aromatizados,
e volúpia passada – que ousada volúpia!
E trouxe-me diante dos olhos, também,
ruas que agora se tornaram desconhecidas,
locais de divertimento cheios de movimento que acabaram,
e teatros e cafés que existiram outrora.

A imagem de meu corpo jovem
veio trazer-me também as lembranças tristes:
lutos da família, separações,
afeições dos meus, afeições
dos mortos, tão pouco apreciadas.

Meia-noite e meia. Como passou a hora.
Meia-noite e meia. Como passaram os anos.

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Alexei Bueno, "Diálogo"


Esse velho esquivo
Que surge no espelho,
Quem é esse velho
Feliz de estar vivo?

Que máscara é essa
da imensa traição?
Este é o mesmo chão
Da auroral promessa?

Sim, é o mesmo solo
Onde engatinhava
Nossa forma escrava
Se não ia ao colo.

E esse velho é o espanto
Que o espelho produz
Quando pousa a luz
No rosto em que o pranto

Há muito está extinto.
Velho, me responde,
Nesta hora sem onde,
Se mentes, se eu minto?


quinta-feira, 14 de junho de 2018

Augusto dos Anjos, "Idealismo"


Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da Humanidade é uma mentira.
É. E é por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.

O amor!Quando virei por fim a amá-lo?!
Quando, se o amor que a Humanidade inspira
É o amor do sibarita e da hetaira,
De Messalina e de Sardanapalo?! 

Pois é mister que, para o amor sagrado,
O mundo fique imaterializado
— Alavanca desviada do seu fulcro — 

E haja só amizade verdadeira
Duma caveira para outra caveira,
Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!

terça-feira, 12 de junho de 2018

Eugénio de Andrade, "Melancolia"


O sol mal entra em casa - escrevo
sobre a fugidia
luz de areia,
luz que não encontra morada.
Tudo me dói neste dia
em que os mortos deixam à porta
dos vivos
a corrosiva melancolia.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Antonio Carlos Secchin, "Soneto da Dissipação"


Revejo a  luz gelada de manhãs perdidas
e os sonhos  que eu  mandei para o endereço errado.
Tanto azul me nauseia e nada se dissipa
em meio ao mangue seco onde estanquei  meu barco.
Muitas  sombras debatem-se à beira do quarto.
Fantasmas nos  lençóis da noite estreita e aflita
esgueiram seus  anzóis no meu silêncio farto 
de saber que eles são a única visita.
Imóveis no sofá, me contemplam ferozes
e cravam com desdém  as garras da rapina.
Espanto  o pó e a dor  que descem  dessas vozes
rolando sem parar  pela memória acima.
O espelho só  me ensina  a ruína do desejo.
 Sei que é meu esse olhar em que eu não mais me vejo.

sábado, 9 de junho de 2018

Adriano Espínola, "Claridade"


                                                                                    A Catherine Dumas

Com os punhos cerrados de sol,
a luz golpeia
a praia. 

Arde o instante na areia. 

Nas dunas,
por entre casebres,
papoulas acendem sua dor
vermelha. 

Mestre André,
sob um coqueiro,
retalha com a peixeira
o esquivo
milagre dos peixes. 

O verdiazul ascende as costas
do horizonte. 

Barcos buscam, peregrinos,
as profundezas. 

O pensamento a pino
se descobre,
transparente. 

Espiritual é a luz do meio-dia.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Alexei Bueno, "Trajeto"


Quantas ruas, travessas, avenidas,
De início a abrir-se em leque à nossa frente?
Depois já são bem menos. Finalmente
Umas poucas. Então, de certa feita,
Resta uma só das tantas prometidas,
Um beco, uma viela, unicamente,
                 E como é estreita.

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Manuel Bandeira












"Quando perderes o gosto humilde da tristeza..."

Quando perderes o gosto humilde da tristeza,
Quando, nas horas melancólicas do dia,
Não ouvires mais os lábios da sombra
Murmurarem ao teu ouvido
As palavras de voluptuosa beleza
Ou de casta sabedoria;

Quando a tua tristeza não for mais que amargura,
Quando perderes todo estímulo e toda crença,
- A fé no bem e na virtude,
A confiança nos teus amigos e na tua amante,
Quando o próprio dia se te mudar em noite escura
De desconsolação e malquerença;

Quando, na agonia de tudo o que passa
Ante os olhos imóveis do infinito,
Na dor de ver murcharem as rosas,
E como as rosas tudo o que é belo e frágil,
Não sentires em teu ânimo aflito
Crescer a ânsia de vida como uma divina graça:

Quando tiveres inveja, quando o ciúme
Crestar os últimos lírios de tua alma desvirginada;
Quando em teus olhos áridos
Estancarem-se as fontes das suaves lágrimas
Em que se amorteceu o pecaminoso lume
De tua inquieta mocidade:

Então sorri pela última vez, tristemente,
A tudo que outrora
Amaste. Sorri tristemente...
Sorri mansamente... em um sorriso pálido... pálido
Como o beijo religioso que puseste
Na fronte morta de tua mãe... Sobre a sua fronte morte...

terça-feira, 5 de junho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Les romanciers étrangers"


Ela implorou por um beijo.
Sabia que um só beijo
e tudo estaria bem,
que outro beijo viria,

mais um, outro e tudo mais.
Sim, ela implorou chorando
que lhe desse um beijo e só.
Mas ele disse que não.

Firme e frio, disse que não.
Ele sabia, sem dúvida,
que se cedesse ao pedido
tudo estaria bem e

que outro beijo viria
e ele, decididamente,
não queria. Foi por isso
que ficou daquele modo,

firme, frio. Ela implorava,
olhos inchados, vermelhos,
estava dessa maneira
quando saíram à rua

e ele fingia que nada,
nada havia acontecido.
Mas como ele conseguia
ser assim, intransponível?

Diante dela, parecia
que se convertera em pedra,
pedra inteiramente não,
muro inteiramente muro.

Que fazemos quando alguém
que amamos se faz assim
diante de nosso desejo,
frente a nosso desespero?

Hoje os olhos estão secos.
Ela lembra. E ela entende
que tudo foi bem pior:
porque a pedra não era ele,

porque a pedra era ela mesma,
apesar de toda lágrima.
Sim, ela era a pedra dele,
em que ele a transformara.

domingo, 3 de junho de 2018

Hilda Hilst, "Do amor contente e muito descontente"


Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Tenho me fatigado tanto todos os dias
Vestindo, despindo e arrastando amor,
Infância,
Sóis e sombras.
Vou dizer coisas terríveis à gente que passa.
Dizer que não é mais possível comunicar-me.
(Em todos os lugares o mundo se comprime.)
Não há mais espaço para sorrir ou bocejar de tédio.
As casas estão cheias. As mulheres parindo sem cessar,
Os homens amando sem amar, ah, triste amor desperdiçado
Desesperançado amor… Serei eu só
A revelar o escuro das janelas, eu só
Adivinhando a lágrima em pupilas azuis
Morrendo a cada instante, me perdendo?

Iniciei mil vezes o diálogo. Não há jeito.
Preparo-me e aceito-me
Carne e pensamento desfeitos. Intentemos,
Meu pai, o poema desigual e torturado.
E abracemo-nos depois em silêncio. Em segredo.

sábado, 2 de junho de 2018

Cecília Meireles, "1º Noturno da Holanda"


O rumor do mundo vai perdendo a força,
e os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas
de vidro, de seda, de abraços difusos.

A lua que chega traz outros convites:
inclina em meus olhos o celeste mapa,
desmorona os punhos crispados do dia,
desenha caminhos, transparente e abstrata.

Arvores da noite... Pensamento amante...
- Transporta-me a sombra, na altura profunda,
aos campos felizes onde se desprende
o diurno limite de cada criatura.

É a noite sem elos... Inocência eterna,
isenta de mortes e natividades,
pura e solitária, deslembrada, alheia,
mudamente aberta para extremas viagens.

Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite,
nem creio que SEJA: perduro em memória,
à mercê dos ventos, das brumas nascidas
nos dormentes lagos que ao luar se evaporam.

Recebo teu nome também repartido,
quebrado nos diques, levado nas flores...
Quem sabe teu nome – tão longe, tão tarde,
tão fora do tempo, do reino dos homens...?

sexta-feira, 1 de junho de 2018

Vitorino Nemésio, "Outro testamento"


Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.

Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.

Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta irritação.

Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.

Quando eu morrer. . .
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.

Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.

Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Deem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me - só horizonte - para o mar.

quinta-feira, 31 de maio de 2018

quarta-feira, 30 de maio de 2018

Teixeira de Pascoaes, "A dor e o medo"


Quando sozinho, noite morta, rezo,
E a minha voz dos medos me defende,
E a tudo, à terra e ao céu, me sinto preso.
Vejo que a dor é a força que nos prende.

Enlouquecido de alma, canto e rezo.
Aflige-me o silêncio. Quem no entende?
A sombra me sufoca. É negro peso;
E, em fumo, do meu corpo se desprende.

Ó noite triste, noite que apavora,
Golpeada de estrelas, a sorrir...
Desnorteado, o vento clama e chora !

E quem sou eu? Quem sou? Na noite escura.
— O medo à morte certa que há-de vir
E a dor de ser humana criatura.

terça-feira, 29 de maio de 2018

Luís de Camões, "Este amor que vos tenho, limpo e puro..."


Este amor que vos tenho, limpo e puro
De pensamento vil nunca tocado,
Em minha tenra idade começado
Tê-lo dentro nesta alma só procuro.

De haver nele mudança estou seguro,
Sem temer nenhum caso ou duro Fado,
Nem o supremo bem ou baixo estado,
Nem o tempo presente nem futuro.

A bonina e a flor asinha passa;
Tudo por terra o Inverno e Estio deita;
Só pera meu amor é sempre Maio.

Mas ver-vos pera mim, Senhora, escassa,
E que essa ingratidão tudo me enjeita,
Traz este meu amor sempre em desmaio.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

domingo, 27 de maio de 2018

Ferreira Gullar









"No corpo"

De que vale tentar reconstruir com palavras
O que o verão levou
Entre nuvens e risos
Junto com o jornal velho pelos ares

O sonho na boca, o incêndio na cama,
o apelo da noite
Agora são apenas esta
contração (este clarão)
do maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.

sábado, 26 de maio de 2018

Donizete Galvão, "O poço"


                                          I

O poço não é um buraco com água a céu aberto,
mas cristal líquido, cravado no tijuco cinza.

Cada dia o poço é um e está mudado em outro:
à custa de tanto uso, cada manhã mais novo.

Sempre outra é a dança dos círculos até a borda,
que pouca pedra basta para infinitos movimentos.

A primeira água do poço não serve para o pote,
pois sempre há cisco, insetos ou pele de ferrugem.

Entretanto, o fundo do poço tem belezas de parto:
a mina lança brotos de água e insufla areia fina.

Se à noite chove, o poço turva-se como quem morre.
Não amanhece espelho e sim buraco com água suja.

                                       II

Beber água do poço, direto, sem caneca, exige tento,
pois a concha da mão não basta para quem tem sede.

Um modo elegante de para o poço fazer reverência
é tirar o chapéu e mergulhá-lo, agora mudado em copo.

O suor pode botar gosto de sal na água doce do chapéu,
mas o que refresca a garganta, também a cabeça esfria.

Outro modo, é quando há por perto folhas de inhame.
A água desliza no verde com sua película de prata.

E as gotas, na corda bamba, quais aquáticas bailarinas,
bailam tão puras, que a gente sente pena de bebê-las.

Mais um modo, é como o papa deitar-se de corpo inteiro:
a boca beija a água e, do fundo, outro olho nos enxerga.

Enquanto se engole a água, as costelas roçam o chão.
Não se sabe se o pulsar é dela, terra, ou dele, coração.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

Eucanaã Ferraz, "Sem poder dizer de si mesmo"


O Alentejo não tem caroço nem casca,
não tem paredes nem teto; certa vez

um velho deixou suas memórias sobre a mesa
todas queimaram, porque os fantasmas lá

não resistem à luz que se lança de altas espigas
para o pátio onde cada faísca risca e dança

entre sobreiros junhos girassóis e dura
mesmo noite adentro. Sente o cheiro

da madeira queimada? São fantasmas, nada.
O mundo é pequeno, o Alentejo é imenso

e lá estava o homem depois de todas as viagens
sem poder dizer de si mesmo algo como:

o dono e seu retorno. Afinal, onde a casa
o relógio a mulher o cachorro o nome?

O retrato da Virgem a lâmpada a cama onde?
Desdobra-se o horizonte em céus em dunas

de poeira em túnicas no vento em fios
e não há nunca filhos ou amigos ou espelho.

Que lugar a cidade a fidelidade urdindo
desfazendo e outra vez os anéis sem fim

da espera? Indaga os livros os mortos
até que as areias do mar, do mar que

parecia distante,
lentamente - não, de repente - cobrem-lhe

a voz e o tempo. O mundo
é pequeno, o Alentejo é imenso.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Adriano Espínola, "O cavalo e o mar"


                                                                                    A Fernando Py

Na praia, um cavalo azul
imita o mar.

Com as crinas espumantes,
ondula sobre a areia.
Arremessa-se, furioso,
contra as dunas.

(Na sua garupa de alga,
El-Rei Dom Sebastião,
encantado, já cavalga
com a espada na mão.)

Veloz,
busca asas:
mito trespassado
de sonhos e sargaços.

O mar com suas líquidas patas
cavalga na praia.
Com os músculos retesados
de maré cheia,

investe,
resfolegante,
contra a areia.
Com as crinas de algas,
escoiceia
a manhã.

Encrespa-se todo,
buscando o cavalo:
mito ondulado de sal e tempo.

Ali,
os dois se enfrentam:
o cavalo-marinho
& o mar-eqüestre.

Indiferente,
o sol assiste
à peleja perene das criaturas.

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Fernando Pessoa, "A minha alma ajoelha ante o mistério..."


A minha alma ajoelha ante o mistério
Da sua íntima essência e próprio ser,
Faz altar do sentido de viver
E cálice e hóstia do seu grave etéreo

Senso de se iludir. Corpo funéreo
Doente da vida. Alma a aborrecer
O que nela é corpo… Vida a arder
Tédio, (e) as sombras são seu fumo aéreo.

Sombra de sonho… Hálito de mágoa…
Alma corpo de Deus, disperso e frio
Boiando sobre a morte como em água…

Indecisão… Penumbra do pensar.
Fonte oculta tornada claros rio…
Rio morrendo-se no imenso mar…

domingo, 20 de maio de 2018

Antônio Carlos Secchin, "Poema do infante"


É a noite.
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
- estéril dorso entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco,
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro.
Operário do precário,
me limito nesse corpo amanhecido,
asa e gozo onde a morte mora.
Minha vida, mapeada e descumprida,
está pronta para o preço dessa hora.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Ascânio Lopes, "Sanatório"


Logo, quando os corredores ficarem vazios,
e todo o Sanatório adormecer,
a febre dos tísicos entrará no meu quarto,
trazida de manso pela mão da noite.

Então minha testa começará a arder,
e todo meu corpo magro sofrerá.
E eu rolarei ansiado no leito
com o peito opresso e de garganta seca.

E lá fora haverá um vento mau
e as árvores sacudidas darão medo.
a Morte que quer entrar no meu quarto.

Os meus olhos brilharão como os de uma fera
que defende a entrada da sua morada.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Cecília Meireles, "Convite melancólico"


Vinde todos, e contemplai-nos:
que somos os da terra fatigados,
de cabelos hirsutos
e de joelhos sem força,
com palavras, paisagens, figuras humanas
pregadas para sempre em nossa memória.

Já nem queremos nada,
tanto estamos desgostosos:
nem água nem ouro nem beijo.
Para nunca mais – o horizonte e a sua flor!

Podeis vir, que já se extinguiram as revelações.
Nada vos custa o espetáculo.
Rasgou-se o traçado em que nós gastamos em sonho,
e a arquitetura que trazíamos
voa de novo, em números celestes.

Vinde e contemplai-nos, que entardece.
Nossas sombras caminham para o reino da Sombra.
Nunca mais sabereis como foram os nossos olhos:
vinde vê-los para (se isto ainda se repetir)
vossos filhos reconheceram prontamente
os modos e o destino dos que apenas amaram,
e passaram,
amarrados,

eles, que tinham vindo
mostrar apenas o divino dinamismo!

terça-feira, 15 de maio de 2018

Leis estranhas em New Jersey (EUA)


-- Quando, no trânsito, um policial fizer a pergunta padrão “você sabe por que mandei você encostar?” e o motorista responder “se você não sabe, não sou eu que vai lhe dizer”, este será automaticamente multado em US$ 300.
-- Motoristas devem advertir a quem quiser ultrapassar nas estradas, antes de fazê-lo.
-- Tintas de spray não podem ser vendidas, sem uma placa advertindo aos jovens sobre as penalidades para pichação.
-- Usar coletes à prova de bala ao cometer um crime é ilegal.
-- É obrigatório emprestar o telefone a uma pessoa que tiver uma emergência.
-- Um homem não pode tricotar durante a estação de pesca.
-- É proibido fechar a cara para um policial.
-- Maio é designado o “Mês da Conscientização da Bondade”.
-- Quem for condenado por dirigir intoxicado nunca mais receberá uma placa de veículo personalizada.
-- É proibido consumir sopa ruidosamente.
-- Em Blairstown: É proibido jogar cinzas na calçada.
-- Em Newark, é ilegal vender sorvete depois das 18h, a não ser que o cliente tenha uma autorização de seu médico.

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Adriano Espínola, "Lixeira"


As cascas de ovo
& de banana
a folha de jornal
da semana
pedaços de couve
& de tomate
a palavra que sal-
tou suja de chão
o gesto que ficou
pela metade
a história que não
houve:
tudo isso úmido
tudo isso ido
doídoamassado
dentro de ti
e do saco de lixo.

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Antônio Carlos Secchin, "Autoretrato"


                                                     A Flávia Ampan

Um poeta nunca sabe
onde sua voz termina,
se é dele de fato a voz
que no seu nome se assina.
Nem sabe se a vida alheia
é seu pasto de rapina,
ou se o outro é que lhe invade,
numa voragem assassina.
Nenhum poeta conhece
esse motor que maquina
a explosão da coisa escrita
contra a crosta da rotina.
Entender inteiro o poeta
é bem malsinada sina:
quando o supomos em cena,
já vai sumindo na esquina,
entrando na contramão
do que o bom senso lhe ensina.
Por sob a zona da sombra,
navega em meio à neblina.
Sabe que nasce do escuro
a poesia que o ilumina.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Bandeira Tribuzzi, "Poema"


Um cão ladrou
na noite obscura
tremores frios
de inanição
A mulher magra
esperou cansada
que a carne exausta
fosse chamariz
Poucos sexos jovens
se investigaram
muitos não conseguiram
fugir à frustração
Alguns descansaram
outros se diluíram
o caixote de lixo
esperou esperou
Depois rompeu
a madrugada.

terça-feira, 8 de maio de 2018

segunda-feira, 7 de maio de 2018

Francisco Carvalho, "Bolhas de sabão"


Os homens se divertem com as palavras
como as crianças se divertem com bolhas de sabão.
Ai daquele que põe o coração nas palavras
porque depois vem a perdê-lo
como se perde a identidade da imagem num espelho
partido.
Ai daquele que depositou seu fardo de sonhos
às costas das palavras.
As palavras são como as velas de uma nau que perdesse
a rota da bússola.
Teu coração é um labirinto de palavras
mas as palavras precisam de tuas sensações para existir
e as tuas sensações não são menos abstratas
do que as sete verdades do arco-íris.

Mastigas diariamente as palavras
como se elas fossem um bálsamo para a alma.
As palavras te governam e te configuram
delimitam as fronteiras de tua solidão
os caminhos da eternidade e do adeus.
As palavras assinalam o momento de tua morte
e te ensinam a abrir a porta onde não existe porta.

sábado, 5 de maio de 2018

Konstantinus Kaváfis, "Monotonia"


A um dia monótono, outro
monótono, idêntico, segue. Ocorrerão
as mesmas coisas; essas novamente ocorrerão
– os instantes, semelhantes, encontram-nos e deixam-nos.

Um mês passa e traz outro mês.
Essas coisas que chegam facilmente se presumem:
são aquelas de ontem, as enfadonhas.
E o amanhã acaba por já não parecer um amanhã.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca

sexta-feira, 4 de maio de 2018

Leis estranhas em New Hampshire (EUA)


-- Não é permitido dar tapinhas no pé, balançar a cabeça ou acompanhar o ritmo de uma música, de qualquer forma, em uma taverna, restaurante ou café.
-- É proibido vender a roupa que se está usando para pagar dívida de jogo.
-- Registrar-se em hotel com nome falso é ilegal.
-- Apanhar algas na praia é ilegal.
-- Qualquer boi ou vaca que cruzar estradas estaduais deve estar equipado com um recipiente para coletar suas fezes.
-- É proibido operar máquinas aos domingos.
-- Aos domingos, os cidadãos não podem se “aliviar” olhando para cima.
-- Em Claremont: Em cemitérios, é ilegal ficar bêbado, fazer piquenique, permanecer à noite e, para menores de 10 anos, entrar sozinhos no local.
-- Em White Mountain National: Se uma pessoa for pega limpando a praia, apanhando lixo ou construindo um banco no parque sem uma licença ou fazer serviços de manutenção da floresta nacional sem licença, poderá ser multada em US$ 150.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Se te queres matar..."


Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo, sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes, como eu, a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outro, sobretudo a morte.
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro um alívio em todos
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas aniversariante:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti,
Duas vezes no ano suspiram ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
Se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciências da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das cousas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

terça-feira, 1 de maio de 2018

Florbela Espanca, "A minha dor"


                                                               A você 

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.

Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...

A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!

Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

segunda-feira, 30 de abril de 2018

domingo, 29 de abril de 2018

Antônio Carlos Secchin, "Linha de fundo"


Assim meio jogado pra escanteio,
volto ao poema, este local do crime.
Mas é o desprezo que melhor exprime
aquilo que no verso eu trapaceio.
Se pouco do que digo me redime,
cópia pirata de um desejo alheio,
revelo a ti, leitor, o que eu anseio:
um abutre no cadáver do sublime.
A matéria é talvez muito indigesta,
me obriga a convocar um mutirão
para acabar com toda aquela festa
de pétalas e plumas de plantão.
Memória derrubada pelo vento,
quero aqui só lembrar o esquecimento.

sábado, 28 de abril de 2018

Rubem Braga, "Ao espelho"


Tu, que não foste belo nem perfeito,
Ora te vejo (e tu me vês) com tédio
E vã melancolia, contrafeito,
Como a um condenado sem remédio.

Evitas meu olhar inquiridor
Fugindo, aos meus dois olhos vermelhos,
Porque já te falece algum valor
Para enfrentar o tédio dos espelhos.

Ontem bebeste em demasia, certo,
Mas não foi, convenhamos, a primeira
Nem a milésima vez que hás bebido.

Volta portanto a cara, vê de perto
A cara, tua cara verdadeira,
Oh Braga envelhecido, envilecido.

quinta-feira, 26 de abril de 2018

Hilda Machado, "Cabo Frio"


Nuvens passageiras
miragens peregrinas enfunadas pelo Nordeste
queda de folhagem
muda retórica

O Sudoeste dá rédeas à repulsa
nuvens erráticas devoram rivais
Orfeu despedaçado por bacantes drapejadas de vapor

Em dia sem vento
a falta de engenho permite
purezas de sabão e macieiras em flor
talco no chão do banheiro
sorvete marca Aristófanes

Mas quase sempre ele pisa seus véus

Duas mãos de cinza desmaiado
sobre fundo esmaltado é perícia
renda
luxo magnífico e corrupto
realização elegante de algum mandarim
leque de plumas de avestruz tintas de rosa
levemente agitado diante da luz


quarta-feira, 25 de abril de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Janelas"


Nestes compartimentos escuros onde passo
dias opressivos, ando para cá e para lá
a fim de achar as janelas – Quando se abrir
uma janela, será um consolo. –
Mas não se acham as janelas, ou não posso
encontrá-las. E talvez seja melhor que não as encontre.
Talvez seja a luz um novo martírio.
Quem sabe que novas coisas ela mostrará.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca

terça-feira, 24 de abril de 2018

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Eugénio de Andrade, "Com o mar"


Trago o mar todo na cabeça
daquele modo que as mulheres novas
dão de mamar aos filhos:
o que me não deixa dormir
não é o marulho das suas vagas,
são essas vozes
que na rua se levantam a sangrar
para voltarem a cair,
e rastejando
vêm morrer à minha porta.

domingo, 22 de abril de 2018

Ivan Junqueira, "Antes que o sol se ponha"


Antes que o sol se ponha e seja tarde,
e o azul crepuscular me deite a garra,
e eu, nu, retorne à terra sem fanfarra
ou mortalha que o corpo me resguarde;
antes que murche a pétala na jarra,
e eu cale, para sempre, sem alarde,
e tudo o que me coube, por covarde,
não mais recorde a relva que se agarra
às últimas raízes da existência;
antes que eu cerre os olhos e adormeça,
e em minhas próprias células esqueça
as chamas que me arderam na consciência;
antes que a luz regresse e que amanheça,
e eu a mim mesmo já não me conheça.

quinta-feira, 19 de abril de 2018

Fagundes Varela, "Enojo"


Vem despontando a aurora, a noite morre,
desperta a mata virgem seus cantores,
medroso o vento no arraial das flores,
mil beijos furta e suspirando corre.

Estende a névoa o manto e o val pecorre,
cruzam-se as borboletas de mil cores,
e as mansas rolas choram seus amores
nas verdes balsas onde o orvalho escorre.

E pouco a pouco se esvaece a bruma,
tudo se alegra à luz do céu risonho
e ao flóreo bafo que o sertão perfuma.

Porém minh'alma triste e sem um sonho
murmura olhando o prado, o rio, a espuma:
como isto é pobre, insípido, enfadonho!

quarta-feira, 18 de abril de 2018

Ivan Junqueira, "Ladainha"


Pois agora que estais
sob essa tábuas frias
entre os vermes da terra
e os cravos da agonia: 

agora que a lembrança
da carne se esfarinha
e o pó vos tinge as tíbias
no fundo do jazigo;

agora que dormis,
no jardim das delicias,
esse sono sem fim
que dormem os espíritos;

agora que jazeis
alheios ao suplício
em que se consumiu
vossa esquálida vida

- agora é que vos choro
junto à lápide estrita
da eterna desvalia.
Amém. Amém vos digo.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Antônio Carlos Secchin, "Poema do infante"


É a noite.
E tudo escava tudo
na língua ambígua que desliza
para o esquivo jogo.
Amargo corpo,
que de mim a mim se furta,
não recuso teu percurso
no hálito das pedras
que me existem em ti
- estéril dorso entre águas
estancadas.
O nada, o perto, o pouco,
não posso dividir
do que se espera o que me habita,
ao fazer fluir a via antiga
de um menino que mediu o lado impuro.
Operário do precário,
me limito nesse corpo amanhecido,
asa e gozo onde a morte mora.
Minha vida, mapeada e descumprida,
está pronta para o preço dessa hora.