segunda-feira, 31 de março de 2014

Konstantinos Kaváfis, "A cidade"


Disseste: "Irei à outra terra, irei a outro mar.
Uma outra cidade há de achar-se melhor que esta.
Cada esforço meu é uma condenação fatal;
e está no meu coração — como morto — enterrado.
Meu espírito até quando ficará neste marasmo?
Para onde volte meu olhar, para qualquer lugar que atente
ruínas negras de minha vida vejo aqui,
onde tantos anos passei, e a destruí e arruinei".

Novos lugares não encontrarás, não encontrarás outros mares.
A cidade te seguirá. Às mesmas ruas voltarás.
E nos mesmos bairros envelhecerás;
e nestas mesmas casas encanecerás.
Sempre a esta cidade chegarás. Quanto a outros
                                             [lugares — não tenhas esperanças —
não há navio para ti, não há caminho.
Assim como destruíste tua vida aqui
neste pequeno recanto, em toda a terra arruinaste-a.


Tradução de Isis Borges da Fonseca.

sábado, 29 de março de 2014

Anna Akhmátova, "A verdadeira ternura..."


A verdadeira ternura não se confunde
com coisa alguma. É silenciosa.
Em vão envolves com cuidado
os meus ombros e meu colo nesta estola.
Em vão palavras carinhosas
dizes sobre o nosso primeiro amor.
Como conheço bem esses insistentes
e insatisfeitos olhares teus.
 

sexta-feira, 28 de março de 2014

Edwin Morgan

 

 
 
 
 
 
"Um Cigarro"
 
Não há fumo sem ti, meu fogo.
Depois de teres partido,
O teu cigarro cresceu no meu cinzeiro
E enviou uma linha de uma cinza muito calma.
E sorri a quem iria acreditar no seu sinal
de tanto amor. Um cigarro
no cinzeiro do não-fumador.
Enquanto a última espiral
estremece, uma pequena corrente de ar
sopra o seu caminho no meu rosto.
É cheiro, é gosto?
Tu estás aqui de novo, e eu estou bêbado no teus
lábios de tabaco.
Fora com a luz.
Deixa o fumo esconder-se no escuro.
Até eu ouvir a mesma cinza
Suspirar entre as flores de bronze.
Respirarei, após a meia-noite, o teu último beijo.

Tradução de Pedro Calouste.
 

quinta-feira, 27 de março de 2014

quarta-feira, 26 de março de 2014

Donizete Galvão, "Mundo mudo"

salta, mundo,
        desse caroço
        de pedra
em que estás aprisionado
toda rua termina
em muro
toda palavra representa
uma falha

salta, mundo,
        desse caroço
de pedra
        vence
as camadas de aluvião
        para que aflore
        um grão
        um broto
        um grito
para quem está exausto
        de auscultar teu corpo
                                   ferido

terça-feira, 25 de março de 2014

Bastos Tigre, "Eterna incógnita"


Não sei quem sou nem sei por que motivo
Vim ao mundo e o que nele vim fazer.
Sei que penso e, portanto, sei que vivo,
Neste anseio instintivo de viver.

Porque procedo do homem primitivo,
Há rugidos de fera no meu ser.
Bom e mau, triste e alegre, humilde e altivo,
Não me posso, a mim mesmo, compreender.

Pois se, de mim, não sei causa e destino,
Que dos outros, do mundo, saberei?
Que definir, se a mim não me defino?

E sigo, ao léu da vida, a ignota lei,
Descrendo das verdades que imagino
E acreditando em tudo o que não sei.

segunda-feira, 24 de março de 2014

domingo, 23 de março de 2014

João Maia, "Como a onda"


Como a onda a um toque de vento,
Principia um poema,
Lá longe,
No mar largo da vida.

Junta as coisas perdidas
À força que o levanta:
- Vozes, acenos, olhares,

As frases sem motivo,
Leves espumas.

Cresce cantando,
Cresce reunindo e caminhando
À Síntese eleita
E morre como a onda, ao encontrar
Outra onda mais pura e mais perfeita.

sábado, 22 de março de 2014

Fernanda Botelho, "No limiar de..."


Procuro-te à nascente
       como um rio refletido.
É tarde? É sempre tarde.
Mantêm-te este meu ar de
                                      coisa que o olvido
não deixa que se enterre
sem reticência
                        ou arte
                                         (O desatino!)

O resto é só ciência.

(Erre ou não erre,
o meu destino
                        é procurar-te.)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Ana Cristina Cesar











"O tempo fecha...."

O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais do que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não
largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço
aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos?
Ah, que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais, veja,
não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Donizete Galvão, "Oração natural"


Fique atento
ao ritmo,
aos movimentos
do peixe no anzol.
Fique atento
às falas
das pessoas
que só dizem
o necessário.
Fique atento
aos sulcos
de sal
de sua face.
Fique atento
aos frutos tardios
que pendem
da memória.
Fique atento
às raízes
que se trançam
em seu coração.
A atenção:
forma natural
de oração.

terça-feira, 18 de março de 2014

segunda-feira, 17 de março de 2014

César Vallejo, "Os passos distantes"


Meu pai repousa. Seu semblante augusto
semelha um aprazível coração;
parece-me tão puro...
se há nele algo de amargo, serei eu.

Há solidão em toda casa; rezam;
não há notícia de seus filhos hoje.
Meu pai desperta, atenta os olhos
à fuga para o Egito, o lancinante adeus.
Parece-me tão próximo;
se há nele algo distante, serei eu.

E minha mãe passeia nos jardins,
saboreando um sabor já sem sabor.
Parece-me tão suave,
tão asa, tão saída, tão amor.

Há solidão na casa silenciosa,
sem notícias, sem verde, sem infância.
E se algo há de quebrado nesta tarde,
que baixa e que se parte,
são dois velhos caminhos curvos, brancos.
Por eles vai meu coração a pé.

Tradução de Ivo Barroso.

domingo, 16 de março de 2014

Ulisses Tavares, "Meditação transcendental"


                         Para meditar,
o homus modernus acidentalis
cruza as pernas
deixa as costas eretas
os braços relaxados
concentra a atenção num
ponto e assim imóvel
em pensamento e ação
liga a televisão.

sexta-feira, 14 de março de 2014

Leila Miccolis, "Efeitos óticos"

 
Quanto mais se envelhece
mais os mortos se aproximam.
Mas a conversa é difícil:
eles usam expressões diáfanas,
ectoplásticas,
e sussurram sombras.
Às vezes
figuras nos muros grafitam;
outros,
em torno das portas gravitam.

E sempre que se vão,
atravessando tijolo,
concreto, cimento e cal,
nos deixam a confirmação:
                  - nenhuma parede é real.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Miguel Torga















Os poemas abaixo são apresentados na mesma postagem, na ordem da sua  publicação no Diário VIII do poeta, pois me parecem que contam uma história.
 

"Pastoreio"

Uma cabra montesa no pascigo;
Fiel ao seu balido.
Um fauno apaixonado;
Entre os dois, um açude adormecido,
Imagem do instinto represado.

Corcunda como a vida,
Uma ponte arqueada de suspiros
A ligar as arribas do desejo;
E um guarda ao passadiço, uma presença humana,
- O pastor, a moral quotidiana...

Carvalhelhos, 21 de Junho de 1956.



"Incursão"

Terra alheia - aventura apetecida;
Pronta libertinagem
Dos sentidos;

No corpo violado da paisagem,
Atrevidos
Devaneios dos olhos indiscretos;
Virginais e secretos
Caminhos tacteados;
O gosto a devorar acidulados
Frutos proibidos;
O deleite de inéditos perfumes;
E a humana comunhão de outros queixumes
A ressoar na concha dos ouvidos.

Lovios, Espanha, 1 de Agosto de 1956.



"Penúria"

Aqui estou, varejado,
Como um pomar no outono.
Caídos aos meus pés,
Os versos não exigem
Mais doçura
De mim.
Agora,
Ou alguém os apanha
E saboreia,
Ou apodrecem.
Eu, já só condição
Da colheita futura,
Vou
Roer durante o inverno esta amargura
Que me ficou.

Coimbra, 23 de Setembro de 1956.



terça-feira, 11 de março de 2014

Fernando Pessoa- Bernardo Soares, "Livro do Desassossego"

 











Capítulo 6.

Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não me pesar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco.

Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouco coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior. Sinto na minha pessoa uma força religiosa, uma espécie de oração, uma semelhança de clamor. Mas a reação contra mim desce-me da inteligência... Vejo-me no quarto andar alto da Rua dos Douradores, assisto-me com sono, sobre o papel meio escrito, a vida vã sem beleza e o cigarro barato que a expender estendo sobre o mata-borrão velho. Aqui eu, neste quarto andar, a interpelar a vida! , a dizer o que as almas sentem!, a fazer prosa como os gênios e os célebres!

Aqui, eu, assim!

segunda-feira, 10 de março de 2014

Casimiro de Brito, "Alguém me disse..."


Alguém me disse que as aves choram
quando lhes falta o mar
por muito tempo. Não me parecem
tristes. Triste sou eu
diante das vagas
de quando fui jovem. A sombra delas na areia
tem o mesmo desenho
que meus olhos viram quando havia
paisagens. Agora,
sentado na minha rocha,
já não sei se vejo a natureza
ou se ela me vê a mim. Somos
a mesma boca, o mesmo olho obscuro
que reproduz a sombra e a sua luz.
 
 

domingo, 9 de março de 2014

sexta-feira, 7 de março de 2014

Willian Henley, "Invicto"


Do fundo desta noite que persiste
A me envolver em breu - eterno e espesso,
A qualquer deus - se algum acaso existe,
Por mi’alma insubjugável agradeço.


Nas garras do destino e seus estragos,
Sob os golpes que o acaso atira e acerta,
Nunca me lamentei - e ainda trago
Minha cabeça - embora em sangue - ereta.


Além deste oceano de lamúria,
Somente o Horror das trevas se divisa;
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,
Não me amedronta, nem me martiriza.


Por ser estreita a senda - eu não declino,
Nem por pesada a mão que o mundo espalma;
Eu sou dono e senhor de meu destino;
Eu sou o comandante de minha alma.


Tradução de  André Masini


quarta-feira, 5 de março de 2014

Nikos Kazantzákis, "Fragmento da Odisséia"


"Considero ser o principal dever do homem, nesta terra,
lutar sem tréguas contra o fado e apagar o que estava escrito;
eis como, mortal, poderás ultrapassar teu próprio deus".


Kazantzákis reescreveu a Odisseia em  1938, com 33.333 versos.

Tradução de José Paulo Paes.

terça-feira, 4 de março de 2014

Eucanaã Ferraz, "Houvesse Deus..."


Houvesse Deus e deuses
a fim de que lhes pedisse:

o coração em que penso, por
mais frases e bocas que beije,

todas ache feias e frias, e que,
amanhã, ao despertar, ou à saída

da boate, pense em mim quando
a luz do dia sobre ele se desate.


segunda-feira, 3 de março de 2014

domingo, 2 de março de 2014

Miguel Torga, "Procura"


Perdi-me tanto, que já não me encontro.
Agulha humana que se foi sumindo
No palheiro do tempo,
Hoje, amanhã, depois
= Aqui a meninice ,
Ali a mocidade -
Não houve sombra que não me cobrisse,
Nem sol que me trouxesse a claridade.

Mas não posso, nem quero conformar-me.
E como um cão fiel que escava a sepultura
Do dono,
Assim, desesperado,
Eu tento Desenterrar
A imagem do que sou, de não sei que momento
Ou que lugar...

sábado, 1 de março de 2014

Jorge Luis Borges

















"IIº Poema Inglês"

Com que te posso enredar?
Ofereço-te ruas esquálidas, crepúsculos em desespero, a
      lua dos subúrbios esburacados.
Ofereço-te a amargura de um homem que longamente
      contemplou a lua solitária.
Ofereço-te meus ancestrais, meus mortos, os fantasmas
      que os homens vivos perpetuaram no mármore: o pai
      de meu pai morto na fronteira de Buenos Aires, duas
      balas atravessadas nos pulmões, barbudo e morto,
      que seus soldados envolveram num couro de vaca; o
      pai de minha mãe - de apenas vinte e quatro anos -
      comandando uma carga de trezentos homens no
      Peru, hoje fantasmas em cavalos esvaecidos.
Ofereço-te todo enfoque que meus livros possam conter,
      toda humanidade ou humor de minha vida.
Ofereço-te a lealdade de um homem que nunca foi leal.
Ofereço-te este cerne de mim mesmo que de certa forma
      guardei - o imo* coração que não transige com
      palavras, não comercia sonhos e ficou intocado
      pelo tempo, a alegria ou as adversidades.
Ofereço-te a lembrança de uma rosa amarela vista ao
      pôr-do-sol, em tempos quando nem eras nascida.
Ofereço-te explicações a teu respeito, teorias sobre o tu,
      notícias verdadeiras e surpreendentes sobre ti mesma.
Posso dar-te a minha solidão, as minhas trevas, a fome de
      meu coração; estou tentando subornar-te com
      a incerteza, o perigo, a frustração.

O poema foi originalmente escrito em inglês por Borges, "Two English Poems", e a tradução para o português é do Ivo Barroso.

* imo - adj. e s.m. Íntimo, o que está mais fundo, mais interno; o cerne, o âmago.