sexta-feira, 23 de abril de 2010

Paulo Rossi Osir, "Rosto de Moça".

António Ramos Rosa, "Amo o teu Túmido Candor de Astro"

Amo o teu túmido candor de astro
a tua pura integridade delicada
a tua permanente adolescência de segredo
a tua fragilidade acesa sempre altiva

Por ti eu sou a leve segurança de um peito
que pulsa e canta a sua chama
que se levanta e inclina ao teu hálito de pássaro
ou à chuva das tuas pétalas de prata

Se guardo algum tesouro não o prendo
porque quero oferecer-te a paz de um sonho aberto
que dure e flua nas tuas veias lentas
e seja um perfume ou um beijo um suspiro solar

Ofereço-te esta frágil flor esta pedra de chuva
para que sintas a verde frescura
de um pomar de brancas cortesias
porque é por ti que vivo é por ti que nasço
porque amo o ouro vivo do teu rosto

terça-feira, 20 de abril de 2010

Mario Quintana, "Olho as Minhas Mãos..."

Olho as minhas mãos: elas só não são estranhas
Porque são minhas. Mas é tão esquisito distendê-las
Assim, lentamente, como essas anêmonas do fundo do mar…
Fechá-las, de repente,
Os dedos como pétalas carnívoras !

Só apanho, porém, com elas, esse alimento impalpável do tempo,
Que me sustenta, e mata, e que vai secretando o pensamento
Como tecem as teias as aranhas.

A que mundo
Pertenço ?
No mundo há pedras, baobás, panteras,
Águas cantarolantes, o vento ventando
E no alto as nuvens improvisando sem cessar.

Mas nada, disso tudo, diz: "existo".
Porque apenas existem…
Enquanto isto,

O tempo engendra a morte, e a morte gera os deuses
E, cheios de esperança e medo,
Oficiamos rituais, inventamos
Palavras mágicas,

Fazemos
Poemas, pobres poemas
Que o vento
Mistura, confunde e dispersa no ar…

Nem na estrela do céu nem na estrela do mar
Foi este o fim da Criação !
Mas, então,
Quem urde eternamente a trama de tão velhos sonhos ?
Quem faz – em mim – esta interrogação ?

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Maria Helena Vieira da Silva, "Biblioteca"

Lya Luft, "Canção do Estranhamento".

Baixei as tranças para que viesses,
dei-te a chave para que habitasses
os meus quartos mais secretos.
Mas de repente vejo-te na praia
buscando um horizonte diferente
que nem eu antes disso pressentia.
Quero deixar-te, sem desprender-me
de tudo isso que sou e desejaste,
e me dói, e me espanta e me remorde
abrir a mão para o teu sonho alado
sem te cobrar ternuras nem cuidados
com o que conquistaste e já não queres,
que te libertaria mas te algema
e que te inquieta agora, com desejos
de correr, de voar, de estar ausente.

Quero ser o que ainda ontem fomos,
quero ter o que nós tivemos,
quero que a realidade se recolha
e permaneça, entre nós, a fantasia.

Orides Fontela, "Desafio"

Contra as flores que vivo
contra os limites
contra a aparência a atenção pura
constrói um campo sem mais jardim
que a essência.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Xilogravura de Oswaldo Goeldi.

Alberto da Cunha Melo, "Schopenhauer"

Para cada sonho uma lápide
sóbria como o próprio cortejo,
depois disso, treinar seu cão
para morder qualquer desejo;

rasgada a farda da alegria
que, na batalha, o distraía,

agora a dor, em tempo célere,
pode estender, com dignidade,
sua cólera à flor da pele,

para sarjar com sua lança
tantos tumores da esperança.

Yêda Schmaltz, "Cavalo de Pau"

Quando amo, sou assim:
dou de tudo para o amado
— a minha agulha de ouro,
meu alfinete de sonho
e a minha estrela de prata.

Quando amo, crio mitos,
dou para o amado meus olhos,
meus vestidos mais bonitos,
minhas blusas de babados,
meus livros mais esquisitos,
meus poemas desmanchados.

Vou me despindo de tudo:
meus cromos, meu travesseiro
e meu móbile de chaves.
Tudo de mim voa longe
e tudo se muda em ave.

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando:
um pandeiro de cigana
com mil fitas coloridas;
de cabelo esvoaçando,
a Vênus que nasceu loura.
(E lá vou eu navegando.)

Nos braços do meu amado,
os mitos se acumulando,
enchendo-se os braços curtos
e o amado vai se inflando.

— O que de mais me lamento
e o que de mais me espanto:
o amado vai se inflando
não dos mitos, mas de vento
até que o elo arrebenta
e o pobre do amado estoura.
(Nenhum amado me agüenta.)

terça-feira, 13 de abril de 2010

Ave Verum Corpus kv. 618, de W.A. Mozart, Leonard Bernstein regendo a Orquestra e Coro Sinfônicos da Rádio da Bavária.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)


















"O que há em mim é sobretudo cansaço ..."

O que há em mim é sobretudo cansaço
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.

A subtileza das sensações inúteis,
As paixões violentas por coisa nenhuma,
Os amores intensos por o suposto alguém.
Essas coisas todas -
Essas e o que faz falta nelas eternamente -;
Tudo isso faz um cansaço,
Este cansaço,
Cansaço.

Há sem dúvida quem ame o infinito,
Há sem dúvida quem deseje o impossível,
Há sem dúvida quem não queira nada -
Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles:
Porque eu amo infinitamente o finito,
Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque eu quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...

E o resultado?
Para eles a vida vivida ou sonhada,
Para eles o sonho sonhado ou vivido,
Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto...
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço.
Íssimo, íssimo, íssimo,
Cansaço...

sábado, 10 de abril de 2010

Xilogravura de Tojari Ishikawa, "Mulher e gato"

Aldo Bonadei, "Casario"

João Ruiz Castelo Branco, "Partindo-se "

Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.
Partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.

Do Cancioneiro Geral de Garcia de Rezende (1516)

José Gomes Ferreira, "Devia morrer-se..."

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje
às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir
a despedida.
Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Djanira, "Anjo Músico"

Manuel Bandeira




















"Na Solidão das Noites Úmidas"

Como tenho pensado em ti na solidão das noites úmidas,
De névoa úmida,
Na areia úmida!
Eu te sabia assim também, assim olhando a mesma cousa
No ermo da noite que repousa.
E era como se a vida,
Mansa, pousasse as mãos sobre a minha ferida...

Mas, ah! como eu sentia
A falta de teu ser de volúpia e tristeza!
O mar... Onde se via o movimento da água,
Era como se a água estremecesse em mil sorrisos.
Como uma carne de mulher sob a carícia.
O luar era um afago tão suave,
- Tão imaterial -
E ao mesmo tempo tão voluptuoso e tão grave!
O luar era a minha inefável carícia:
A água era teu corpo a estremecer-se com delícia.

Ah! em música pôr o que eu então sentia!
Unir no espasmo da harmonia
Esses dois ritmos contrastantes:
O frêmito tão perdidamente alegre de amor sob a carícia
E essa grave volúpia da luz branca.

Oh! viver contigo!
Viver contigo todos os instantes...
Harmoniosa e pura,
Sem lastimar a fuga irreparável dos anos,
Dos anos lentos e monótonos que passam,
Esperando sempre que maior ventura
Viesse um dia no beijo infinito da mesma morte...

terça-feira, 6 de abril de 2010

Haroldo de Campos, "Horácio Contra Horácio"

ergui mais do que o bronze ou que a pirâmide
ao tempo resistente um monumento
mas gloria-se em vão quem sobre o tempo
elusivo pensou cantar vitória:
não só a estátua de metal corrói-se
também a letra os versos a memória
— quem nunca soube os cantos dos hititas
ou dos etruscos devassou o arcano?
o tempo não se move ou se comove
ao sabor dos humanos vanilóquios —
rosas e vinho — vamos! — celebremos
o instante           a ruína           a desmemória

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Burle-Marx, "Fuzileiro Naval".

Antonio Cicero, "Palavras Aladas"



Os juramentos que nos juramos
entrelaçados naquela cama
seriam traídos se lembrados 
hoje. Eram palavras aladas
e faladas não para ficar
mas, encantadas, voar. Faziam 
parte das carícias que por lá 
sopramos: brisas afrodisíacas 
ao pé do ouvido, jamais contratos.
Esqueçamo-las, pois dentre os atos 
da língua houve outros mais convincentes
e ardentes sobre os lençóis. Que esses, 
em futuras noites, em vislumbres 
de lembranças, sempre nos deslumbrem.