quarta-feira, 22 de agosto de 2018



Devido a alguns problemas particulares ficarei algum tempo sem postar.
Tchau, e até qualquer dia.

domingo, 19 de agosto de 2018

Abgar Renault, "Como quem pede uma esmola "


Preciso de uma palavra.
Em que dia ou em que noite
estará essa, que almejo,
ideal palavra insabida,
a única, a exclusiva, a só?
Dela me sinto exilado
todas as horas por junto,
com minha face, meu punho,
meu sangue, meu lírio de água.
Soletro-me em tantas letras,
e encontrá-la deve ser
encontrar a criança e o berço,
a unidade, a exatidão,
o prado aberto na rua,
a rua galgando a estrela.
Preciso de uma palavra,
uma só palavra rogo,
como quem pede uma esmola.
Em florestas de palavras
os calados pés caminham,
as caladas mãos perquirem,
os olhos indagam firmes.
Em que parábola cruel,
em que ciência, em que planeta,
em que fronte tão hermética,
em que silêncio fechada
estará viajando agora
- mariposa de ouro azul -
a palavra que desejo?
Lâmina sexo cristal
fulcro pântano convés
voraginoso fluvial
Antígona circunflexa
catastrófico crepúsculo
ênula ventre rosal
sibila farol maré
desesperadoramente
nenhuma será nem é
aquela do meu anseio.
Como será, quando vier,
a palavra entrepensada,
necessária e suficiente
para a minha construção
de lápis, papel e vento?
Dura, espessa, veludosa
ou fina, límpida, nítida?
Asa tênue de libélula
ou maciça e carregada
de algum plúmbeo conteúdo?
Distante, insone e cativo,
debaixo da chuva abstrata,
eu me planto decisivo
no tráfego confluente,
aéreo, terrestre, marítimo,
e espero que desembarque,
triste e casta como um peixe
ou ardendo em carne e verbo,
e pouse na minha mão
a áurea moeda dissilábica,
a noiva desconhecida,
a coroa imperecível:
a palavra que não tenho.

quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Adriano Espínola, "Dante"


Exilado em mim mesmo e do país,
sonhei a fera e Virgílio companheiro.
No céu, de mim ausente, a Beatriz.

Depois, no inferno pus o mundo inteiro.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Augusto dos Anjos, "O coveiro"


Uma tarde de abril suave e pura
Visitava eu somente ao derradeiro
Lar; tinha ido ver a sepultura
De um ente caro, amigo verdadeiro.

Lá encontrei um pálido coveiro
Com a cabeça para o chão pendida;
Eu senti a minh'alma entristecida
E interroguei-o: 'Eterno companheiro

Da morte, quem matou-te o coração?"
Ele apontou para uma cruz no chão,
Ali jazia o seu amor primeiro!

Depois, tomando a enxada, gravemente,
Balbuciou, sorrindo tristemente:
-"Ai, foi por isso que me fiz coveiro!"

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

Eucanaã Ferraz, "A costureira"


Ela ouve o tecido, ela pousa
o ouvido, ela ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta

para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser;
e costura como quem à mão
e à máquina descosturasse

o dicionário, rasgando em moles
móbiles seus hábitos, o vinco
de sua farda.

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Ivan Junqueira, "Talvez o vento saiba dos meus passos..."


Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.

sábado, 4 de agosto de 2018

Eucanaã Ferraz, "Times old Roman"


Quer que o diga, não o digo,
o teu nome já não brilha

não o digo sob as cinzas
de janeiros muito antigos

mal respira nos escombros
desse breve apartamento

o teu nome quem diria
não é coisa que se diga

som de um som que
se partira não insista

já não tento já não posso

é simples o que te digo
e te digo sem remorso

calmamente sim repito
sem espanto não o digo

nenhuma pedra se move
rio seco letra morta.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

Augusto dos Anjos, "Solitário"


Como um fantasma que se refugia
Na solidão da natureza morta,
Por trás dos ermos túmulos, um dia,
Eu fui refugiar-me à tua porta!

Fazia frio e o frio que fazia
Não era esse que a carne nos conforta.
Cortava assim como em carniçaria
O aço das facas incisivas corta!

Mas tu não vieste ver minha Desgraça!
E eu saí, como quem tudo repele,
- Velho caixão a carregar destroços -

Levando apenas na tumbas carcaça
O pergaminho singular da pele
E o chocalho fatídico dos ossos!

terça-feira, 31 de julho de 2018

Eucanaã Ferraz, "Naquele instante"


Amor só vem mais tarde, amar
só vem depois, amor é quando
tudo se foi, virá no próximo
trem, talvez no ano que vem

tudo será, por ora, pressentimento,
presságio, bilhete em branco do bem
gratuito para depois de gastos vultuosos
tributos de desamor e de nada.

Amarmos começa no fim? Amor
se escreve ao contrário? Roma,
porém, não abrirá palácios senão,
quem sabe, no próximo feriado.

Moroso, é após tudo pronto
o amor quando, tardiamente,
já não damos por nada ou
damos só tempo ao tempo.

segunda-feira, 30 de julho de 2018

Abgar Renault, "7"


Este poema exigiu 7 folhas de papel.
Para escrevê-lo já fumei raivosamente 7 cigarros
e rasguei-o 7 vezes.
7 é um mau número: é o número 13 da minha vida.
Segundo várias aritméticas, não é divisível por 2,
e eu tenho horror a todos os números (e a todas as coisas)
não divisíveis por 2.
Sexta-feira, 7...
Isto hoje não acaba bem...
Vai a chuva ficar chovendo para sempre.
O meu relógio vai continuar disparado,
marcando horas inexistentes.
Ah, se os ponteiros andassem para trás!
Ah, se ao menos a chuva chovesse para cima
e eu fizesse destes nulos versos
uma folha noturna e molhada!

sábado, 28 de julho de 2018

Alexei Bueno, "Documentos vencidos"


As mudanças. Se abres uma gaveta
Dessas há uns vinte anos esquecidas
Só encontras cacos de diversas vidas,
Não só da tua, e como está repleta.

Há algum naufrágio tão longe da meta
Que, no entanto, nem teve? As doloridas
Faces a nos fitar, só concebidas
Para isso, não murmuram, a hora é quieta.

Exumação mais dura que a dos ossos
Tão incaracterísticos, que herança
Sublime é a nossa, escola de destroços?

E ainda há aqueles que falam da esperança
Neste lado feliz, fazendo esboços
De florzinhas e risos de criança.

sexta-feira, 27 de julho de 2018

Vinícius de Moraes e Paulo Mendes Campos, "Soneto a quatro mãos"


Tudo de amor que existe em mim foi dado
Tudo que fala em mim de amor foi dito
Do nada em mim o amor fez o infinito
Que por muito tornou-me escravizado.

Tão pródigo de amor fiquei coitado
Tão fácil para amar fiquei proscrito
Cada voto que fiz ergueu-se em grito
Contra o meu próprio dar demasiado.

Tenho dado de amor mais que coubesse
Nesse meu pobre coração humano
Desse eterno amor meu antes não desse.

Pois se por tanto dar me fiz engano
Melhor fora que desse e recebesse
Para viver da vida o amor sem dano.

quinta-feira, 26 de julho de 2018

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Konstantinos Kaváfis, "Melancolia de Jasão, filho de Cleândro, poeta em Comagena, 959 D.c."


O envelhecimento do meu corpo, do meu rosto
é a ferida de um punhal terrível.
Como não tenho resignação nenhuma,
recorro a ti, oh Arte da Poesia,
que algo sabes de remédios,
na tentativa de embotar a dor com Fantasias e Verbo.

É a ferida de um punhal terrível. –
Dá-me dos teus remédios, Arte da Poesia,
que me fazem – um instante – não sentir a ferida.

terça-feira, 24 de julho de 2018

Florbela Espanca, "Amar"


Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui… além…
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!…
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!

Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar!

E se um dia hei-de ser pó, cinza e nada
Que seja a minha noite uma alvorada,
Que me saiba perder… pra me encontrar…

domingo, 22 de julho de 2018

Adriano Espínola, "O poeta relê o velho manual de instruções"


Diante do branco, sangro:
aurora de papel que singro,
A palavra, angra.

2

O poema: lambida
da língua na fala ferida.

3

Triste, sim, de tão alegre:
a beleza que fica é breve. 

sábado, 21 de julho de 2018

Fernando Pessoa, "O rei"


O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto do trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-nO de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares fitados e visinhos
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
As palpebras descidas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo prende,
O som da sua voz tudo transmuda.
E a sua viva majestade esplende;

Meu Rei morto tem mais que majestade:
Fala a Verdade nessa boca muda;
Suas mãos presas são a Liberdade.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

Al Berto, "Diários"



29.1.1985                                                                 rua do forte

lágrima

esqueci como se ama furiosamente. não venhas ter comigo, sobretudo hoje, que tanto tenho pensado em ti. não venhas.só na ausência ainda consigo desejar-te, se aqui vieres será um dia terrível para mim. terei de fingir, de enganar-me. quando estás não te amo, ou amo-te tão intensamente que às vezes me parece que isto não é amor. quando te sentas à minha frente e mexes as mãos ao falar, sinto-me atraiçoado. nenhum dos teus gestos me pertence verdadeiramente, nenhum deles foi criado só para mim. e fico cheio de ciúmes das tuas mãos. queria ser, ao menos, uma delas, ou um dedo apenas para poder andar sempre ligado a ti. saber o que tocas e acaricias. saber quem apontas e quem desejas, saber tudo que os dedos segredam quando adormecem enleados uns nos outros. estremeço ao pensar em ti, mas esqueci quase completamente como se ama. por isso vem, vem junto a mim e sorri. o teu sorriso aliviar-me-á da escuridão dos dias até amanhã.