domingo, 31 de dezembro de 2017

Paulo Henriques Britto, "Vº Soneto da Biographia Literária"


Céu azul. Cores vivas. Você rindo
de alguma coisa ou alguém que está à esquerda
do fotógrafo. É talvez domingo.
É claro que essa sensação de perda

não está na foto, não – não está na imagem
extremamente, absurdamente nítida.
E se fosse menor a claridade,
ou se estivesse sem foco, ou tremida,

ou se fosse em sépia, ou preto e branco,
talvez a foto não doesse tanto?
Você, às gargalhadas. O motivo

você não lembra. A foto é muito boa.
Naquele tempo você ria à toa,
você lembra. Você ainda era vivo.

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Fernando Pessoa, "Dia a dia mudamos para quem..."


Dia a dia mudamos para quem
Amanhã não veremos. Hora a hora
Nosso diverso e sucessivo alguém
Desce uma vasta escadaria agora.

É uma multidão que desce, sem
Que um saiba de outros. Vejo-os meus e fora.
Ah, que horrorosa semelhança têm!
São um múltiplo mesmo que se ignora.

Olho-os. Nenhum sou eu, a todos sendo.
E a multidão engrossa, alheia a ver-me,
Sem que eu perceba de onde vai crescendo.

Sinto-os a todos dentro em mim mover-me,
E, inúmero, prolixo, vou descendo
Até passar por todos e perder-me.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Eucanaã Ferraz, "Por vezes, não raro"


Por vezes, não raro,
basta um gesto, sua borracha,
um quase nada de alvaiade,
um rasgo e só.

No entanto, o carvão
de certas palavras,
de alguns nomes,
não se apaga fácil.

Afogá-lo, inútil:
o maralto traz
de volta cada sílaba
em sal fortalecida.

Enterrá-lo? Logo renascerá:
árvore alta, trigo, praga.
No fogo, irrompe a letra,
inda mais sólida liga.

Há que esperar do esquecimento
o dente miúdo
e lento roer a nódoa na língua,
o travo no peito.

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Carlos Drummond de Andrade, "As sem-razões do amor"


Eu te amo porque te amo.
Não precisa ser amante
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a rgulamentos vários.

Eu te amo, porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Ivan Junqueira, "Haicai"


Na gaiola jaz
o pássaro
sem espaço

domingo, 24 de dezembro de 2017

sábado, 23 de dezembro de 2017

Paulo Henriques Britto, "1ª das Três Peças Dispépticas"


É aqui mesmo, sim.
Você era esperado.
E por falar nisso,
chegou atrasado.

Não peça desculpas:
não adianta nada.
O atraso será
contabilizado.

Não há a menor dúvida;
é este o endereço.
Mas fique sabendo:
tudo aqui tem preço.

Não esteja à vontade.
A casa não é sua.
E se não gostar,
por ali é a rua.

Já vai? É melhor
sair pelos fundos.
A sua partida
será esquecida
em cinco segundos.

sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Francisco Manuel de Melo, "Cada um é fado de si mesmo"


Mas adonde irei eu, que este não seja,
Se a causa deste ser levo comigo?
E se eu próprio me perco, e me persigo,
Quem será que me poupe ou que me reja?

Porque me hei-de queixar do Tempo e Inveja,
Se eu a quis mais fiel ou mais amigo?
Fui deixado em si mesmo por castigo:
Triste serei em quanto em mim me veja.

Esta empresa que em mim tanto em vão tomo,
Esta sorte que em mim seu dano ensaia,
Esta dor que minha Alma em mim cativa.

Vós só podeis mudar. Mas isto como?
Como? Fazendo que a minha alma saia
De mim, senhora, e dentro de vós viva.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

quarta-feira, 20 de dezembro de 2017

Jorge de Sena














"Soneto ainda que não"

Como quando indiscreto às coisas me insinuo
E de infinito amor lhes dou sentido
Que de mim próprio é voz e precisão
De ser um ser que sendo as reconhece,
Me vejo ambíguo e distraído e firme
Na vã presciência que, rememorada,
É como um estar por sempre ininterrupto,
Aliciando humanamente as coisas.

Mas, meu amor, por ti tudo contemplo.
Por ti penetro como em ti em tudo
E torno realidade este fortuito
Encontro permanente de que vivo.
Se noutro mundo fora que existisses,
Eu te criara neste e às minhas coisas.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Adriano Espínola, "Fome"


Se tens fome de madrugada,
toma uma folha de papel em branco
e nela sorve em silêncio
com volúpia o nada
que te espanta e consome.

Se ali encontrares outra coisa
 ao despertar do dia
(o pão ainda fresco do sonho,
a palavra que amadureceu de repente
ou os gomos abertos do sol),

chama-me depressa,
porque também tenho fome —
tenho essa mesma fome que não sacia.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

domingo, 17 de dezembro de 2017

Gomes Leal, "O velho palácio"


Houve outrora um palácio, hoje em ruínas,
Fundado numa rocha, à beira mar...
Donde se avistam lívidas colinas,
E se ouve o vento nos pinhais pregar.
Houve outrora um palácio hoje em ruínas...

Nesse triste palácio inabitável,
As janelas, sem vidros, contra os ventos,
Batem, de noite em coro miserável,
Lembrando gritos, uivos e lamentos.
Nesse triste palácio inabitável...

Só resta uma varanda solitária,
Onde medra uma flor que bate o norte,
Sacudida da chuva funerária,
Lavada de um luar branco de morte.
Só resta uma varanda solitária...

Como nessa varanda apodrecida
Em minha alma uma flor também vegeta...
Toda a noite dos ventos sacudida,
Íntima, humilde, lírica, secreta.
Como nessa varanda apodrecida...

sábado, 16 de dezembro de 2017

Tobias Barreto, "Diante do batalhão que voltava da campanha"


Lavas de glória aos terremotos d’alma
Queimam os peitos de paixões estranhas:
É o povo que pesa os seus guerreiros
Na balança em que Deus pesa as montanhas...

Homens do céu, fantásticos, enormes
Que sondastes o gólfão* do heroísmo,
Inda tendes nos pés ensanguentados
Agarradas as pérolas do abismo!

Tendes na fronte um resto de fumaça
Que trazeis das batalhas, e os ressábios**
Do cartucho mordido se misturam
Com o soberbo desdém dos vossos lábios.

O pendão que os relâmpagos rasgaram
Das mãos da guerra bravamente escapo
De que pode servir? O rei tem frio...
Dai ao rei por esmola... este farrapo!

*Gólfão – forma em desuso de golfo.
**Ressábios – mau sabor, ranço.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

Bernardo Guimarães, "Saudade"


Vem, ó saudade, toma-me em teu carro,
Em teu regaço leva-me dormindo,
Entre fagueiros sonhos embalado
       Por esse espaço infindo.
Leva-me além daquele erguido monte,
Que lá campeia quase que sumido
       Nas brumas do horizonte.

Leva-me além - oh! muito além ainda;
Do eterno plaino largo campo fende;
E entre escalvadas serranias broncas
       O carro teu suspende.
Aí nas abas de sombrio morro
Abate o vôo, e deixa-me nos braços
       Daquela por quem morro.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Laurindo Rabelo, "O que são meus versos"


Se é vate quem acesa a fantasia
tem de divina luz na chama eterna;
se é vate quem do mundo o movimento
c′o movimento das canções governa;

se é vate quem tem n′alma sempre abertas
doces, límpidas fontes de ternura,
veladas por amor, onde se miram
as faces da querida formosura;

se é vate quem dos povos, quando fala,
as paixões vivifica, excita o pasmo,
e da glória recebe sobre a arena
as palmas, que lhe of′rece o entusiasmo;

eu triste, cujo fraco pensamento
do desgosto gelou fatal quebranto;
que, de tanto gemer desfalecido,
nem sequer movo os ecos com meu canto;

eu triste, que só tenho abertas n′alma
envenenadas fontes d′agonia,
malditas por amor, a quem nem sombra
de amiga formosura o céu confia;

eu triste, que, dos homens desprezado,
só entregue a meu mal, quase em delírio,
ator no palco estreito da desgraça,
só espero a coroa do martírio;

vate não sou, mortais; bem o conheço;
meus versos, pela dor só inspirados,-
nem são versos -menti- são ais sentidos,
às vezes, sem querer, d′alma exalados;

são fel, que o coração verte em golfadas
por contínuas angústias comprimido;
são pedaços das nuvens, que m′encobrem
do horizonte da vida o sol querido;

são anéis da cadeia, qu′arrojou-me
aos pulsos a desgraça, ímpia, sanhuda;
são gotas do veneno corrosivo,
que em pranto pelos olhos me transuda.

Seca de fé, minha alma os lança ao mundo,
do caminho que levam descuidada,
qual, ludíbrio do vento, as secas folhas
solta a esmo no ar planta mirrada.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

José Régio, "Ignoto Deo"


Desisti de saber qual é o Teu nome,
Se tens ou não tens nome que Te demos,
Ou que rosto é que toma, se algum tome,
Teu sopro tão além de quanto vemos.

Desisti de Te amar, por mais que a fome
Do Teu amor nos seja o mais que temos,
E empenhei-me em domar, nem que os não dome,
Meus, por Ti, passionais e vãos extremos.

Chamar-Te amante ou pai... grotesco engano
Que por demais tresanda a gosto humano!
Grotesco engano o dar-te forma! E enfim,

Desisti de Te achar no quer que seja,
De Te dar nome, rosto, culto, ou igreja...
– Tu é que não desistirás de mim!

domingo, 10 de dezembro de 2017

Vinícius de Moraes, "Soneto do maior amor"


Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal-aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer — e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.

sábado, 9 de dezembro de 2017

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Antônio Olinto, "Sonata"


Mulher, tirei o som dos acontecimentos,
água de bica em pedra, onda chegando à areia,
riso de gente em mar e pássaro nos ventos,
tábua rangendo à noite e grito em lua cheia.

Separei cada som de seus leves aumentos,
de uma porção de azul tirei apenas meia,
para trazer-te em mim, corpo de nascimentos,
a justeza dos sons pousando em cada veia.

Sou todo uma sonata e em tua pele escorro
fixando cada coisa em seu exato jarro
no ritmo natural de trem subindo o morro.

A prenda que eu trazia em cadência de carro
é fonte em mim, mulher, e se abre num só jorro
de acalanto, de amor, de leite, luz e barro.

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Milt Jackson e o Modern Jazz Quartet, "What's New", de J.Burke/B.Haggart


Dantas Motta, "Noturno Paulista nº 1"


No Madrugada's Bar ou no Bar Madrugada.
Entre a noite que veio e ela que não vem
E esta lua negra, de papelão, à parede,
As garrafas, sobre a mesa,
Formam um campo de petróleo.
A triste mulher da vida — Nilda —
Esculacha, bem em frente a mim,
O tango argentino intitulado A media luz.
As considerações, cada vez mais sábias,
E sombrias, à medida que a bebida
Vai aumentando o poder de certas dores,
Secretas e violáveis, contudo impublicáveis,
Provam apenas que o mundo continua,
E que as desgraças, como as despesas,
Inevitáveis, são sempre inúteis e iguais.

quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

terça-feira, 5 de dezembro de 2017

José Paulo Paes, "Centauro"


A moça de bicicleta
parece estar correndo
sobre um chão de nuvens.

A mecânica ardilosa
dos pedais multiplica
suas pernas de bronze.

O guidão lhe reúne
num só gesto redondo
quatro braços.

O selim trava com ela
um íntimo diálogo
de côncavos e convexos.

Em revide aos dois seios
em riste, o vento desfaz
os cabelos da moça

numa esteira de barco
– um barco chamado
Desejo onde, passageiros

de impossível viagem,
vão todos os olhos
das ruas por que passa.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Joaquim Cardozo, "1930"


Na estranha madrugada
O homem alto, transpondo o portão da velha casa, depõe no
[chão frio.
O corpo inanimado do seu irmão.
Da sombra das velhas mangueiras, por um momento,
Surgiram, curiosas, as sombras dos melhores heróis de
                                                                  [Pernambuco antigo.
Sobre o corpo caiam gotas de orvalho e flores de cajueiro.

sábado, 2 de dezembro de 2017

Drummond, "Encontro"


Meu pai perdi no tempo e ganho em sonho.
Se a noite me atribui poder de fuga,
sinto logo meu pai e nele ponho
o olhar, lendo-lhe a face, ruga a ruga.

Está morto, que importa? Inda madruga
e seu rosto, nem triste nem risonho,
é o rosto antigo, o mesmo. E não enxuga
suor algum, na calma de meu sonho.

Ó meu pai arquiteto e fazendeiro!
Faz casas de silêncio, e suas roças
de cinza estão maduras, orvalhadas

por um rio que corre o tempo inteiro,
e corre além do tempo, enquanto as nossas
murcham num sopro fontes represadas.

sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

Fernando Pessoa, "Sonhei - quem não sonhara?..."


Sonhei - quem não sonhara? - porque a tarde
Baixava o azul do céu e já se via
Uma estrela pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço ao qual' a água tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este céu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...

Sonho... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguém
E que só conheci como ignorado.