quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Ivan Junqueira, "São duas ou três coisas ..."


São duas ou três coisas que eu sei dela,
e nada mais além de seu perfume.
Sei que nas noites ermas ela assume
esse ar de quem flutua na janela,

como o duende fugaz que em si resume
um tempo que a ampulheta não revela:
o tempo além do tempo que só nela
navega mais que o peixe no cardume.

Sei que ela traz nos olhos esse lume
de quem sofreu e a dor tornou bela,
pois o naufrágio lhe infundiu aquela

vertigem que do alfanje* é o próprio gume.
Sei que ela vive no halo de uma vela
e queima sem consolo, em minha cela.

*Alfanje: Subst.masc.: Sabre de lâmina pequena e larga que possui um fio na parte convexa da curva.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Micheliny Verunschk, "Darkness"


A solidão,
essa tempestade,
esse gozo às avessas,
esse jeito de eternidade
que as coisas adquirem
mesmo sendo apenas vidro.
Essas cartas ardendo
no estômago das gavetas,
essas plumas
que surgem quando se apagam
as últimas luzes do dia.
Tudo faz a noite mais longa.,
visão de uma sombra
sobre um berço.
Não há resposta
e o labirinto é o falso,
os lábios são falsos.,
somente o abismo,
absinto verdadeiro.
o sono,
grande placa de cerâmica,
e o tempo,
demônio a ranger sobre o infinito.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Alexei Bueno, "Nunca mais vos verei, faces que um dia ..."


Nunca mais vos verei, faces que um dia
Marcaram meu olhar, nunca jamais...
Vós sois tais como os dias, vós passais
Para nunca voltar; e na agonia

das noites, vós, o exército sem guia,
Marchais mostrando os rostos imortais
Que um instante gravou, que ninguém mais
Poderá destronar de uma hora fria.

Mas onde ides tal noite, almas perdidas?
Viveis? Sois ossos já? Que porta oculta
Vos guardará dos cães e das feridas?

Não sei. Não vos verei. Meu tempo finda
Na mesma selva irreal que vos sepulta,
E assim vos amo e, assim vos vejo ainda.

domingo, 27 de outubro de 2013

Georg Trakl, "Proximidade da morte"


Oh, a tarde, que vai às sombrias aldeias da infância.
O lago sob os salgueiros
Enche-se de suspiros empestados de melancolia.

Oh, a floresta, que baixa discreta os olhos castanhos,
Quando das mãos magras do solitário
Cai a púrpura de seus dias extasiados.

Oh, a proximidade da morte. Oremos.
Nesta noite em travesseiros mornos soltam-se
Amarelados de incenso os membros frágeis dos amantes.

Tradução de Cláudia Cavalcanti

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

T.S.Eliot, "A águia se ergue nos confins do céu"


A Águia se ergue nos confins do Céu.
O Caçador com seus cães persegue-lhe o circuito.
Ó perpétua revolução de estrelas configuradas,
Ó perpétua recorrência de determinadas estações.
Ó mundo de outono e primavera, nascimento e morte!
O ciclo interminável da ideia e da ação,
Invenção perene, perpétua experiência,
Traz a noção do movimento, mas não a do repouso;
A ciência da fala, mas não a do silêncio;
A ciência das palavras, e a ignorância da Palavra.
Todo o nosso saber nos aproxima de nossa ignorância,
Toda a nossa ignorância nos acerca da morte,
Mais próximos da morte, e não mais perto de Deus.
Onde a Vida que perdemos no viver?
Onde a sabedoria que perdemos no saber?
Onde o saber que perdemos na informação?
Os ciclos do Céu em vinte séculos
Nos afastam de Deus e nos acercam do Pó.

Tradução de Ivo Barroso

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Vinícius de Moraes














"Olhe aqui, Mr. Buster"

Este poema é dedicado a um americano simpático, extrovertido e podre de rico, em cuja casa estive poucos dias antes de minha volta ao Brasil, depois de cinco anos de Los Angeles, EUA. Mr. Buster não podia compreender como é que eu, tendo ainda o direito de permanecer mais um ano na Califórnia, preferia, com grande prejuízo financeiro, voltar para a “Latin America”, como dizia ele. Eis aqui a explicação, que Mr. Buster certamente não receberá, a não ser que esteja morto e esse negócio de espiritismo funcione.

Olhe aqui, Mr. Buster: está muito certo
Que o Sr. tenha um apartamento em Park Avenue e uma casa    
                                                                [em Beverly Hills
Está muito certo que em seu apartamento de Park Avenue
O Sr. tenha um caco de friso do Partenon, e no quintal
                                                        [de sua casa em Hollywood
Um poço de petróleo trabalhando de dia para lhe dar dinheiro
                                                      [e de noite para lhe dar insônia
Está muito certo que em ambas as residências
O Sr. tenha geladeiras gigantescas capazes de conservar o seu
                                                                         [preconceito racial
Por muitos anos a vir, e vacuum-cleaners com mais chupo
Que um beijo de Marilyn Monroe, e máquinas de lavar
Capazes de apagar a mancha de seu desgosto de ter posto tanto
                                            [dinheiro em vão na guerra da Coréia.
Está certo que em sua mesa as torradas saltem nervosamente
                                                             [de torradeiras automáticas
E suas portas se abram com célula fotelétrica. Está muito certo
Que o Sr. tenha cinema em casa para os meninos verem
                                                                         [filmes de mocinho
Isto sem falar nos quatro aparelhos de televisão e na fabulosa hi-fi
Com alto-falantes espalhados por todos os andares, inclusive
                                                                                   [nos banheiros.
Está muito certo que a Sra. Buster seja citada uma vez por mês
                                                                            [por Elsa Maxwell
E tenha dois psiquiatras: um em Nova York, outro em Los Angeles,
                                                        [para as duas “estações” do ano.
Está tudo muito certo, Mr. Buster – o Sr. ainda acabará governador
                                                                                    [do seu estado
E sem dúvida presidente de muitas companhias de petróleo, aço
                                                                 [e consciências enlatadas.

Mas me diga uma coisa, Mr. Buster
Me diga sinceramente uma coisa, Mr. Buster:
O Sr. sabe lá o que é um choro de Pixinguinha?
O Sr. sabe lá o que é ter uma jabuticabeira no quintal?
O Sr. sabe lá o que é torcer pelo Botafogo?

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Martins Fontes, "Escandalosidade discretíssima"


Penetrei no teu quarto, sorrateiro.
Entreabri do teu leito o cortinado.
Invejei, morno e fofo, o travesseiro
Em que teu sono dormes, perfumado.

Delicadezas vi do teu apeiro*
De prata. E, entre cem jóias, perturbado,
Quis beijar-te, beijar-te o corpo inteiro,
Como um ávido amante alucinado.

E beijei-te! Beijei-te o ombro desnudo,
A fronte, a face, o cálice vermelho
Da boca em flor, os cílios de veludo...

E, a pouco e pouco, fui dobrando o joelho,
E alfim* beijei, enternecido e mudo,
O lugar dos teus pés no teu espelho.

*Apeiro - Os instrumentos necessários a um mister; aprestos, preparos, utensílios (o poeta se refere à caixa de joias da moça).
*Alfim - o mesmo que enfim.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Martha Medeiros, "Vestidos muito longos e justos incomodam..."









vestidos muito longos e justos incomodam
o beijo dos galãs não tem sabor
e Hollyhood fica longe demais
do meu supermercado favorito

ser bela e calma, quanta inutilidade
mais vale um bom olhar profundo
e uma vida de verdade

dois filho de cabeça boa
um marido bem tarado
uma empregada chamada Maria
cinema de mãos dadas
um salário legal no fim do mês
aquela viagem marcada

novela, trânsito, profissão
sexo, banho morno, musse de limão

me corrijam se eu estiver errada
a realidade é nossa maior fantasia

domingo, 20 de outubro de 2013

sábado, 19 de outubro de 2013

Paulo Henriques Britto, "Um pouco de Strauss"


Não escreva versos íntimos, sinceros,
como quem mete o dedo no nariz.
Lá dentro não há nada que compense
todo esse trabalho de perfuratriz,
só muco e lero-lero.

Não faça poesias melodiosas
e frágeis como essas caixinhas de música
que tocam a "Valsa do Imperador".
É sempre a mesma lengalenga estúpida,
sentimental, melosa.

Esquece o eu, esse negócio escroto
e pegajoso, esse mal sem remédio
que suga tudo e não dá nada em troca
além de solidão e tédio:
escreve pros outros.

Mas se de tudo que há no vasto mundo
só gostas mesmo é dessa coisa falsa
que se disfarça fingindo se expressar,
então enfia o dedo no nariz, bem fundo,
e escreve, escreve até estourar. E tome valsa.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Manoel Carlos, "Sexto"


Tenho corpo pesado e alma breve.
Não me pus em silêncio dia algum.
Dos beijos que gravei não houve um
que desse à minha boca um gosto leve.

Riso não transformei em bem algum.
Sal do meu rosto a esforço não se deve.
E entre os filhos que urdi nenhum se atreve
a carregar na alma o meu debrum.

Que palhaço herdará o meu penacho
de cores desiguais e sem valia?
Sombra de coração em que me facho

é sopro de poeta e de embolia.
Que fique do que sou um verso apenas:
pequenos gestos e ambições pequenas.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Leonor Scliar-Cabral, "De mãos dadas"

 
Adeus, dá-me tua mão, porque já vais.
Nesse adeus fica um pouco do que eu fui,
de um Rio que eu vivi, que não é mais
senão fugaz lembranças que dilui
 
com a passageira carne já expirando.
Onde estão os amigos, as amantes,
as conversas nos bares, dissipando
uma eterna alegria que, incessante,
 
marulhasse na praia enluarada?
Somente os dois restamos. Ao partires
ninguém partilhará nessas mãos dadas
 
nosso sonho que nunca feneceu,
sem precisar falar. Rogo imprimires
na palma, ó meu amigo, o teu adeus!
 

terça-feira, 15 de outubro de 2013

Bruno Tolentino, "Rumor"


Escuta o tempo queimando
dia e noite, noite e dia
aquela dor que doía
e agora já não dói tanto.

Escuta o tempo crestando
com sua fogueira fria
aquele jardim que havia
defronte daquele banco.

Escuta o tempo mudando
a pedra, o ar, a agonia,
tudo o que ainda resistia
com seu desespero manso.

Escuta o tempo passando
pela ampulheta vazia,
cinza solta do que havia
de ir apagando e apagando...

domingo, 13 de outubro de 2013

Mário Cesariny, "Alcatrão"


mais primaveras que treze não tem
mas eu far-lhe-ia, por bem,
um bom cumprimento rural
e, pois que é do campo, todo em pastoral:

olá puxavante* de cabelos louros
que com tua gola azul-poeta
matas o estio na bicicleta
que tem mais raiar que o rei d'ouros!

*Puxavante: Comida apimentada que aguça a vontade de beber vinho.

sábado, 12 de outubro de 2013

Ibn As-Síd, "É um cavalo negro..."


É um cavalo negro
        da raça dos puros garanhões.
A noite é a sua veste
mas a aurora também lhe respingou de branco
        os cascos.

Extasiada em tanta beleza,
        a água gelou sobre o seu pelo
e só lhe escorre do dorso
       devido ao ardor do próprio galope.

O crescente que marca o fim do jejum
        brilha em seu semblante
quando os olhos se reviram de desejo.

Parece que as tempestades antes o arrastavam
       quando o peitoril e a garupa 
       reluzem                                      banhados de suor.


Tradução de Adalberto Alves.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Eugénio de Andrade, "Os perigos do verão"


Era o verão, o seu desassossego.
Era o desejo,
o desejo rompendo da sombra
sem caminho, e doía.
Era o ardor, o mais diáfano
irmão da melancolia.
era o amor, o espanto
do amor, desarmado
e sem abrigo.
era o deserto, o deserto à porta;
e fervia.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

Greg Anderson e Elizabeth Joy Roe (Anderson&Roe), "Transcrição para dois pianos da ária "Sinto no Peito uma Chuva de Lágrimas", da ópera Il Giustina, de Vivaldi".



Jorge Luis Borges, "Soneto do vinho"


Em que reino, em que século, sob qual silenciosa
conjunção dos astros, em que secreto dia
jamais gravado no mármore, surgiu a valiosa
e singular ideia de inventar a alegria?
Com outonos de ouro a inventaram. O vinho
flui vermelho no decorrer das gerações
como o rio do tempo e em seu árduo caminho
dá-nos sua música, seu fogo e seus leões.
Na noite radiante ou na jornada adversa
exalta a alegria ou mitiga o espanto
e o ditirambo* novo que neste dia lhe canto
outrora foi cantado pelo árabe e o persa.
Vinho, ensina-me a arte de ver minha própria história
como se ela já fosse cinza na memória.


*Ditirambo - subst.: Poesia lírica que exprime entusiasmo ou delírio.

Tradução amadora minha.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Alexei Bueno

 
"Eu fui um louco"

Eu fui um louco que viveu cem anos
Compondo um gigantesco manuscrito...
Madrugadas profundas de proscrito
Gastei sobre o papel dos meus enganos.

Memórias dos delírios mais insanos,
Razões petrificadas de algum grito,
Anotei, registrei, pus por escrito
Na chama congelada dos meus planos.

Quando enfim fui chegando junto à morte
Vi que tudo escrevera, e ri da sorte,
Que as páginas tocavam já nas sancas.

Foi aí que enxerguei, oh! dor distinta!
Que nunca na caneta houvera tinta,
E a morte entre um milhão de folhas brancas!

domingo, 6 de outubro de 2013

Paulo Leminski,













"vão..."

vão é tudo
que não for prazer
repartido prazer
entre parceiros

vãs todas as coisas
que vão

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Bocage, "A teus mimosos pés..."


A teus mimosos pés, rendido,
Confirmo os votos que a traição manchara;
Fumam de novo incensos sobre a ara*,
Que a vil gratidão tinha abatido.

De novo sobre as asas de um gemido
Te of'reço o coração que te agravara;
Saudoso torno a ti, qual torna à cara,
Perdida Pátria o mísero banido.

Renovemos o nó por mim desfeito,
Que eu já maldigo o tempo desgraçado
Em que a teus olhos não vivi sujeito;

Concede-me outra vez o antigo agrado;
Que mais queres? Eu choro, e no meu peito
O punhal do remorso está cravado.

*Ara - Subst.: arara, papagaio, pássaro.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Hilda Hilst, XIXº poema de "Da morte, Odes Mínimas"


Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro

Te tomaria
Úmida, tênue

E então descansarias.

Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono

Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.

Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens

Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, palavra viva
Sorte.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Hilda Hilst, "Aflição de ser eu e não ser outra..."


Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha
 
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha.)
 
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel
 
Não saber se se ausenta ou se te espera.
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.