sexta-feira, 28 de maio de 2010

Siron Franco

Adélia Prado















"A Serenata"

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela,se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Junqueira Freire, "Arda de raiva contra mim a intriga ..."

Arda de raiva contra mim a intriga,
Morra de dor a inveja insaciável;
Destile seu veneno detestável
A vil calúnia, pérfida inimiga.

Una-se todo, em traiçoeira liga,
Contra mim só, o mundo miserável.
Alimente por mim ódio entranhável
O coração da terra que me abriga.

Sei rir-me da vaidade dos humanos;
Sei desprezar um nome não preciso;
Sei insultar uns cálculos insanos.

Durmo feliz sobre o suave riso
De uns lábios de mulher gentis, ufanos;
E o mais que os homens são, desprezo e piso.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "O Ladrão"

Ferreira Gullar












 "Ano Novo "

Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio

da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça:
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

Leminski










"Quem dera ..."

Quem dera eu achasse um jeito
de fazer tudo perfeito,
feito a coisa fosse o projeto
e tudo já nascesse satisfeito.
Quem dera eu visse o outro lado,
o lado de lá, lado meio,
onde o triângulo é quadrado
e o torto parece direito.
Quem dera um ângulo reto.
Já começo a ficar cheio
de não saber quando eu falto,
de ser, mim, sujeito indireto.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Vinícius de Moraes, "Saudade de Manuel Bandeira" e Manuel Bandeira, "Resposta a Vinícius"










Poema de Vinícius de Moraes, escrito em 1941

"Saudade de Manuel Bandeira"

Não foste apenas um segredo
De poesia e de emoção
Foste uma estrela em meu degredo
Poeta, pai! áspero irmão.

Não me abraçaste só no peito
Puseste a mão na minha mão
Eu, pequenino – tu, eleito
Poeta, pai! áspero irmão.

Lúcido, alto e ascético amigo
De triste e claro coração
Que sonhas tanto a sós contigo
Poeta, pai, áspero irmão?

Resposta de Manuel Bandeira, escrito em 1948

"Resposta a Vinícius"

Poeta sou; pai, pouco; irmão, mais.
Lúcido, sim; eleito, não.
E bem triste de tantos ais
Que me enchem a imaginação.

Com que sonho? Não sei bem não.
Talvez com me bastar, feliz
– Ah feliz como jamais fui! –
Arrancando do coração
– Arrancando pela raiz –
Este anseio infinito e vão
De possuir o que me possui.

Di Cavalcanti, "Vaso de Flores"

Mario Quintana


















"Retrato do Poeta na Idade Ingrata"

A minha alma era uma paisagem hirsuta:
cactos, palmas híspidas,
estranhas flores que atemorizavam (seriam aranhas
carnívoras?) parecia
um texto obscuro com pontuação excessiva;
tudo porque me estavam apontando alguns fios de barba;
e cada fio era uma baioneta calada contra o mundo:

tu
com
a graça aérea de um helicóptero ou de uma libélula
soubeste achar - naquilo - onde o campo de pouso,
soubeste ouvir onde cantava
pura
a fonte oculta...

Só tu soubeste achar-me... e te foste!

Paulo Leminski, "Eu"

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora
não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro
este poema me olha

Mulher, Foto

terça-feira, 11 de maio de 2010

Água-forte de Marcelo Grassmann, "Guerreiro"

Cora Coralina, "Poeminha Amoroso"

Este é um poema de amor
tão meigo, tão terno, tão teu...
É uma oferenda aos teus momentos
de luta e de brisa e de céu...
E eu,
quero te servir a poesia
numa concha azul do mar
ou numa cesta de flores do campo.
Talvez tu possas entender o meu amor.
Mas se isso não acontecer,
não importa.
Já está declarado e estampado
nas linhas e entrelinhas
deste pequeno poema,
o verso;
o tão famoso e inesperado verso que
te deixará pasmo, surpreso, perplexo...
eu te amo, perdoa-me, eu te amo...

Paulo Henriques Britto, "Sonetilho de verão"

Traído pelas palavras.
O mundo não tem conserto.
Meu coração se agonia.
Minha alma se escalavra.
Meu corpo não liga não.
A idéia resiste ao verso,
o verso recusa a rima,
a rima afronta a razão
e a razão desatina.
Desejo manda lembranças.

O poema não deu certo.
A vida não deu em nada.
Não há deus. Não há esperança.
Amanhã deve dar praia.

domingo, 9 de maio de 2010

Francisco Rebolo, "Paisagem do Subúrbio"

Vinícius de Moraes, "Lapa de Bandeira (Quinta rima) - À Manuel Bandeira"

Existia, e ainda existe
Um certo beco na Lapa
Onde assistia, não assiste
Um poeta no fundo triste
No alto de um apartamento
Como no alto de uma escarpa.

Em dias de minha vida
Em que me levava o vento
Como uma nave ferida
No cimo da escarpa erguida
Eu via uma luz discreta
Acender serenamente.

Era a ilha da amizade
Era o espírito do poeta
A buscar pela cidade
Minha louca mocidade
Como uma nave ferida
Perambulando patética.

E eu ia e ascensionava
A grande espiral erguida
Onde o poeta me aguardava
E onde tudo me guardava
Contra a angústia do vazio
Que embaixo me consumia.

Um simples apartamento
Num pobre beco sombrio
Na Lapa, junto ao convento...
Porém, no meu pensamento
Era o farol da poesia
Brilhando serenamente.

Mário Faustino, "Soneto Marginal"

Ressuscitado pelo embate da ressaca,
Eu, voz multiplicada, ergo-me e avanço até
O promontório onde um cadáver, posto em maca,
Hecatombado pela vaga, acusa o céu
Com cem olhos rasgados. Fujo e mais adiante,
O açor rebenta o azul e a pomba, espedaçada,
Ensanguenta-me o rastro. Avante, sombra, avante,
Cassa-me a permissão de ficar vivo. O nada
Ladra a meu lado, lambe e morde o calcanhar
Sem plumas de quem passa e no espaço se arrasta
Pedindo paz ao fim, que o princípio não basta:
O triunfo pertence ao tropel que no ar
Nublado esmaga o sol, troféu tripudiado
Por touros celebrando a noite e o mar manchado.

sábado, 8 de maio de 2010

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Carlos Drummond de Andrade, "Poesia".

Gastei uma hora pensando um verso
que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro
inquieto, vivo.
Ele está cá dentro
e não quer sair.
Mas a poesia desse momento
inunda minha vida inteira.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Walt Whitman, "Quem quer que seja você a segurar agora minha mão"

Quem quer que seja você a segurar agora a minha mão,
sem uma coisa tudo será inútil,
dou-lhe um honesto aviso antes que você me tente mais,
não sou o que você supôs, mas muito diferente.

Quem é aquele que deseja se tornar meu seguidor?
Quem se apresentaria como candidato às minhas afeições?

O caminho é suspeito, o resultado incerto, talvez destrutivo,
você teria de desistir de tudo o mais, eu sozinho haveria
                                       [de ser seu estandarte único e exclusivo,
seu noviciado seria longo e exaustivo,
toda a teoria passada da sua vida e toda a conformidade
                      [com as vidas ao seu redor teriam de ser abandonadas,
assim, me deixe agora antes que se complique mais, tire a mão
                                                                           [dos meus ombros,
me largue e siga o seu próprio caminho.

Ou então, furtivamente, em alguma floresta, apenas para tentar,
ou atrás de uma rocha ao ar livre
(pois em nenhum quarto coberto de nenhuma casa eu emerjo,
                                                                                [nem em companhia,
e nas bibliotecas permaneço como quem é mudo, ou parvo,
                                                                      [ou não nascido, ou morto),
mas muito possivelmente com você numa colina alta, primeiro
      [vigiando por milhas em volta para que ninguém se aproxime
                                                                                     [sem avisar,
ou possivelmente com você a velejar no mar, ou numa praia
                                                            [do mar ou numa ilha sossegada,
lá eu permitiria que você colocasse teus lábios sobre os meus,
com o beijo prolongado do camarada ou o beijo do recém-casado,
pois eu sou o recém-casado e o camarada.

Ou, se você quiser, metendo-me entre suas roupas,
onde poderei sentir os soluços do seu coração ou repousar sobre
                                                                                      [o seu quadril,
carregue-me quando for através das terras e dos mares;
pois apenas tocar você assim é o bastante, é o melhor,
e tocando você assim eu adormeceria em silêncio, e seria
                                                                  [carregado eternamente.

Mas examinando estas folhas você se arrisca,
pois nem estas folhas nem a mim você entenderá,
elas o eludirão no princípio, e mais ainda depois, certamente eu
                                                                                               [o eludirei,
mesmo quando você pensar que me apanhou de modo
                                                                          [inquestionável, cuidado!,
logo verá que lhe escapei.

Porque não é pelo que coloquei neste livro que o escrevi,
nem é pela leitura dele que você o ganhará,
nem são esses que me admiram e me elogiam com jactância
                                                      [aqueles que me conhecem melhor,
nem são os candidatos ao meu amor (a não ser no máximo alguns
                                                  [ poucos)os que sairão vitoriosos,
nem meus poemas farão apenas bem, eles também farão mal,
                                                                                       [talvez até mais,
pois tudo é inútil sem aquilo que você poderá suspeitar em muitas
                              [ocasiões, sem compreender aquilo que sugeri.

Assim, me deixe e siga o seu próprio caminho.

Tradução de Renato Suttana.

Anna Akhmátova, "Os Mistérios do Ofício"

De que servem exércitos de canções
e o encanto das elegias sentimentais?
Para mim, na poesia, tudo tem de ser desmesurado,
e não do jeito como todo mundo faz.

Se vocês soubessem de que lixeira
saem, desavergonhados, os versos,
como dente-de-leão que brota ao pé da cerca,
como a bardana ou o cogumelo.

Um grito que vem do coração, o cheiro fresco de alcatrão,
o bolor oculto na parede...
E, de repente, a poesia soa, calorosa, terna,
Para a minha e tua alegria.

Tradução de Lauro Machado Coelho

terça-feira, 4 de maio de 2010

João Câmara, "Retrato do Jovem Crítico".

Cecília Meireles, "Encomenda"

Desejo uma fotografia
como esta - o senhor vê? - como esta:
em que para sempre me ria
como um vestido de eterna festa.

Como tenho a testa sombria,
derrame luz na minha testa.
Deixa esta ruga, que me empresta
um certo ar de sabedoria.

Não meta fundos de floresta
nem de arbitrária fantasia...
Não...Neste espaço que ainda resta,
ponha uma cadeira vazia.

João Cabral de Melo Neto,















"Notícia do Alto Sertão "

Por trás do que lembro,
ouvi de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada.
De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.
Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava.