quinta-feira, 30 de junho de 2011

Jorge de Sena












"Tu és a terra ..."

Tu és a terra em que pouso.
Macia, suave, tenra, e dura o quanto baste
a que teus braços como tuas pernas
tenham de amor a força que me abraça.

És também pedra qual a terra às vezes
contra que nas arestas me lacero e firo,
mas de musgo coberta refrescando
as próprias chagas de existir contigo.

E sombra de árvores, e flores e frutos,
rendidos a meu gosto e meu sabor.
E que uma água cristalina e murmurante
que me segreda só de amor no mundo.

És a terra em que pouso. Não paisagem,
não Madre.Terra nem raptada ninfa
de bosques e montanhas.Terra humana
em que me pouso inteiro e para sempre.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Ferreira Gullar














"A alegria"

O sofrimento não tem
nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
(nem mesmo o que iluminaria
a lembrança ou a ilusão
de uma alegria).

Sofres tu, sofre
um cachorro ferido, um inseto
que o neocid envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?

                    A justiça é moral, a injustiça
não. A dor
te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
                                querem estar contentes.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Jorge de Lima, Poema IX do Canto VI (Canto de Desaparição), da Invenção de Orfeu.

Um momento há na vida, de hora nula,
em que o poema vê tudo, viu, verá;
e a si mesmo, na cera em que se anula,
sob o fogo dos céus, consumir-se-á.

Há nas fomes dos tempos, uma gula,
uma vicissitudes, fados, ah!
Há tempos em que o canto se modula
sob sibilo de cassandra má.

Vejo morrer, ó céus, em dura lei,
meus membros, minhas vísceras, meus ossos
sob as rosas de lava que inventei.

Antes que os lábios, amanhá, ó poema,
hirtos se calem, vossos, serão vossos,
esses cantos de renunciação.

sábado, 25 de junho de 2011

Murilo Mendes, "Mas"

As ondas amarguradas
Encostam a cabeça na pedra do cais.
Até as ondas possuem
Uma pedra para descansar a cabeça.
Eu na verdade possuo
Todas as pedras do mundo,
Mas não descanso.
As mulheres me dão corda
Mas somem nas alturas.
Eu apalpei aquele seio,
Minhas mãos ficaram boquiabertas.
Aqueles olhos gritaram na minha direção
Mas depois desfaleceram.
O mundo se desfaz em pedra
Na minha direção,
Mas as pedras marcham, não param,
Não poderei descansar.
A poesia é muito grande,
Mas o alfabeto é curto
E a preguiça, bem comprida.
O amor é muito grande
Mas não é puro, as mulheres
Toda hora humilham a gente
Com golpes fundos de olhares,
Com arrancadas de seios...
Mas assim mesmo inda é bom.

Anita Malfatti, "Paisagem com carroça"


sexta-feira, 24 de junho de 2011

Drummond, "Antepassado "

Só te conheço de retrato,
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Adélia Prado, "Janela"

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,

quarta-feira, 22 de junho de 2011

terça-feira, 21 de junho de 2011

João Cabral de Melo Neto, " A palavra seda"

A atmosfera que te envolve
atinge tais atmosferas
que transforma muitas coisas
que te concernem, ou cercam.

E como as coisas, palavras
impossíveis de poema:
exemplo, a palavra ouro,
e até este poema, seda.

É certo que tua pessoa
Não faz dormir, mas desperta;
Nem é sedante, palavra
Derivada da de seda.

E é certo que a superfície
De tua pessoa externa,
De tua pele e de tudo
Isso que em ti se tateia,

Nada tem da superfície
luxuosa, falsa, acadêmica,
de uma superfície quando
se diz que ela é “como seda”.

Mas em ti, em algum ponto,
Talvez fora de ti mesma,
Talvez mesmo no ambiente
Que retesas quando chegas

Há algo de muscular,
De animal, carnal, pantera,
De felino, da substância
Felina, ou sua maneira,

De animal, de animalmente,
De cru, de cruel, de crueza,
Que sob a palavra gasta
Persiste na coisa seda.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Antonio Cicero, "Sair"

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul — o céu do dia —
­mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


sábado, 18 de junho de 2011

Carlos Pena Filho
















"À Charles Baudelaire"

Carlos também,
embora sem
flores nem aves,
vinho nem naves,

eu te remeto
este soneto
para saberes,
se acaso o leres,

que existe alguém
no mundo, cem
anos após,

que não vaiou
e nem magoou
teu albatroz.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Murilo Mendes, "O poeta na igreja"

Entre a tua eternidade e o meu espírito
se balança o mundo das formas.
Não consigo ultrapassar a linha dos vitrais
pra repousar nos teus caminhos perfeitos.
Meu pensamento esbarra nos seios, nas coxas
                                                                  [e ancas das mulheres,
pronto.
Estou aqui, nu, paralelo à tua vontade,
sitiado pelas imagens exteriores.
Todo o meu ser procura romper o seu próprio molde
em vão! noite do espírito
onde os círculos da minha vontade se esgotam.
Talhado pra eternidade das idéias
ai quem virá povoar o vazio da minha alma?

Vestidos suarentos, cabeças virando de repente,
pernas rompendo a penumbra, sovacos mornos,
seios decotados não me deixam ver a cruz.

Me desliguem do mundo das formas!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Alfonsina Storni, "Vou dormir"

Dentes de flores, touca de sereno,
Mãos de ervas, tu, ama-de-leite fina,
Deixa-me prontos os lençóis terrosos
E o edredom de musgos escardeados.

Vou dormir, ama-de-leite minha, deita-me.
Põe-me uma lâmpada à cabeceira;
Uma constelação; a que te agrade;
Todas são boas: abaixa-a um pouquinho.

Deixa-me sozinha: ouves romper os brotos…
Te embala um pé celeste desde acima
E um pássaro te traça uns compassos

Para que esqueças… obrigado. Ah, um encargo:
Se ele chama novamente por telefone
Diz-lhe que não insista, que saí…

Tradução de Héctor Zanetti

terça-feira, 14 de junho de 2011

João Cabral de Melo Neto, "O Mar e o Canavial"

O que o mar sim aprende do canavial:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
O que o mar não aprende do canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pilão das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.

O que o canavial sim aprende do mar:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial não aprende do mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

Cecília Meireles, "Ritmo"

O ritmo em que gemo
doçuras e mágoas
é um dourado remo
por douradas águas.

Tudo, quando passo,
olha-me e suspira.
- Será meu compasso
que tanto os admira ?

sábado, 11 de junho de 2011

Eugénio de Andrade, "Eu amei esses lugares ..."

Eu amei esses lugares
onde o sol
secretamente se deixava acariciar.

Onde passaram lábios,
onde as mãos correram inocentes,
o silêncio queima.

Amei como quem rompe a pedra
ou se perde
na vagarosa floração do ar.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Edwin Morgan, "Um cigarro"

Não há fumaça sem você, meu fogo.
Quando você partiu,
seu cigarro brilhou no meu cinzeiro
e enviou uma linha de um cinza tão ordeiro.
Sorri imaginando quem iria acreditar no sinal
de tanto amor. Um cigarro
no cinzeiro de não-fumante.
Enquanto a última espiral
estremece, uma brisa súbita
sopra seu caracol no meu rosto.
É o cheiro, é o gosto?
Você está aqui, e bêbado outra vez nos lábios de tabaco me vejo.
Apague a luz.
Deixe a fumaça deitar no escuro.
Até eu escutar a mesma cinza
suspirar entre as flores de bronze
que respirarei, e muito depois da meia-noite, seu último beijo.

Tradução de Virna Teixeira

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Jorge de Sena, "Conheço o Sal"

Conheço o sal da tua pele seca
depois que o estio se volveu inverno
da carne repousando em suor nocturno.

Conheço o sal do leite que bebemos
quando das bocas se estreitavam lábios
e o coração no sexo palpitava.

Conheço o sal dos teus cabelos negros
ou louros ou cinzentos que se enrolam
neste dormir de brilhos azulados.

Conheço o sal que resta em minha mãos
como nas praias o perfume fica
quando a maré desceu e se retrai.

Conheço o sal da tua boca, o sal
da tua língua, o sal de teus mamilos,
e o da cintura se encurvando de ancas.

A todo o sal conheço que é só teu,
ou é de mim em ti, ou é de ti em mim,
um cristalino pó de amantes enlaçados.

terça-feira, 7 de junho de 2011

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Eugénio de Andrade, "Espelho"

Que rompam as águas:
é dum corpo que falo.
Nunca tive outra pátria,
nem outro espelho,
nem outra casa.

É dum rio que falo,
desta margem onde soam ainda,
leves,
umas sandálias de oiro e de ternura.

Aqui moram as palavras;
as mais antigas,
as mais recentes:
mãe, árvore,
adro, amigo.

Aqui conheci o desejo
mais sombrio,
mais luminoso,
a boca
onde nasce o sol,
onde nasce a lua.

E sempre um corpo,
sempre um rio;
corpos ou ecos de colunas,
rios ou súbitas janelas
sobre dunas;
corpos:
dóceis, doirados montes de feno;
rios:
frágeis, frias flores de cristal.

E tudo era água,
água,
desejo só
dum pequeno charco de luz.

De luz?
Que sabemos nós
dessas nuvens altas,
dessas agulhas
nuas
onde o silêncio se esconde?
Desses olhos redondos,
agudos de verão,
e tão azuis
como se fossem beijos?

Um corpo amei,
um corpo, um rio,
um pequeno tigre de inocência,
com lágrimas
esquecidas nos ombros,
gritos
adormecidos nas pernas,
com extensas,
arrefecidas
primaveras nas mãos.

Quem não amou
assim? Quem não amou?
Quem?
Quem não amou
está morto.

Piedade,
também eu sou mortal.
Piedade
por um lenço de linho
debruado de feroz melancolia,
por uma haste de espinheiro
atirada contra o muro,
por uma voz que tropeça
e não alcança os ramos.

Dum corpo falei:
que rompam as águas.

domingo, 5 de junho de 2011

Miguel Torga, "Adeus"

É um adeus...
Não vale a pena sofismar a hora!
É tarde nos meus olhos e nos teus...
Agora,
O remédio é partir discretamente,
Sem palavras,
Sem lágrimas,
Sem gestos.
De que servem lamentos e protestos
Contra o destino?
Cego assassino
A que nenhum poder
Limita a crueldade,
Só o pode vencer a humanidade
Da nossa lucidez desencantada.
Antes da iniquidade
Consumada,
Um poema de líquido pudor,
Um sorriso de amor,
E mais nada.

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Hilda Hilst, "As barcas afundadas ..."

As barcas afundadas. Cintilantes
Sob o rio. E é assim o poema. Cintilante
E obscura barca ardendo sob as águas.
Palavras eu as fiz nascer
Dentro de tua garganta.
Húmidas algumas, de transparente raiz:
Um molhado de línguas e de dentes.
Outras de geometria. Finas, angulosas
Como são as tuas
Quando falam de poetas, de poesia.

As barcas afundadas. Minhas palavras.
Mas poderão arder luas de eternidade.
E doutas, de ironia as tuas
Só através de minha vida vão viver.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Luís Miguel Nava, "Um prego"

Cravava cuidadosamente um prego na parede, quando
pressentiu que, como água dum cano que se rompesse,
o futuro poderia jorrar de súbito na cal, uma substância
na aparência cristalina mas em cujo seio as formas
do presente se diluiriam todas, como se, com os seus
contornos, igualmente se perdesse o seu sentido, e um sol
que por um impressionante acidente cronológico se deslocasse,
por pouco que fosse, do presente para o futuro,
se esvaziasse então no céu, deixando atrás de si
uma cicatriz imensa.