quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Guignard, "Paisagem Imaginante"

Almeida Garrett, "Não te amo"

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.
E eu n'alma - tenho a calma,
A calma - do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida - nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Torquato Neto











"Cogito"

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Xilogravura de Toraji Ishikawa, "Mulher no Banho"

Eugénio de Andrade, "Mulheres de Preto"

Há muito que são velhas, vestidas
de preto até a alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.

Paulo Leminski, "Já me matei..."

já me matei faz muito tempo
me matei quando o tempo era escasso
e o que havia entre o tempo e o espaço
era o de sempre
nunca mesmo o sempre passo

morrer faz bem à vista e ao baço
melhora o ritmo do pulso
e clareia a alma

morrer de vez em quando
é a única coisa que me acalma

Rodolfo Weigel, "Paisagem Mineira"

João Cabral de Melo Neto, "A Lição de Poesia"

1.

Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2.

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3.

A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

Fernando Pessoa, "Padrão"

O esforço é grande e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para diante naveguei.
A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o mar com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a Cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará de Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.


Villa-Lobos, Prelúdio da Bachiana Brasileira nº 7.

Mário Zanini, "Casario"

Cesare Pavese



"Desenraizados"
Chega de mar. Já vimos mar que chegue.
Ao entardecer, quando deslavada a água se estende
e esfuma no nada, o meu amigo olha-a fixamente
e eu fixo o meu amigo e nenhum de nós fala.
Chegada a noite, acabamos por nos fechar nos fundos duma
                                                                                                        [taberna,
perdidos no meio do fumo, e bebemos. O meu amigo tem sonhos
(o bramir do mar torna os sonhos um tanto monótonos)
em que a água é apenas o espelho, entre uma ilha e outra,
que reflecte colinas salpicadas de flores selvagens e cascatas.
Quando bebe, dá-lhe para isso. De olhos postos no copo,
vê-se a erguer colinas verdejantes sobre a planura do mar.
As colinas, a mim agradam-me; e deixo-o falar do mar
porque a água é tão clara que se vêem mesmo as pedras do fundo.

Eu, o que vejo é só colinas, e enchem-me o céu e a terra
com as linhas nítidas dos seus perfis, distantes ou próximas.
Mas as minhas são agrestes, estriadas de vinhedos
que crescem penosamente num solo calcinado. O meu amigo
                                                                                                        [aceita-as
e quer vesti-las de flores e frutos selvagens
para nelas descobrir, entre risos, raparigas mais nuas que
                                                                                                        [os frutos.
Não é preciso: aos meus sonhos mais agrestes não falta
                                                                                                  [um sorriso.
Se amanhã, cedinho, nos metermos ao caminho,
poderemos encontrar nessas colinas, no meio das vinhas,
uma rapariga de pele morena, tisnada pelo sol,
e, talvez, metendo conversa, comer-lhe algumas uvas.

Tradução de Carlos Leite

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Rui Knopfli, "Gritarás o Meu Nome".

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.

domingo, 23 de agosto de 2009

Burle-Marx, "Homenagem a Villa-lobos"

Pedro Nava



"O Defunto
"

Quando morto estiver meu corpo,
Evitem os inúteis disfarces,
Os disfarces com que os vivos,
Só por piedade consigo,
Procuram apagar no Morto
O grande castigo da Morte.

Não quero caixão de verniz
Nem os ramalhetes distintos,
Os superfinos candelabros
E as discretas decorações.

Quero a morte com mau-gosto!

Dêem-me coroas de pano.
Dêem-me as flores de roxo pano,
Angustiosas flores de pano,
Enormes coroas maciças,
Como enormes salva-vidas,
Com fitas negras pendentes.

E descubram bem minha cara:
Que a vejam bem os amigos.
Que não a esqueçam os amigos.
Que ela ponha nos seus espíritos
A incerteza, o pavor, o pasmo.
E a cada um leve bem nítida
A idéia da própria morte.

Descubram bem esta cara!

Descubram bem estas mãos.
Não se esqueçam destas mãos!
Meus amigos, olhem as mãos!
Onde andaram, que fizeram,
Em que sexos demoraram
Seus sabidos quirodáctilos?

Foram nelas esboçados
Todos os gestos malditos:
Até os furtos fracassados
E interrompidos assassinatos.

— Meus amigos! olhem as mãos
Que mentiram às vossas mãos...
Não se esqueçam! Elas fugiram
Da suprema purificação
Dos possíveis suicídios.

— Meus amigos, olhem as mãos!
As minhas e as vossas mãos!

Descubram bem minhas mãos!

Descubram todo o meu corpo.
Exibam todo o meu corpo,
E até mesmo do meu corpo
As partes excomungadas,
As sujas partes sem perdão.

— Meus amigos, olhem as partes...
Fujam das partes,
Das punitivas, malditas partes ...

E, eu quero a morte nua e crua,
Terrífica e habitual,
Com o seu velório habitual.

— Ah! o seu velório habitual!

Não me envolvam em lençol:
A franciscana humildade
Bem sabeis que não se casa
Com meu amor da Carne,
Com meu apego ao Mundo.

E quero ir de casimira:
De jaquetão com debrum,
Calça listrada, plastron...
E os mais altos colarinhos.

Dêem-me um terno de Ministro
Ou roupa nova de noivo ...
E assim Solene e sinistro,
Quero ser um tal defunto,
Um morto tão acabado,
Tão aflitivo e pungente,
Que sua lembrança envenene
O que resta aos amigos
De vida sem minha vida.

— Meus, amigos, lembrem de mim.
Se não de mim, deste morto,
Deste pobre terrível morto
Que vai se deitar para sempre
Calçando sapatos novos!
Que se vai como se vão

Os penetras escorraçados,
As prostitutas recusadas,
Os amantes despedidos,
Como os que saem enxotados
E tornariam sem brio
A qualquer gesto de chamada.

Meus amigos, tenham pena,
Senão do morto, ao menos
Dos dois sapatos do morto!
Dos seus incríveis, patéticos
Sapatos pretos de verniz.
Olhem bem estes sapatos,
E olhai os vossos também.

Alejandra Pizarnik, "A Jaula"

Lá fora faz sol.
Não é mais que um sol
mas os homens olham-no
e depois cantam.

Eu não sei do sol.
Sei a melodia do anjo
e o sermão quente
do último vento.
Sei gritar até a aurora
quando a morte pousa nua
em minha sombra.

Choro debaixo do meu nome.
Aceno lenços na noite
e barcos sedentos de realidade
dançam comigo.
Oculto cravos
para escarnecer meus sonhos enfermos.

Lá fora faz sol.
Eu me visto de cinzas.

Tradução de Virna Teixeira

sábado, 22 de agosto de 2009

Almeida Júnior, "Descanso da Modelo"

Walt Whitman, "Um Certo Civil"

Pediste-me rimas doces?
Procuras as rimas pacíficas e lânguidas dos civis?
Achaste a canção que entoei anteriormente difícil de acompanhar?
Pois eu não estava cantando anteriormente
Para que tu pudesses seguir, para que entendesses, nem mesmo
                                                                                          [agora
(Despertei com a guerra, os intermináveis rufos dos tambores
                                                                                    [dos regimentos
São sempre doce música para mim, amo muito o hino fúnebre
                                                                                        [marcial,
Com lamentações vagarosas e palpitações convulsivas,
Conduzindo o funeral dos oficiais);
O que é, para alguém como tu, de qualquer modo, um poeta como
                                                                                                [eu?
Assim sendo, abandona meus trabalhos,
Ilude-te com aquilo que podes compreender e com os tons
                                                                                        [do piano,
Pois a ninguém iludo e jamais poderás entender-me.

António Ramos Rosa, "Há uma certa cegueira ..."

Há uma certa cegueira vidente no poema e na palavra silenciosa
que o precede e o move. Sem essa parte obscura a palavra
imobilizar-se-ia na evidência da sua visão. Por isso, escrever é
avançar, de ruptura em ruptura, através de um domínio obscuro
onde, a cada passo, se nos depara algo imprevisível. O poema
não reproduz nem designa porque o seu movimento se antecipa à
cristalização dos conceitos e das enunciações póstumas. O seu
objectivo não é o real, mas a energia nascente que incorpora na
sua dinâmica substância. O que se retira ou se retrai é idêntico ao
que se manifesta e se ausenta na sua própria manifestação. Nunca
a palavra é uma doação integral da presença mas o seu horizonte
mantém-se na abertura viva a si própria e ao mundo que a rodeia
no interior do seu círculo inaugural.


Copiado do site http://ruialme.blogspot.com,
Poesia Distribuída na Rua.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Pancetti Pintando.

Lasar Segall, "Paisagem Brasileira"

Mário de Andrade, "Eu sou Trezentos"

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh Pireneus! Ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Mário Faustino



"Carpe Dien"

Que faço deste dia, que me adora?
Pega-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou grava-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guarda-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.

(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)

Noêmia Mourão, "Figuras"

José Régio



"Soneto de Amor"

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que meus flancos nus vibrem no enleio
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua..., - unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... - abre os teus olhos, minha amada!
Enterra-os bem nos meus, não digas nada...
Deixa a vida exprimir-se sem disfarce!

Ferreira Gullar, "Barulho"

Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Iberê Camargo, "Carretéis"

Ana Cristina Cesar, "Psicografia"

Também eu saio à revelia
e procuro uma síntese nas demoras
cato obsessões com fria têmpera e digo
do coração: não soube e digo
da palavra: não digo (não posso ainda acreditar
na vida) e demito o verso como quem acena
e vivo como quem despede a raiva de ter visto

Augusto dos Anjos



"Psicologia de um Vencido"

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
esse ambiente me causa repugnância...
Sabe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme - este operário das ruínas -
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Di Cavalcanti, "Mulher com Gato"

Jorge Luis Borges



"Nuvem I"

Não há uma só coisa que não seja
nuvem. Assim são essas catedrais
de vasta pedra e bíblicos cristais
que o tempo alisa. A Odisséia, veja,
muda como o mar; há algo distinto
a cada vez que a abrimos. Seu velho
rosto já é outro, visto no espelho,
e o dia é um duvidoso labirinto.
Somos os que se vão. A volumosa
nuvem que se desmancha no poente
é a nossa imagem. Incessantemente
a rosa se converte em outra rosa.
Você é nuvem, mar, esquecimento.
E é o que perdeu a cada momento.

Foto - Diane Arbus

Blaga Dimitrova, "Ars Poética"

Escreve cada um dos teus poemas
como se fosse o último.
Nesta era atomicamente saturada,
carregada com terrorismo,
voando com velocidade supersônica,
a morte chega com uma brusquidão aterrorizadora.
Envia cada uma das tuas palavras
como se fosse a última carta antes da execução,
um apelo gravado no muro de uma prisão.
Não tens o direito de mentir,
nem o de brincar às escondidas.
Não terás simplesmente tempo
para corrigir os teus erros.
Escreve cada um dos teus poemas,
concisamente, impiedosamente,
com sangue - como se fosse o último.

Copiado do site http://arspoetica-lp.blogspot.com/

Almeida Júnior, "Caipiras Negaceando"

Machado de Assis



"A uma Senhora que me Pediu uns Versos"

Pensa em ti mesma, acharás
Melhor poesia,
Viveza, graça, alegria,
Doçura e paz.

Se já dei flores um dia,
Quando rapaz,
As que ora dou têm assaz
Melancolia.

Uma só das horas tuas
Valem um mês
Das almas já ressequidas.

Os sóis e as luas
Creio bem que Deus os fez
Para outras vidas.

Miguel Torga



"Guerra Civil"

É contra mim que luto
Não tenho outro inimigo.
O que penso,
O que sinto,
O que digo
E o que faço
É que pede castigo
E desespera a lança no meu braço.

Absurda aliança
De criança
E de adulto.
O que sou é um insulto
Ao que não sou
E combato esse vulto
Que à traição me invadiu e me ocupou.

Infeliz com loucura e sem loucura,
Peço à vida outra vida, outra aventura,
Outro incerto destino.
Não me dou por vencido
Nem convencido
E agrido em mim o homem e o menino.

Água-forte de Picasso, "O descanso da Modelo" (Suite Vollard)

Luís de Camões



"Fragmento do Canto I dos Luzíadas"

                            CANTO I

As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.

Dante Alighieri



"Fragmento do Canto I da Divina Comédia"

                            Inferno

                            Canto I

No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída.

Ah, como armar no ar uma figura
desta selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?

É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que encontrei,
outros dados darei da minha sorte.

Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.

Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,

e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia.

Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;

e como náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,

o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo.

Tradução de Augusto de Campos

Carlos Pena Filho, "Retrato na Praia"

Ei-la ao sol, como um claro desafio
ao tenuíssimo azul predominante.
Debruçada na areia e assim, diante
do mar, é um animal rude e bravio.

Bem perto, há um comentário sobre estio,
mormaço e sonolência. Lá, distante,
muito vagos indícios de um navio
que ela talvez contemple nesse instante.

Mas o importante mesmo é o sol, que esse desliza
por seu corpo salgado, enxuto e belo,
como se nuvem fosse, ou quase brisa.

E desce por seus braços, e rodeia
seu brevíssimo e branco tornozelo,
onde se aquece e cresce, e se incendeia.

João Câmara, "Mulher"

António Botto, "Canção"

Não. Beijemo-nos, apenas,
Nesta agonia da tarde.

Guarda -
Para outro momento.
Teu viril corpo trigueiro.

O meu desejo não arde
E a convivência contigo
Modificou-me - sou outro. . .

A névoa da noite cai.
Já mal distingo a cor fulva
Dos teus cabelos, - És lindo!

A morte
Devia ser
Uma vaga fantasia!

Dá-me o teu braço: - não ponhas
Esse desmaio na voz.

Sim, beijemo-nos, apenas!,
- Que mais precisamos nós?

Renata Palottini, "Poema"

Não sei nada
Não compreendo nada
E não irei sem nada ter aprendido
Senão as lições da minha própria angústia.
No entanto
Desta luta de punhais que se travou dentro de mim
Continuo a guardar lençóis manchados
Até o dia antes do fim de tudo
Em que hei de expor ao sol os mapas desta viagem.

Volpi, "Esquina de São Paulo"

Carlos Drummond de Andrade, "Campo de Flores"

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus -ou foi talvez o Diabo- deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.

Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.

Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.

Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.

E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.

Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes,
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.

Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visão extasiada.

Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

sábado, 15 de agosto de 2009

Jorge Luis Borges, "O Cúmplice".

Passam-me o cálice e eu devo ser a cicuta.
Enganam-me e eu devo ser a mentira.
Incendeiam-me e eu devo ser o inferno.
Devo louvar e agradecer cada instante do tempo.
Meu alimento é todas as coisas.
O peso preciso do universo, a humilhação, o júbilo.
Devo justificar aquilo que me fere.
Não importa minha ventura ou desventura.
Sou o poeta.

"Índios Isolados no Acre Atiram Flechas em Avião (2008)"



Foto de Gleilson Miranda

Propaganda de "Licor de Verveine"

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

Manuel Bandeira



"Na Boca"

Sempre tristíssimas estas cantigas de carnaval.
Paixão.
Ciúme.
Dor daquilo que não se pode dizer.

Felizmente existe o álcool na vida
E nos três dias de carnaval éter de lança-perfume.
Quem me dera ser como o rapaz desvairado!
O ano passado ele parava diante das mulheres bonitas
E gritava pedindo o esguicho de cloretilo:
- Na boca! Na boca!
Umas davam-lhe as costas com repugnância
Outras porém faziam-lhe a vontade.

Ainda existem mulheres bastante puras para fazer
                                                                  [vontade aos viciados

Dorinha meu amor...
se ela fosse bastante pura eu iria agora gritar-lhe como
                                                                                                [o outro:
- Na boca! Na boca!

Swiatoslaw Richter, Entrevista

Carlos Nejar, "Luiz Vaz de Camões"

Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi reposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

Xilogravura de Toraji Ishikawa, "Mulher e Gato"

Manuel Maria Barbosa du Bocage, "Lá quando em mim perder ..."

Lá quando em mim perder a humanidade
Mais um daqueles, que não fazem falta,
Verbi-gratia – o teólogo, o peralta,
Algum duque, ou marquês, ou conde, ou frade:

Não quero funeral comunidade,
que engrole sub-venites em voz alta;
Pingados gatarrões, gente de malta,
Eu também vos dispenso a caridade:

Mas quando ferrugenta enxada idosa
Sepulcro me cavar em ermo outeiro,
Lavre-me este epitáfio mão piedosa:

"Aqui dorme Bocage, o putanheiro:
Passou a vida folgada, e milagrosa:
Comeu, bebeu, fodeu sem ter dinheiro".

Álvares de Azevedo, "Tristeza"

Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto o poento caminheiro;
Como as horas de um longo pesadelo,
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;

Como um desterro de minha alma errante,
Onde fogo insensato a consumia...
Só levo um saudade - é um desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.

Só levo uma saudade - é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas...
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!

Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz - e escrevam nela:
Foi poeta, sonhou e amou a vida...

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Almeida Júnior, "O Violeiro"

Adélia Prado



"Fatal"
Os moços tão bonitos me doem,
impertinentes como limões novos.
Eu pareço uma atriz em decadência,
mas, como sei disso, o que sou
é uma mulher com um radar poderoso.
Por isso, quando eles não me vêem
como se dissessem: acomoda-te no teu galho,
eu penso: bonitos como potros. Não me servem.
Vou esperar que ganhem indecisão. E espero.
Quando cuidam que não,
estão todos no meu bolso.

Cecília Meireles, "Lua Adversa"

Tenho fases, como a lua
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua...
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.

Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.

E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua...)
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua...
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu...

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Tarsila, "Anjo"

Orides Fontela



"Elegia I"

Mas para que serve o pássaro?
Nós o contemplamos inerte.
Nós o tocamos no mágico fulgor das penas.
De que serve o pássaro se
desnaturado o possuímos?

O que era vôo e eis
que é concreção letal e cor
paralisada, íris silente, nítido,
o que era infinito e eis
que é peso e forma, verbo fixado, lúdico

O que era pássaro e é
o objeto: jogo
de uma inocência que

o contempla e revive
— criança que tateia
no pássaro um
esquema de distâncias —

mas para que serve o pássaro?

O pássaro não serve. Arrítmicas
brandas asas repousam.

Walt Whitman



"Meu Legado"

O homem de negócios de vastas aquisições,
Depois de árduos anos fazendo o balanço dos resultados,
Preparando para a partida,
Lega casas e terras para seus filhos, deixa ações como herança,
Bens, fundos para uma escola ou hospital,
Deixa dinheiro para certos companheiros, para que comprem
                                                                                        [lembranças,
Relíquias de pedras preciosas e ouro.

Mas eu, fazendo o balanço de minha vida, fazendo o fechamento,
Com nada para apresentar, para legar de meus anos preguiçosos,
Nem casas, nem terras, nem lembranças de pedras preciosas ou
                                                                      [ouro para meus amigos,
Contudo, certas lembranças da guerra deixo para ti e para os
                                                                                            [que virão,
E pequenas relíquias de acampamentos e soldados, com
                                                                                              [meu amor,
Encaderno e deixo como herança neste feixe de canções.

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Marcelo Grassmann, "Guerreiro e Mulher"

Soares Feitosa, "Architectura"

                                                        (L.)

Um dia, Ela
desenhará em chãos longínquos a casa só nossa,
que eu farei com estas mãos.

Os tijolos, eu os amassarei com os meus pés.

Às telhas —
hei de aprontar o barro mais macio
e as formas serão por mim, uma a uma,
completadas;

Ela as alisará longamente —
seus dedos molhados de um profundo silêncio:
só os pássaros.

Cesare Pavese, "Paisagem VIII"

As recordações começam ao cair da tarde
com o hálito do vento a erguer o rosto
e a escutar a voz do rio. A água
é a mesma, na escuridão, dos anos mortos.

No silêncio da escuridão eleva-se um murmúrio
onde passam vozes e risos distantes;
acompanha o rumor uma cor inútil,
de sol, margens e olhos claros.
Um Verão de vozes. Cada rosto contém
como um fruto maduro um sabor passado.

Cada olhar que volta conserva um gosto
de erva e das coisas impregnadas de pôr-do-sol
na praia. Conserva um hálito de mar.
Como um mar nocturno é esta vaga sombra
de ânsias e arrepios antigos, que o céu roça
e que volta ao fim de cada dia. As vozes mortas
assemelham-se à rebentação daquele mar.

Tradução de Carlos Leite

Ricardo Reis (Fernando Pessoa), "Mestre, são Plácidas ..."

Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranqüilos, plácidos,
Lendo as crianças
Por nossas mestras,
E os olhos cheios
De Natureza ...

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranqüilos,tendo
Nem o remorso
De ter vivido.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Bernini, Detalhe de Mármore

Boca de Mulher,Foto

Ana Cristina Cesar



"Contagem Regressiva"

Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três a quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos

Augusto Frederico Schmidt, "Retrato"

Ele era da raça dos que suportam
Todo o peso da vida,
Era da dos que não se queixam
Dos que sorriem diante do destino adverso.

Viveu em silêncio grandes horas amargas
E ninguém conheceu as devastações,
O efeito dos golpes que lhe foram vibrados.

As sua ruínas, os seus deuses mutilados,
Os túmulos que estavam nele
Ninguém desvendou,
Tudo ficou escondido,
Tudo ficou defendido
Pela sua máscara tranquila.

No entanto ninguém amou
Mais profundamente do que ele amou,
E ninguém terá recolhido maior melancolia
E maior incompreensão
Do amor.
Ninguém desejou mais a companhia dos seus semelhantes,
Ninguém teve mais necessidade do calor amigo,
Do apoio, do aplauso, da solidariedade humana.
No entanto - sua vida se consumiu na solidão, no desamparo
                                                                                          [e na indiferença.

A amargura não fermentou sua alma,
O ressentimento não dominou jamais sua visão simples das coisas,
Ele era da raça dos heróis obscuros.

Caetano, "Cucurucucu Paloma"

Oswaldo Goeldi, "Cachorro"

Paulo Henriques Britto, "Ontologia Sumaríssima"

Umas quatro ou cinco coisas,
no máximo, são reais.
A primeira é só um gás
que provoca a sensação
de que existe no mundo
uma profusão de coisas.

A segunda é comprida,
aguda, dura e sem cor.
Sua única serventia
é instaurar a dor.

A terceira é redondinha,
macia, lisa, translúcida,
e mais frágil do que espuma.
Não serve para coisa alguma.

A quarta é escura e viscosa,
como uma tinta. Ela ocupa
todo e qualquer espaço
onde não se encontre a quinta
(se é que existe mesmo a quinta),
a qual é uma vaga suspeita
de que as quatro acima arroladas
sejam tudo o que resta
de alguma coisa malfeita
torta e mal-ajambrada
que há muito já apodreceu.

Fora essas quatro ou cinco
não há nada,
nem tu, leitor,
nem eu.

domingo, 9 de agosto de 2009

Luís Miguel Nava, "O Tímpano e a Pupila"

Num dos pratos o mar, no outro um rio, agora
que o tempo se desossa,
que as pedras
que piso se me enterram na memória e os caminhos
se me aguçam na alma como lâminas, o pão
molhado nas feridas,
o pão
ele próprio já também uma ferida, agora

que o tempo, que já tanto
compararam a um rio, mais
não é do que uma leve exsudação nos muros,
nas mãos, agora

que o céu se encrespa e que pedaços
de mundo arremessados
com toda a força aos olhos revolteiam
na treva antes de se extinguirem,

mais magro do que a neve
caminho, a alma aberta como uma ferida,
ao longo da memória, onde se fundem
o tímpano e a pupila.

sábado, 8 de agosto de 2009

Cícero Dias, "Infância"

Vinícius de Moraes



"O Haver"

Resta, acima de tudo, essa capacidade de ternura
Essa intimidade perfeita com o silêncio
Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo
– Perdoai-os! porque eles não têm culpa de ter nascido...

Resta esse antigo respeito pela noite, esse falar baixo
Essa mão que tateia antes de ter, esse medo
De ferir tocando, essa forte mão de homem
Cheia de mansidão para com tudo quanto existe.

Resta essa imobilidade, essa economia de gestos
Essa inércia cada vez maior diante do Infinito
Essa gagueira infantil de quem quer exprimir o inexprimível
Essa irredutível recusa à poesia não vivida.

Resta essa comunhão com os sons, esse sentimento
Da matéria em repouso, essa angústia da simultaneidade
Do tempo, essa lenta decomposição poética
Em busca de uma só vida, uma só morte, um só Vinicius.

Resta esse coração queimando como um círio
Numa catedral em ruínas, essa tristeza
Diante do cotidiano; ou essa súbita alegria
Ao ouvir passos na noite que se perdem sem história...

Resta essa vontade de chorar diante da beleza
Essa cólera em face da injustiça e do mal-entendido
Essa imensa piedade de si mesmo, essa imensa
Piedade de si mesmo e de sua força inútil.

Resta esse sentimento de infância subitamente desentranhado
De pequenos absurdos, essa capacidade
De rir à toa, esse ridículo desejo de ser útil
E essa coragem para comprometer-se sem necessidade.

Resta essa distração, essa disponibilidade, essa vagueza
De quem sabe que tudo já foi como será no vir-a-ser
E ao mesmo tempo essa vontade de servir, essa
Contemporaneidade com o amanhã dos que não tiveram
                                                                                        [ontem nem hoje.

Resta essa faculdade incoercível de sonhar
De transfigurar a realidade, dentro dessa incapacidade
De aceitá-la tal como é, e essa visão
Ampla dos acontecimentos, e essa impressionante

E desnecessária presciência, e essa memória anterior
De mundos inexistentes, e esse heroísmo
Estático, e essa pequenina luz indecifrável
A que às vezes os poetas dão o nome de esperança.

Resta esse desejo de sentir-se igual a todos
De refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória
Resta essa pobreza intrínseca, essa vaidade
De não querer ser príncipe senão do seu reino.

Resta esse diálogo cotidiano com a morte, essa curiosidade
Pelo momento a vir, quando, apressada
Ela virá me entreabrir a porta como uma velha amante
Mas recuará em véus ao ver-me junto à bem-amada...

Resta esse constante esforço para caminhar dentro do labirinto
Esse eterno levantar-se depois de cada queda
Essa busca de equilíbrio no fio da navalha
Essa terrível coragem diante do grande medo, e esse medo
Infantil de ter pequenas coragens.

Manuel Bandeira, "O Rio"

Ser como o rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranqüilas.

Oscar Pereira da Silva, "Leitura"

Jorge Luis Borges, "O Remorso"

Cometi o pior dos pecados
Que um homem pode cometer. Não fui
Feliz. Que as geleiras do esquecimento
Me arrastem e me percam, desapiedadas.
Meus pais me geraram para o jogo
Arriscado e formoso da vida,
Para a terra, a água, o ar, o fogo.
Defraudei-os. Não fui feliz. Cumprida
Não foi sua jovem vontade. Minha mente
Se dedicou às simétricas rixas
Da arte, que entretece ninharias.
Legaram-me coragem. Não fui valente.
Não me abandona. Sempre está a meu lado
A sombra de ter sido um desgraçado.

Tradução amadora minha

Carlos Drummond de Andrade, "Elegia"

Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaçam, num suspiro.

E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava,
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.

Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?

Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As arvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.

Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.

E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.

Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.

Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.

Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quando aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.

E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Guignard, "Família em Paisagem Imaginante"

Pierre Bonnard, "Vasos de Flores"

Mário de Andrade



"Aceitarás o amor como eu o encaro ?

Aceitarás o amor como eu o encaro ?...
... Azul bem leve, um nimbo, suavemente
Guarda-te a imagem, como um anteparo
Contra estes móveis de banal presente.

Tudo o que há de melhor e de mais raro
Vive em teu corpo nu de adolescente,
A perna assim jogada e o braço, o claro
Olhar preso no meu, perdidamente.

Não exijas mais nada. Não desejo
Também mais nada, só te olhar, enquanto
A realidade é simples, e isto apenas.

Que grandeza... a evasão total do pejo
Que nasce das imperfeições. O encanto
Que nasce das adorações serenas.

Florbela Espanca, "Fanatismo"

Minh'alma, de sonhar-te, anda perdida,
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida.
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

Tudo no mundo é frágil, tudo passa.
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de-rastros:
Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Principio e Fim.

Almeida Júnior, "Leitura"

Mário Quintana













"Canção dos romances perdidos"


Oh! silêncio das salas de espera
Onde esses pobres guarda-chuvas lentamente escorrem...

O silêncio das salas de espera
E aquela última estrela...

Aquela última estrela
E, na parede, esses quadrados lívidos,
De onde fugiram os retratos...

De onde fugiram todos os retratos...

E esta minha ternura,
Meu Deus,
Oh! toda esta minha ternura inútil, desaproveitada!...

Herberto Helder



"Sobre o Poema"

Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
- a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.
E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.
— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.