quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Adélia Prado, "Amor".

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado, até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

João Câmara, "Ema"

Pedro Homem de Mello, "Sinceridade".

Deixa que eu beije
Teus olhos que me viram!

Mas não beijes os meus
Que te mentiram…

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Ferreira Gullar, "Falar".

A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

Lasar Segall. "Encontro"

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Gastão Cruz, " Relatório em forma fechada".

Os estragos da noite foram vastos,
inversos ao pulsar da primavera:
há tempo em que se luta pelos gastos
rastos da vida e o tempo novo gera

desilusão somente, esse viscoso
correr da insónia como se já água
as lágrimas não fossem e no fosso
há pouco aberto qualquer outra água

de natureza opaca suspendesse
a sua interminável queda; voltas
por fim à noite espessa que já tece
a madrugada com as linhas soltas

da minha vida, versos que transformam
em realidade as sílabas que os formam

Maria Callas, "Casta Diva", ária da ópera Norma, de Vincenzo Bellini

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dalila Teles Vera, "Pensamentos luxuriosos"

                                             
                                          Ver-te.Tocar-te.Que fulgor de máscaras 
                                                            (Hilda Hilst)


Pensava nele

quando a seda do vestido
tocou-lhe as coxas
eriçando-lhe os pêlos
(asas a roçar o espírito
tocha a incendiar a carne)

Pensava nele

quando a voz de Maria Callas
alcançou a nota mais aguda
- L'altra notte in fondo al mare -
invocando Mefistofele
(setas fálicas a zumbir junto aos ouvidos
aromas de sândalo a embebedar os sentidos)

De tanto nele pensar
devorou a si própria
l u x u r i o s a m e n t e
(espírito é só carne)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Carlos Chambelland, "Paisagem do Rio de Janeiro"

Paulo Henriques Britto, "Fisiologia da composição"

Também os anjos mudam de poleiro
de vez em quando, se rareia o alpiste
indeglutível que é seu alimento.

Porém você não se conforma, e insiste,
procura em vão possíveis substitutos
que tenham o efeito de atrair de volta

esses seres ariscos, esses putos
que se recusam a ouvir os teus apelos,
como se fossem mesmo coisas outras

que não a tua própria vontade de tê-los
sempre a postos, em eterna prontidão,
a salpicar na tua boca ávida

o alpiste acre-doce da ( com perdão
da péssima palavra ) inspiração.

Mario Quintana


Vida

Não sei
o que querem de mim essas árvores
essas velhas esquinas
para ficarem tão minhas só de as olhar um momento.

Ah! se exigirem documentos aí do Outro Lado,
extintas as outras memórias,
só poderei mostrar-lhes as folhas soltas de um álbum de imagens:
aqui uma pedra lisa, ali um cavalo parado
ou
uma
nuvem perdida,
perdida...

Meu Deus, que modo estranho de contar uma vida!

sábado, 4 de dezembro de 2010

Sansor Flexor, "Retrato".

Cecília Meireles, "Até quando ..."

Até quando terás, minha alma, esta doçura,
este dom de sofrer, este poder de amar,
a força de estar sempre – insegura – segura
como a flecha que segue a trajetória obscura,
fiel ao seu movimento, exata em seu lugar...?

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Ferreira Gullar, "O que se foi"

O que se foi se foi.
Se algo ainda perdura
é só a amarga marca
na paisagem escura.

Se o que se foi regressa,
traz um erro fatal:
falta-lhe simplesmente
ser real.

Portanto, o que se foi,
se volta, é feito morte.

Então por que me faz
o coração bater tão forte?

sábado, 27 de novembro de 2010

Gerda Brentani, "Beira-mar"

Konstantinos Kaváfis, "Mar da manhã".


Aqui, que eu me detenha. E que também eu veja
                                                          [um pouco a natureza.
O azul brilhante de um mar da manhã
e de um céu sem nuvens, e margem amarela; tudo
lindo e extremamente iluminado.

Aqui, que eu me detenha. E que caia na ilusão de ver isto
(vi-o verdadeiramente por um momento, logo que me detive);
isto, e não, também aqui, minhas fantasias,
minhas lembranças, as visões de volúpia.



Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Adelina Lopes Vieira, " É tarde "

Na sombra, assim, esconde-te alma triste,
não procures o sol que esplende, fora.
Oh! Não te aquecerá, da tua aurora,
do teu dia de luz, já nada existe.

Se a um raio ousado e quente o selo abriste,
se a tua noite te horrorisa agora,
pensa que é tarde, e soluçando chora
que as lágrimas são bálsamo. Resiste!

Lembram-te sei, alfombras orvalhadas
todas cheias de luz e de violetas,
as pombas pelo azul em revoadas,

as ondas do mar alto, irrequietas,
as montanhas ao longe, iluminadas...
Morre! Mas cala as mágoas indiscretas.

Portinari, "Antúrios"

Bernardim Ribeiro, "Cantiga"

Entre mim mesmo e mim
não sei que se ergueu
que tão meu inimigo sou.

Uns tempos com grande engano
vivi eu mesmo comigo,
agora no maior perigo
se me descobre maior dano.

Caro custa um desengano,
embora este não me tenha matado
quão caro que me custou!

De mim me sou feito outro,
entre o cuidado e cuidado
está um mal derramado,
que por mal grande me veio.

Nova dor, novo receio
foi este que me tomou,
assim me tem, assim estou.

Do cancioneiro Geral de Garcia Rezende

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

José Saramago, "Aniversário".

Pai, que não conheci (pois conhecer não é
Este engano de dias paralelos,
Este tocar de corpos distraídos,
Estas palavras vagas que disfarçam
O intransponível muro):
Já nada me dirás, e eu não pergunto.
Olho, calado, a sombra que chamei
E aceito o futuro.

domingo, 14 de novembro de 2010

Milton Dacosta, "Paisagem com Flamboyant"

Alfonsina Storni, "Homem pequenino"

Homem pequenino, homem pequenino,
Solta o teu canário que quer voar...
Eu sou o canário que quer voar...
Eu sou o canário, homem pequenino,
Deixa-me escapar.
Estive na tua gaiola, homem pequenino,
Homem pequenino que gaiola me dás.
Digo pequenino porque não me entendes,
Nem me entenderás.
Tampouco te entendo, mas enquanto isso
Abre-me a gaiola que quero escapar;
Homem pequenino, amei-te meia hora.
Não me peças mais.

Tradução de Carlos Seabra

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Eugénio de Andrade, " A boca ..."

A boca,

onde o fogo
de um verão
muito antigo

cintila,

a boca espera

(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)

espera o ardor
do vento
para ser ave,

e cantar.

Mulher, Foto

Adélia Prado, "Amor feinho"

Eu quero amor feinho.
Amor feinho não olha um pro outro.
Uma vez encontrado, é igual fé,
não teologa mais.
Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo
e filhos tem os quantos haja.
Tudo que não fala, faz.
Planta beijo de três cores ao redor da casa
e saudade roxa e branca,
da comum e da dobrada.
Amor feinho é bom porque não fica velho.
Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:
eu sou homem você é mulher.
Amor feinho não tem ilusão,
o que ele tem é esperança:
eu quero amor feinho.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Gravura em ponta seca de Lasar Segall, "Mário na rede"

Gastão Cruz, "O que faz sentido"

Reformulamos o amor porém se fórmula
não existia como repeti-la?

É preciso criar um eco ambíguo
que deixe de ser eco e tome a forma

do que viver possa ter sido:
encontraremos restos do sentido

que num instante incerto alguma coisa fez
e nunca poderá ser repetido

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Carlos Drummond de Andrade, "Quarto em desordem "

Na curva perigosa dos cinqüenta
derrapei neste amor. Que dor! que pétala
sensível e secreta me atormenta
e me provoca à síntese da flor

que não sabe como é feita: amor
na quinta-essência da palavra, e mudo
de natural silêncio já não cabe
em tanto gesto de colher e amar

a nuvem que de ambígua se dilui
nesse objeto mais vago do que nuvem
e mais indefeso, corpo! Corpo, corpo, corpo

verdade tão final, sede tão vária
a esse cavalo solto pela cama
a passear o peito de quem ama.

domingo, 7 de novembro de 2010

Guignard, "Paisagem de Minas"

Domingos da Mota, "Muros"

Vivemos a dois
passos, tão distantes, com
muros de silêncio

de permeio.
Os muros altos, farpados,
arrogantes.

Ivan Junqueira, "Vai tudo em mim"

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo
neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.

sábado, 6 de novembro de 2010

José Marques Campão, "Rua do Interior"

Lêdo Ivo, "Os utensílios"

No galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
E lá elas esperam a morte, como os velhos nos asilos.

Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.

Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Mario Quintana, "Confissão".

Que esta minha paz e este meu amado silêncio
Não iludam a ninguém
Não é a paz de uma cidade bombardeada e deserta
Nem tampouco a paz compulsória dos cemitérios
Acho-me relativamente feliz
Porque nada de exterior me acontece...
Mas,
Em mim, na minha alma,
Pressinto que vou ter um terremoto!

José Maria dos Reis Júnior, "Beira-mar".



(Acho que é o bairro da Urca visto das obras do Aterro do Flamengo).

Luís de Camões, "Tanto de meu estado me acho incerto ..."

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Armando Freitas Filho, "Numeral 23"

Escrever é riscar o fósforo
e sob seu pequeno clarão
dar asas ao ar — distância, destino
segurando a chama contra
a desatenção do vento, mantendo
a luz acesa, mesmo que o pensamento
pisque, até que os dedos se queimem.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Manuel Bandeira entrevistado por Pedro Bloch em 1964.



Ninguém sabe explicar como aquele homem, castigado, tantos anos, pela doença, não amargou. Disse Mário de Andrade: "Eu fico espantado de como há certos homens no mundo! Tu, por exemplo. Essa sublime bondade inconsciente, bem no íntimo, de quem nem sabe que é bom." Vou além. Acho que Manuel Bandeira nem tem plena consciência de sua imensa envergadura de gente e poeta. Acho que, talvez, os quatro anos que viveu em sua terra, Recife, é que explicam, mais que os males, o homem de hoje. ("Sou bem-nascido, menino./Fui, como os demais, feliz./Depois, veio o mau destino/E fez de mim o que quis.")

Diante de mim está o gigante de nossa poesia: Manuel Bandeira, em seu modesto apartamento, atulhado de livros e calor humano, na Av. Beira-Mar, no Rio. Do bem que lhe querem todos, da ternura que desperta em quem dele se aproxima basta dizer que Mário de Andrade só o tratava de Manu ou Manuelucho; Rodrigo MeIo Franco de Andrade lhe deu o nome de Manula; Madale Blank, sua amiga de almoço de todo o dia, o trata de Mané. Até a morte da mãe era para ela. Neném. Creio que nunca ninguém teve tanto apelido, tanta gente querendo chegá-lo à sua amizade.

Do Recife tenho quatro anos de existência consciente, mas ali está a raiz de toda a minha poesia. Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida é que vejo o vazio dos últimos. ("Hoje não ouço mais vozes daquele tempo/Minha avó/Meu avô/Totônio Rodrigues; Tomásia/Rosa/Onde estão todos eles ?")

Meu nome todo é Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho. Fisicamente me pareço com mamãe (D. Francelina): míope, dentuça como eu; no resto sou como meu pai (engenheiro que conviveu no ministério com Machado de Assis).

Sabe, Pedro Bloch, que meu avô reprovou Castro Alves num exame? Eramos três irmãos. Os mais velhos (Antônio e Maria Cândida) já não existem.

Saí do Recife com dois anos. Deles nada recordo. Viemos pro Sul e com seis (quando da revolta da Esquadra, em 1892) meu pai nos levou de volta pra casa de meu avô. Fui com seis e voltei ao Rio com dez. Mas esses quatros anos ... Essa coisa de viver, na infância, num lugar e, depois, ser arrancado dele, isola essa vida dentro da vida da gente. ("A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado/Rua da União.../ Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância/Rua do Sol/ Tenho medo que hoje se chame do Dr. Fulano de Tal.")

Papai, no Rio, não teve sorte. Aos quarenta anos passou por crise religiosa. Dele recordo com intensidade o dia em que exclamou olhando, pra mim, menino de seis anos: "E impossível que este menino não saiba ler." Trancou-se comigo na biblioteca, por duas horas. Saí de lá lendo. Outra coisa que me tocou fundo foi ouvi-lo exclamar ao morrer: "Meu Jesus Cristinho!" E eu conto no poema: "Mas Jesus Cristo nem se "incomodou!"

Foi o livro de D' Amicis uma das coisas que mais me marcaram. Ali descobri a literatura e a vida. Isto no Recife. No Rio, eu e meu irmão fomos fazer exame para o Ginásio Nacional (Pedro II). Na casa das Laranjeiras, onde moráva­mos, nunca faltou pão; mas a luta era dura. Nunca briguei com moleque da rua, mas me impregnei do realismo do povo. (Mais tarde conheci a Lapa.) Comecei fazendo versos pretensamente humorísticos. Com a puberdade, versos de amor. Meus namoros eram sempre calados, namoro de caboclo. E eu, menino ainda, vivia amando moças já feitas. Um dia perguntei a meu tio se Vésper rimava com Cadáver. Ele disse que não. Descobri, mais tarde, que meu ouvido é que estava certo. Tanto se rima consoantemente como toantemente e de outras maneiras. Aprendi que a boa rima é a que traz ao ouvido uma sensação de surpresa, não de raridade, senão de uma espécie de resolução musical. Como nas Pombas: "Raia, sanguínea e fresca, a madrugada." Entre outros eu tinha como colegas do Pedro II o Prof. Nascentes, o Artur Moses, o Souza Silveira, o Lopes da Costa. Acabei bacharel em Letras.

Como ainda não havia um bom curso de arquitetura no Rio (eu queria ser arquiteto) fui estudar em São Paulo. Aos 18 anos, nas férias do 1º ano para o 2° da Politécnica, fiquei tuberculoso. Durante muitos anos vivi provisoriamente. He­moptises, tosse, febre, desesperança. Andei de ceca em meca, alopatia, homeopatia, e em junho de 1913 segui para um sanatório suíço (Clavadel). Meu pai ganhava um conto e novecentos. A passagem, ida e volta, custava 900 mil-réis. O sanatório, com balcão e quarto, 360 mil-réis que valiam 600 francos suíços. Lá fiquei até outubro de 1914. Com a guerra o franco dobrou e eu não pude continuar lá. Foi quando perguntei ao Dr. Bodmer: "Quanto tempo de vida o senhor me dá?" A resposta: "O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida, mas nenhum sintoma alarmante. Pode durar uns cinco... dez anos." Calcule! ("Então, doutor!, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.")

Na Suíça, conheci, como companheiro de sanatório, o poeta Paul Eluard e Gala, que veio a ser sua esposa e, atualmente, é a mulher de Salvador Dali.

Voltei. Mal tinha dado pra conhecer Paris, por alto na ida. Só 44 anos depois pude voltar à Europa. Aqui no Rio eu ficava até tarde, deitado na praia, no Leme, diante das recriminações de todos. Em 1917, publiquei meu primeiro livro (A Cinza das Horas, 200 exemplares que me custaram 300 mil-réis). Em Carnaval, depois, eu dizia: "Quero beber! Cantar asneiras!" Pois um crítico observou: "Conseguiu plenamente o que queria." Nestes dois volumes e em Ritmo Dissoluto estão poemas feitos em estado de lucidez. A partir de Libertinagem é que me resignei à condição de poeta quando Deus é servido. Tomei cedo consciência de que era um poeta menor, consciência de minhas limitações. Devo dizer que aprendi muito com os maus poetas: o que devemos evitar.

Ao voltar da Suíça eu era um inválido. Basta dizer que papai passou pra mim o montepio de 500 mil-réis. Depois dos cinqüenta é que eu pude começar a trabalhar, a ganhar a vida. Fiscal de ensino. Depois fui lecionar Literatura no Pedro II, até 1942. San Tiago Dantas, posteriormente, me convidou para ensinar Literatura Hispano-Americana na Faculdade de Filosofia, onde permaneci até 1956. Traduzi muito, fiz muita crônica, crítica musical, crítica de arte. Mas, durante a minha doença, dependi de meu pai (até que morreu em 1921) e do montepio. Por falar em crítica musical, ocorre-me que sempre fui muito sensível ao desenho e à música. Na verdade, faço versos porque não sei fazer música. Quando morei na Rua do Curvelo conheci melhor Ribeiro Couto, que me aproximou da nova geração literária do Rio e de São Paulo: Ronald, Alvaro Moreira, Di Cavalcanti, Mário e Oswald de Andrade. Em 1921 Mário veio ler aqui sua Paulicéia Desvairada. Foi a última influência que recebi. O que veio depois me encontrou calcificado. Também não quis participar da Semana da Arte Moderna. Pouco me deve o movimento. O que devo a ele é enorme. Mas eu falava de Ribeiro Couto, um dos responsáveis pela minha entrada para a Academia. No tempo da Rua do Curvelo era ele quem me ajudava a ajustar-me ao mundo dos sãos, porque a doença gerara em mim um sentimentalão.

Não. Nunca fui um antiacadêmico. O problema é que eu gostava de tomar minhas licenças com a língua (E eu digo a você, Bandeira: - Você não precisa pedir licença, a casa é sua). Não aceito que não se possa dizer "me dê isso", "me dê aquilo" se até o Laet dizia. ((Confesso que também tinha ojeriza pelo fardão.) Nada mais gostoso que "pra mim brincar". Todos os brasileiros deviam querer falar como os cariocas que não sabem gramática. "Ele já mo deu" ... é horrível! Horríveis também são quiçá e alhures. A Rua do Curvelo me ensinou muitas coisas. Foi ali que, vendo os moleques de rua, reaprendi os caminhos da infância. A mim sempre agradou o coloquial e até o baixo calão.

Você lembra? O menino Jesus: - "Quem sois tu?/O preto: - Eu sou aquele preto principá do centro do cafange do fundo do rebolo. Quem sois tu?/ - O menino Jesus: - Eu sou fio da Virge Maria/ O preto: Então como é fio dessa senhora obedeço."

Em 1921, papai morto, continuei vivendo com 500 mil-réis. Outro dia, fui comprar um queijo: custava 550! Em 1940, houve vaga na Academia, Ribeiro Couto voltou à carga. Eu, inspetor de ensino, tinha perdido o montepio: - os 500 mil-réis exatos com que a Academia me acenava. Juntei o meu desejo de segurança ao respeito pela Academia e venci o medo de conspurcá-la com os meus pronomes. (Fora dali, onde só tenho amigos diletos, faço programas e crônicas para a Rádio Ministério da Educação.)

Um dos mais chegados é o Rodrigo Melo Franco de Andrade. Almoço todos os dias com uma cara amiga, de sadios 84 anos, Madame Blank. Já ao Drummond eu quero um bem imenso, mas nunca sentei na mesa dele pra almoçar. Nem ele na minha. Nos admiramos muito, mas não temos convivência doméstica. (Foi Drummond quem disse de Bandeira: "O poeta melhor que nós todos, o poeta mais forte.")

A minha poesia tem tomado um aspecto, assim de preparação para a morte. Estou com 77, vou fazer 78 em abril. Nasci a 19 de abril de 1886. Me sinto cansado. Faço algumas outras coisas, mas só no chão da poesia piso com alguma segurança. Estou perdendo a curiosidade. Prefiro ficar em casa a viajar. Do que imaginei ver só a Ronda Noturna, de Rembrandt, ultrapassou a expectativa. As obras de arte, Vênus de Milo e o resto, de tão divulgadas, já não constituem mais surpresa. Não tenho a menor curiosidade pelo Oriente. Me sinto cem por cento Ocidental.
Bandeira fala em preparação para a morte, mas é o poeta mais vibrantemente vivo que se pode conhecer. Vejam a vitalidade, a modernidade de seu poema Maísa:

"Quem fala mais em Maísa a boca ou os olhos?/Os olhos e a boca de Maísa se estendem/os olhos dizem uma coisa e a boca da Maísa se condói/se contrai, se contorce como a ostra viva em que se pingou uma gota de limão./Maísa não é um corpo/Maísa são dois olhos e uma boca." Isto que Bandeira chama de preparação para a morte é simplesmente o sonho do poeta, a Pasárgada de: "Vou-me embora pra Pasárgada/Lá sou amigo do rei/Lá tenho a mulher que eu quero/Na cama que escolherei."

E o poeta escreveu: "Agora a morte pode vir - essa morte que espero desde os dezoito anos; tenho a impressão que ela me encontrará como em Consoada: casa limpa, mesa posta, cada coisa em seu lugar."

"A vida é um milagre./Cada flor,/Com sua forma, sua cor, seu aroma,/Cada flor é um milagre./Tudo é milagre. Tudo menos a morte./Bendita a morte, que é o fim de todos os milagres."

Posso dizer que pouco se me dá, quando morrer, morrer completamente para sempre na minha carne e na minha poesia. Entretanto, já não será possível, para alguns de meus versos, aquela serena paz da morte absoluta, não por virtude própria, mas por culpa de Villa-Lobos (o primeiro a musicar verso meu), Mignone, Camargo Guarnieri, Lorenzo Fernandez, Jaime Ovalle, Radamés e tantos outros. Gosto de ser traduzido, de ser musicado, de ser fotografado. Criancice? Deus me conserve minhas criancices.

"O que não tenho e desejo/É que melhor me enriquece./Tive uns dinheiros - perdi-os.../Tive amores - esqueci-os.../Mas no maior desespero/Rezei - ganhei essa prece./Vi terras da minha terra./Por outras terras andei/Mas o que ficou marcado/No meu olhar fatigado/Foram terras que inventei./Gosto muito de crianças:/Não tive um filho de meu./Um filho!.. Não foi de jeito .../Mas trago dentro do peito/Meu filho que não nasceu./Criou-me, desde eu menino/Para arquiteto meu pai./Foi-se-me um dia a saúde.../Fiz-me arquiteto? Não pude!/Sou poeta menor, perdoai!/Não faço versos de guerra./Não faço porque não sei/Mas num torpedo-suicida/Darei de bom grado a vida/Na luta em que não lutei."

Já em 1912, em Teresópolis, Bandeira contemplava um mundo desabitado, enfrentando o mistério do infinito e de Deus:

"Assim deverá ser a natureza/um dia

Quando a vida acabar e, astro/apagado, a Terra

Rodar sobre si mesma estéril/e vazia."

Espiritualmente ... minha filosofia é a de Einstein. "Minha religião - disse ele - consiste numa humilde admiração pelo espírito superior e sem limites que se revela nos menores detalhes que possamos perceber com nossos frágeis espíritos. Essa profunda convicção sentimental da presença de uma razão poderosa e superior revelando-se no incompreensível universo -eis a minha idéia de Deus." Quando li isto, disse comigo mesmo: "E exatamente o que eu sinto!" Não compreendo a negação absoluta de Deus. Como é que veio essa coisa que não começa nem acaba? Tempo infinito ... Espaço infinito ... Uma coisa absurda que, no entanto, existe!...

Não sei por que, hoje em dia, tenho pudor de fazer poemas de amor -confessa-me Bandeira, esquecido de que poeta não tem idade e que lhe é permitido ter todas - Muitas vezes, isto se reflete na minha poesia. Não digo tudo, por discreto e a muitos parece hermético. É como se não quisesse que os outros entrassem na minha confidência, no meu segredo. ("Um dia vi uma moça nuinha no banho/ Fiquei parado o coração batendo/Ela se riu/Foi meu primeiro alumbramento." ­"Teu corpo claro e perfeito/Teu corpo de maravilha/Quero possuí-lo no leito/ Estreito da redondilha..." - "No pensamento, meu amor, tu vives nua/ - Toda nua, pudica e bela, nos meus braços."

Amei, sim. Mas casar não pude. Primeiro era a saúde. Depois... Minhas finanças. Meus amores não podiam levar-me ao casamento com quinhentos mil-réis de montepio.

Não vou a Recife há mais de 30 anos. A princípio tinha vontade de ir mas não podia... Hoje ... (Bandeira fita de olhos agudos sua infância na Rua da União.) Olhe, você lembra de quando quiseram colocar meu busto na minha terra? "Homenagem a Bandeira?" - protestaram alguns. "Mas se ele nem gosta daqui! Nem vem cá!" Meu caro, o Recife é a constante de tudo o que sou. Escreveu Bandeira em Itinerário de Pasárgada: - Está aí roçando bravura a chamada geração de 45; há nela uma meia dúzia de talentos que não me toleram, nem como poeta, nem como homem. Dou-Ihes razão porque eu "positivamente não gosto de mim". Mas eles acabarão gostando; sei, por experiência própria, que, no Brasil, todo sujeito inteligente acaba gostando de mim.
Dentro de poucos dias Bandeira atinge os seus 78 anos, em plena forma intelectual. Miopia, surdez, uma certa angústia ao dormir, não lhe cortam a comunicabilidade. Ao contrário: domina-se facilmente, facilmente se refaz de tristeza ou de sombra.

Olho Bandeira e sinto que sua evocação do Recife lhe é tão cara, tão profunda, que ele mesmo ignora o medo que tem de novo encontro com aquelas ruas, aqueles caminhos, aquelas pontes e aquelas casas, o Capiberibe - Capibaribe. Seria emo­ção demais para seu coração de bom e de poeta. Mas vendo-o, neste instante, não sei quanto não daria pra ver seus olhos olhando de novo a "Rua da União" de sua meninice, fingindo não sentir aquela avalanche de ternura e saudade debruçadas na alma. Tenho a impressão de que Bandeira, gênio da nossa poesia, orgulho de todos nós, perderia o pudor que o acomete agora e choraria um pranto longo de menino que não pode mais brincar de chicote-queimado. Mas o pranto pronto lhe faria bem. E ele voltaria sonhando, novamente, o Recife dos quatro anos que se repe­tiram, sempre, nos 78 do poeta, numa dízima periódica emocional: 444444... E o nosso Bandeira, que vive arrumando suas malas para Pasárgada, deixaria esca­par, num quase sem querer, renovando sua infância, revivendo seus planos, proje­tando futuros:

"Vou-me embora pra Pasárgada

Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero

Na cama que escolherei."

- Disse o poeta - é onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar... O Recife de sua infância sempre foi, é e será a Pasárgada de Manuel Bandeira, o poeta do Brasil.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ada Ciocci, "Acalanto"

Vai amado.
Busca por onde quiseres,
com quem quiseres,
como quiseres,
o prazer.
Até mesmo,
aquele prazer que um dia alguém apelidou de amor.
E, se por acaso te cansares e,
do compromisso que um dia nos uniu te lembrares,
se desejares, volta.
Serei a que conforta.
Não saberás da dor,
da saudade,
das lágrimas sentidas que tua ausência causou.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Poema de Manuela Amaral e desenho de Carlos Leão.

"Auto de fé "

Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa

a verdadeira mulher – rival.

Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos

E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher - fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.

Pedro Alexandrino, "Natureza Morta"

Mario Quintana












"O poeta canta a si mesmo "

O poeta canta a si mesmo
porque nele é que os olhos das amadas
têm esse brilho a um tempo inocente e perverso...

O poeta canta a si mesmo
porque num seu único verso
pende - lúcida, amarga -
uma gota fugida a esse mar incessante do tempo...

Porque o seu coração é uma porta batendo
a todos os ventos do universo.

Porque além de si mesmo ele não sabe nada
ou que Deus por nascer está tentando agora
ansiosamente respirar
neste seu pobre ritmo disperso!

O poeta canta a si mesmo
porque de si mesmo é diverso.

sábado, 23 de outubro de 2010

Roberto Juarroz

Cada poema faz olvidar o anterior,
apaga a historia de todos os poemas,
apaga sua própria historia
e até apaga a história do homem
para ganhar um rosto de palavras
que o abismo não apague.

Também cada palavra do poema
faz olvidar a anterior,
se desprende um momento
do tronco multiforme da linguagem
e depois se reencontra com as outras palavras
para cumprir o rito imprescindível
de inaugurar outra linguagem.

E também cada silêncio do poema
faz olvidar o anterior,
entra na grande amnésia do poema
e vai envolvendo palavra por palavra,
até sair depois e envolver o poema
como uma capa protetora
que o preserva dos outros dizeres.

Tudo isto não é raro.
No fundo,
também cada homem faz olvidar o anterior,
faz olvidar a todos os homens.

Se nada se repete igual,
todas as coisas são últimas coisas.
Se nada se repete igual,
todas as coisas são também as primeiras.

Tradução de Gerana Damulakis.
Copiado do site http://leitoracritica.blogspot.com/

Marilyn Monroe fotografada por Sam Shaw - Setembro de 1956.

Eugénio de Andrade, "O Sorriso".



Creio que foi o sorriso,
o sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

Água-forte de Marcelo Grassmann.

Cecília Meireles, "Lamento do oficial por seu cavalo morto"

Nós merecemos a morte,
porque somos humanos
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pelo nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.

Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
os cálculos do gesto,
embora sabendo que somos irmãos.
Temos até os átomos por cúmplices, e que pecados
de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!

E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
Animal encantado - melhor que nós todos!
- que tinhas tu com este mundo
dos homens?

Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...

Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...

Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!

Yêda Schmaltz















O Desvio

A mim pouco me importa
aberta ou fechada a porta,
vou entrar.
E pouco me importa estar
sendo amada ou não amada:
vou amar.
Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!
A mim pouco me importa
se a tua amada é doente,
se a tua esperança é morta.
E me importa muito menos
se aceitas solenemente
nossa vida parca e torta.
Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.
A mim pouco me importa
se a lira quebrou a corda:
vou cantar.
E pouco me importa estar
no picadeiro do circo:
vou rodar.
Que a mim me importa tanto
eu mesma e o sentimento,
quanto!
A mim pouco me importa
se estamos todos presos
por uma invisível corda.
E me importa muito menos
sermos todos indefesos
ante o destino que corta.
Porque a mim me importaria
deixasse de ser eu mesma
e a poesia.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Di Cavalcanti, "As Cinco Moças de Guaratinguetá".

Jacinta Passos












"Eu Serei a Poesia"

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia
Quando nada mais existir. ente mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.

Lya Luft












O lado fatal

I

Quando meu amado morreu, não pude acreditar:
andei pelo quarto sozinha repetindo baixo:
"Não acredito, não acredito."
Beijei sua boca ainda morna,
acarinhei seu cabelo crespo,
tirei sua pesada aliança de prata com meu nome
e botei no dedo.
Ficou larga demais, mas mesmo assim eu uso.

II

Muita gente veio e se foi.
Olharam, me abraçaram, choraram,
todos com ar de uma incrédula orfandade.

III

Aquele de quem hoje falam e escrevem
(ou aos poucos vão-se esquecendo)
é muito menos do que este, deitado em meu coração,
meu amante e meu menino ainda.

IV

Deus
(ou foi a Morte?)
golpeou com sua pesada foice
o coração do meu amado
(não se vê a ferida, mas rasgou o meu também).
Ele abriu os olhos, com ar deslumbrado,
disse bem alto meu nome no quarto do hospital,
e partiu.

Quando se foram também os médicos e suas máquinas inúteis,
ficamos sós: a Morte (ou foi Deus?)
o meu amado e eu.
Enterrei o rosto na curva do seu ombro
como sempre fazia,
disse as palavras de amor que costumávamos trocar.
O silêncio dele era absoluto: seu coração emudecido
e o meu, varados por essa dourada foice.
Por onde vou deixo o rastro de um sangue denso e triste
que não estancará jamais.

V

Insensato eu estar aqui, e viva.
O rosto dele me contempla
vincado e triste no retrato sobre minha mesa;
em outros, sorri para mim, apaixonado e feliz.
Insensato, isso de sobreviver:
mas cá estou, na aparência inteira.

Vou à janela esperando que ele apareça
e me acene com aquele seu gesto largo e generoso,
que ao acordar esteja ao meu lado
e que ao telefone seja sempre a sua voz.

Sei e não sei que tudo isso é impossível,
que a morte é um abismo sem pontes
(ao menos por algum tempo).

Sobrevivo, mas pela insensatez.

VI

Pensei que estávamos apenas no começo:
a casa mal-e-mal nos alicerces.
Mas provavelmente estava concluída
e eu não sabia.
Tínhamos erguido em nossos poucos anos
as paredes necessárias;
o telhado se inclinava ao jeito certo,
e havia vidraças nas janelas.
(Éramos felizes ali dentro
mesmo com as tempestades de fora.)
Tudo se construiu num lapso tão curto:
até a porta de entrada, por onde ele saiu
casualmente como quem vai comprar jornal.
A porta está apenas encostada
embora pareça alta, dura, intransponível:
do lado de lá, o meu amor vê as maravilhas
que tanto nos intrigavam nesta vida.

VII

Tanto escrevi sobre a morte
em livros e poemas nesses anos:
sempre achei que a entendia um pouco.

Mas agora que ela me dilacerou a vida,
me rasgou o peito,
me levou o amado,
sinto que mal começo a compreender
sua mensagem:
tirando-o de mim, a morte o devolve
para que seja mais meu.

Dentro de mim um quebra-cabeças, e nele o meu amado.
Nem Deus o tirará daqui.

VIII

O meu amado morreu:
viver sem ele, como dói.
Não tivemos filhos juntos,
nosso passado foi tão breve que era sempre
[presente.
Um dia ele mandou fazer um par de alianças
de pesada prata, parecendo antigas;
gravou apenas nossos nomes, sem data, e disse:
"Somos um só desde sempre."
Ainda não acreditei em sua morte,
e talvez isso me salve por enquanto.
Levantar-me da cama cada dia é um ato heróico,
acender o cigarro, atender o telefone, tomar café.
Mas faço tudo isso:
falo, ando, recebo visitas.
Compro móveis para a casa onde moro sem ele,
imaginando: será que ele vai gostar?

De algum secreto lugar me vem a força
para erguer a xícara, acender o cigarro,
até sorrir quando alguém me diz:
"Você hoje está com a cara ótima",
quando penso se não doeria menos
jogar-me de um décimo-primeiro andar.

XIX

Amado meu, agora morto,
postado do lado de lá da fronteira que nos seduzia,
mudo e quedo como se não existisses:
eu sei que existes,
intensamente, ardentemente existes,
feito e desfeito no fogo de um amor maior que o nosso
mas que nos abrange.

Amado meu, morto agora e para sempre vivo,
hás de ter ainda o intenso olhar que me entendia,
as curvas amorosas da boca que chamou meu nome,
as belas, inquietas mãos que ardiam nas minhas.
Ajuda-me agora, silencioso que estás,
a suportar a sobrevida
e a decifrar esse alto, intransponível muro que me cerca.

X

Nunca tivemos filhos juntos, e ele reclamava:
"Nosso amor merecia um filho ao menos.

"Nosso filho é a minha dor de hoje,
é a fulguração que nos deixava tontos,
é o novelo da memória que teço e reteço
nas minhas insônias.

Nosso filho é o meu tempo de agora
para falar do meu amado:
da sua força e sua fragilidade,
da sua indignação e seus prantos,
da sua necessidade de ser amado e aceito
como finalmente deve estar sendo, por inteiro,
na realização de todos os seus vastos desejos.

XI

O meu amor enveredou por sua morte
como quem vai a um encontro de amor:
impaciente.
Deixou-me este coração golpeado,
esta derrota.
Mas também ficou a claridade desses anos
e a sensação de que ele finalmente
vive o encontro de amor
que toda a devoção de minha vida não lhe poderia dar.
(Um dia, celebraremos juntos.)

XII

Se me tivessem amputado braços e pernas
e furado o coração com frias facas
e cegado meus olhos com ganchos
e esfolado a minha pele como a de um podre bicho
- nada doeria mais
que te saber morto, amado meu,
depositado
nesse irremediável poço de silêncio de onde não respondes.
(A não ser em sonho, quando me olhas
e tuas mãos tocam as minhas espalmadas,
abertas, feridas, vazias.)

XIII

O meu amado morreu:
preciso viver sua morte até o fim.
Morreu sem que se instalasse entre nós cansaço e banalidade.
Talvez tenha morrido na medida certa
para nada se desgastar.
Dele me vem a dor, mas também a ternura,
a claridade que me permite ver
em todos os rostos o seu rosto
em todos os vultos o seu vulto
e ouvir em todos os silêncios
o seu inesperado riso de criança

XIV

Estranha a vida:
fico tangendo meus dias
como um rebanho de ovelhas desordenadas
nessa triste e fria cidade de Porto Alegre
onde ele gostava de estar
olhando o pôr-do-sol e vendo amigos.
"Morrer é tomar um porre de não-desejo"
dizia o meu amado, que era um homem desejoso:
desejava a vida, desejava a morte, desejava a justiça,
desejava a eternidade e a paz.

Estranha a vida:
quando releio uma frase sua,
"viver é modular a morte",
em sangue e dor preparo a minha ida.

Estranho também esse amor,
com hora marcada para a mutilação
da morte, o minuto acertado,
e o fim consultando o relógio
para nos golpear.

Estranho esse amor de agora,
com meu amado atrás de um espelho baço
onde às vezes penso divisar seu vulto
como num aquário.
Enrolado em silêncio,
mais que nunca o meu amor comanda a minha vida.

XV

Não falem alto comigo:
andem sempre na ponta dos pés.
Principalmente, não me toquem.
Finjam que não vêem se tenho um jeito absorto,
se nem sempre entendo as perguntas
com a rapidez de antigamente,
se pareço fatigada
e sem graça como nunca fui.

Façam silêncio ao meu redor.
Não me interessa nada o cotidiano nem o místico.
Não quero discutir o preço do mercado
nem os grandes mistérios da eternidade.

XVI

Levo meu amado no peito
como quem carrega nos braços para sempre
uma criança morta.

XVII

Amado meu, que tanto ensinaste
de mim a mim mesma, e do mundo
a quem o conhecia pouco:

quando se desfizer escura a noite desta perda,
quero enxergar pelos teus olhos,
amar através do teu amor
as coisas que me restaram.

Amado meu, vivo em mim para sempre,
apesar da ruga a mais
e do olhar mais triste,
devo-te isto:
voltar a amar a vida
como agora amas, inteiramente,
a tua morte.

O poema foi escrito para Hélio Pellegrino (1924-1988).

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Vinícius de Moraes









"Poética"

De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.

A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.

Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem

Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
– Meu tempo é quando.

Mário de Sá-Carneiro, "Dispersão".

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
Tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave doirada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projecto:
Se me olho a um espelho, erro -
Não me acho no que projecto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... mas recordo.

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...)

E sinto que a minha morte -
Minha dispersão total -
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas p'ra se dar...
Ninguém mas quis apertar...
Tristes mãos longas e lindas...

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em uma bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida
Eu sigo-a, mas permaneço...

.......................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba...
.......................................

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Manabu Mabe, "Rio Pinheiros"

Konstantinos Kaváfis












"Lembra, corpo"
Corpo, lembra não só quanto foste amado,
não somente os leitos em que deitaste,
mas também aqueles desejos que por ti
brilhavam nos olhos claramente,
e que tremiam na voz – e que algum
obstáculo fortuito frustrou.
Agora que tudo já está no passado,
parece, quase, que àqueles desejos também
tu te entregaste – como eles brilhavam,
lembra, nos olhos que te contemplavam;
como tremiam na voz, por ti, lembra, corpo.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

Miguel Torga, "Exortação"

Em nome do teu nome,
Que é viril,
E leal,
E limpo, na concisa brevidade
— Homem, lembra-te bem!
Sê viril,
E leal,
E limpo, na concisa condição.
Traz à compreensão
Todos os sentimentos recalcados
De que te sentes dono envergonhado;
Leva, dourado,
O sol da consciência
As íntimas funduras do teu ser,
Onde moram
Esses monstros que temes enfrentar.
Os leões da caverna só devoram
Quem os ouve rugir e se recusa a entrar.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Dario Mecatti, "Mediterrâneo".

Hilda Hilst, "É crua a vida ..."

É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livor da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha plúmbea, meu casaco rosso.
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d'água, bebida. A Vida é líquida.

Donizete Galvão, "O grito".

O porco guincha
e sob a pata dianteira
sai a golfada de sangue
que enche a bacia.

Horas depois,
pronto o chouriço,
comemos o sangue preto,
as tripas, o grito.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Volpi, "Bandeiras e Mastros"

Mário de Andrade, "Quarenta Anos".

A vida é para mim, está se vendo,
Uma felicidade sem repouso;
Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo
Disso, persisto em me enganar... Eu ouso
Dizer que a vida foi o bem precioso
Que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,
Que me sinto completo e além da sorte,
Me agarrar a esta vida fementida *.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
Oh sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

* Fementida  - Adj.: Infiel, dolosa, enganosa, pérfida.

José Paulo Paes, "Madrigal".

Meu amor é simples, Dora,
Como a água e o pão.

Como o céu refletido
Nas pupilas de um cão.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Manoel Santiago, "Ilha do Governador".

Ferreira Gullar














"Praia do Caju"

 Escuta:
o que passou passou
e não há força
capaz de mudar isto.

Nesta tarde de férias, disponível, podes,
se quiseres, relembrar.
Mas nada acenderá de novo
o lume
que na carne das horas se perdeu.

Ah, se perdeu!
Nas águas da piscina se perdeu
sob as folhas da tarde
nas vozes conversando na varanda
no riso de Marília no vermelho
guarda-sol esquecido na calçada.

O que passou passou e, muito embora,
voltas às velhas ruas à procura.
Aqui estão as casas, a amarela,
a branca, a de azulejo, e o sol
que nelas bate é o mesmo
sol
que o Universo não mudou nestes vinte anos.

Caminhas no passado e no presente.
Aquela porta, o batente de pedra,
o cimento da calçada, até a falha do cimento. Não sabes já
se lembras, se descobres.
E com surpresa vês o poste, o muro,
a esquina, o gato na janela,
em soluços quase te perguntas
onde está o menino
igual àquele que cruza a rua agora,
franzino assim, moreno assim.
                    Se tudo continua, a porta
a calçada a platibanda,
onde está o menino que também
aqui esteve? aqui nesta calçada
se sentou?

E chegas à amurada. O sol é quente
como era, a esta hora. Lá embaixo
a lama fede igual, a poça de água negra
a mesma água o mesmo
urubu pousado ao lado a mesma
lata velha que enferruja.
Entre dois braços d’água
esplende, a croa do Anil. E na intensa
claridade, como sombra,
surge o menino
correndo sobre a areia. É ele, sim,
gritas teu nome: “Zeca,
Zeca!”
                    Mas a distância é vasta
tão vasta que nenhuma voz alcança.

O que passou passou.
Jamais acenderás de novo
o lume
do tempo que apagou.

domingo, 10 de outubro de 2010

Cesário Verde, "Contrariedades"



Eu hoje estou cruel, frenético, exigente;
Nem posso tolerar os livros mais bizarros.
Incrível! Já fumei três maços de cigarros
Consecutivamente.

Dói-me a cabeça. Abafo uns desesperos mudos:
Tanta depravação nos usos, nos costumes!
Amo, insensatamente, os ácidos, os gumes
E os ângulos agudos.

Sentei-me à secretária. Ali defronte mora
Uma infeliz, sem peito, os dois pulmões doentes;
Sofre de falta de ar, morreram-lhe os parentes
E engoma para fora.

Pobre esqueleto branco entre as nevadas roupas!
Tão lívida! O doutor deixou-a. Mortifica.
Lidando sempre! E deve conta à botica!
Mal ganha para sopas...

O obstáculo estimula, torna-nos perversos;
Agora sinto-me eu cheio de raivas frias,
Por causa dum jornal me rejeitar, há dias,
Um folhetim de versos.

Que mau humor! Rasguei uma epopéia morta
No fundo da gaveta. O que produz o estudo?
Mais uma redacção, das que elogiam tudo,
Me tem fechado a porta.

A crítica segundo o método de Taine
Ignoram-na. Juntei numa fogueira imensa
Muitíssimos papéis inéditos. A Imprensa
Vale um desdém solene.

Com raras excepções, merece-me o epigrama.
Deu meia-noite; e a paz pela calçada abaixo,
Um sol-e-dó. Chovisca. O populacho
Diverte-se na lama.

Eu nunca dediquei poema às fortunas,
Mas sim, por deferência, a amigos ou a artistas.
Independente! Só por isso os jornalistas
Me negam as colunas.

Receiam que o assinante ingênuo os abandone,
Se forem publicar tais coisas, tais autores.
Arte? Não lhes convém, visto que os seus leitores
Deliram por Zaconne.

Um prosador qualquer desfruta fama honrosa,
Obtém dinheiro, arranja a sua "coterie";
E a mim, não há questão que mais me contrarie
Do que escrever em prosa.

A adulação repugna aos sentimentos finos;
Eu raramente falo aos nossos literatos,
E apuro-me em lançar originais e exactos,
Os meus alexandrinos...

E a tísica? Fechada, e com o ferro aceso!
Ignora que a asfixia a combustão das brasas,
Não foge do estendal que lhe humedece as casas,
E fina-se ao desprezo!

Mantém-se a chá e pão! Antes entrar na cova.
Esvai-se; e todavia, à tarde, fracamente,
Oiço-a cantarolar uma canção plangente
Duma opereta nova!

Perfeitamente. Vou findar sem azedume.
Quem sabe se depois, eu rico e noutros climas,
Conseguirei reler essas antigas rimas,
Impressas em volume?

Nas letras eu conheço um campo de manobras;
Emprega-se a "reclame", a intriga, o anúncio, a "blague",
E esta poesia pede um editor que pague
Todas as minhas obras...

E estou melhor; passou-me a cólera. E a vizinha?
A pobre engomadeira ir-se-á deitar sem ceia?
Vejo-lhe a luz no quarto. Inda trabalha. É feia...
Que mundo! Coitadinha!

sábado, 9 de outubro de 2010

Schubert, "A Morte e a Donzela", 2 º Movimento, Andante con Moto, Parte I e II, The Alban Berg Quartet,

Parte II



Parte I

Água-forte de Hans Steiner, "A Figueira Branca".

Luís Miguel Nava, "Vulcão".

Aqui, onde a mão não
alcança o interruptor da vida, aqui
só brilha a solidão.
Desfazem-se as lembranças contra os vidros.

Aqui, onde a brancura
dum lenço é a brancura do infortúnio,

aqui a solidão
não brilha, apenas
se estorce.
A fome fala através das feridas.

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Julia Galego

















 "Azinhagas"

Atrás da casa havia uma azinhaga.

No Inverno, as pedras soltas de granito dos muros
cobriam-se de musgo, de fetos
e de uma planta de folhas peltadas e carnudas
a que chamávamos filhós,
por se assemelharem aos tradicionais fritos de massa,
próprios da época do Natal.

Nalguns pontos dos muros,
cavalgavam silvas que,
no Verão,
nos proporcionavam a colheita das deliciosas amoras.

Provavelmente essa azinhaga já não existe,
engolida pelo alastramento da área urbana.

Lembro-me dela sempre que encontro outras azinhagas.

* Azinhagas em Portugal são caminhos estreitos entre muros ou cercas de varas entrelaçadas, fora do povoado.

sábado, 25 de setembro de 2010

Di Cavalcante, "Bordel".

João Cabral de Melo Neto, "Difícil ser funcionário".

Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas
E outros não-fazeres.

É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.

Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tampouco estas palavras -
Funcionárias, sem amor.

Carlos, há uma máquina
que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulo para todos
Os tamanhos de meu corpo.

Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança.

Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar...
Fazer seu nojo meu...

Carlos, dessa maneira
Como colher a flor?
Eu te telefono, Carlos,
Pedindo conselho.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Mário Quintana, "As Ruazinhas".

Eu amo de um amor que jamais saberei expressar
Essas pequenas ruas com suas casas de porta e janela,
Ruas tão nuas
Que os lampiões fazem às vezes de álamos,
com toda a vibratilidade dos álamos, petrificada nos troncos
                                                                                        [imóveis de ferro,
Ruas que me parecem tão distantes
E tão perto
A um tempo
Que eu as olho numa triste saudade de quem já tivesse morrido.
Ruas como as que a gente vê em certos quadros,
Em certos filmes:
Meu Deus, aquele reflexo, à noite, nas pedras irregulares
                                                                                        [do calçamento,
Ou a ensolarada miséria daquele muro a perder o reboco...
Para que eu vos ame tanto
Assim,
Minhas ruazinhas de encanto e desencanto,
É que expressais alguma coisa minha...
Só para mim!

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Toraji Ishikawa, "Xilo "Mulher e cão".

Goeldi, "Tarde".

Drummond, "Balada do amor através das idades".

Eu te gosto, você me gosta
desde tempos imemoriais.
Eu era grego, você troiana,
troiana mas não Helena.
Saí do cavalo de pau
para matar seu irmão.
Matei, brigamos, morremos.
Virei soldado romano,
perseguidor de cristãos.
Na porta da catacumba
encontrei-te novamente.
Mas quando vi você nua
caída na areia do circo
e o leão que vinha vindo,
dei um pulo desesperado
e o leão comeu nós dois.

Depois fui pirata mouro,
flagelo da Tripolitânia.
Toquei fogo na fragata
onde você se escondia
da fúria de meu bergantim.
Mas quando ia te pegar
e te fazer minha escrava,
você fez o sinal-da-cruz
e rasgou o peito a punhal.
Me suicidei também.

Depois (tempos mais amenos)
fui cortesão de Versailles,
espirituoso e devasso.
Você cismou de ser freira.
Pulei o muro do convento
mas complicações políticas
nos levaram à guilhotina.

Hoje sou moço moderno,
remo, pulo, danço, boxo,
tenho dinheiro no banco.
Você é uma loura notável
boxa, dança, pula, rema.
Seu pai é que não faz gosto.
Mas depois de mil peripécias,
eu, herói da Paramount,
te abraço, beijo e casamos.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Lya Luft, "Cancão na plenitude".

Não tenho mais os olhos de menina
nem corpo adolescente, e a pele
translúcida há muito se manchou.
Há rugas onde havia sedas, sou uma estrutura
agrandada pelos anos e o peso dos fardos
bons ou ruins.
(Carreguei muitos com gosto e alguns com rebeldia.)

O que te posso dar é mais que tudo
o que perdi: dou-te os meus ganhos.
A maturidade que consegue rir
quando em outros tempos choraria,
busca te agradar
quando antigamente quereria
apenas ser amada.
Posso dar-te muito mais do que beleza
e juventude agora: esses dourados anos
me ensinaram a amar melhor, com mais paciência
e não menos ardor, a entender-te
se precisas, a aguardar-te quando vais,
a dar-te regaço de amante e colo de amiga,
e sobretudo força — que vem do aprendizado.
Isso posso te dar: um mar antigo e confiável
cujas marés — mesmo se fogem — retornam,
cujas correntes ocultas não levam destroços
mas o sonho interminável das sereias.

Copiado do site http://bellelage.blogspot.com/

Almeida Júnior, "Moça com Livro".

Paulo Henriques Britto, "Epílogo".

Finda a leitura, o livro está completo
em sua solidão mais-que-perfeita
de couro falso e íntimo papel.

Lá fora, o mundo segue, arquitetando
as mesmas contingências costumeiras
que nunca esbarram numa irrefutável

conclusão que se possa resumir
em três letras letais, inalienáveis.
Que paz será possível nessa selva

sem índices, prefácios, rodapés?
indaga, da estante mais excelsa,
o livro. Porém, nada disso importa,

se todas as dúvidas se dissipam,
com tudo mais, quando o bibliotecário
apaga as luzes, sai e tranca a porta.

Copiado do site http://leonorcordeiro.blogspot.com/

domingo, 19 de setembro de 2010

Luís Miguel Nava, "Paixão".

Ficávamos no quarto até anoitecer, ao conseguirmos
situar num mesmo poema o coração e a pele quase podíamos
erguer entre eles uma parede e abrir
depois caminho à água.

Quem pelo seu sorriso então se aventurasse achar-se-ia
de súbito em profundas minas, a memória
das suas mais longuínquas galerias
extrai aquilo de que é feito o coração.

Ficávamos no quarto, onde por vezes
o mar vinha irromper. É sem dúvida em dias de maior
paixão que pelo coração se chega à pele.
Não há então entre eles nenhum desnível.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Ismael Nery, "Mulheres"

Bertold Brecht, "A minha mãe"

Quando ela acabou, foi colocada na terra
Flores nascem, borboletas esvoejam por cima...
Leve, ela não fez pressão sobre a terra
Quanta dor foi preciso para que ficasse tão
                                                                        leve!

Tradução de Paulo César de Souza.
Copiado do site http://antoniocicero.blogspot.com/.



quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cecília Meireles, "Tu tens um medo"

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo dia.
No amor.
Na tristeza
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.
Não ames como os homens amam.
Não ames com amor.
Ama sem amor.
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosses outro.
Como se fosses amar.
Sem esperar.
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...
Não faças de ti
Um sonho a realizar.
Vai.
Sem caminho marcado.
Tu és o de todos os caminhos.
Sê apenas uma presença.
Invisível presença silenciosa.
Todas as coisas esperam a luz,
Sem dizerem que a esperam.
Sem saberem que existe.
Todas as coisas esperarão por ti,
Sem te falarem.
Sem lhes falares.
Sê o que renuncia
Altamente:
Sem tristeza da tua renúncia!
Sem orgulho da tua renúncia!
Abre as tuas mãos sobre o infinito.
E não deixes ficar de ti
Nem esse último gesto!
O que tu viste amargo,
Doloroso,
Difícil,
O que tu viste inútil
Foi o que viram os teus olhos
Humanos,
Esquecidos...
Enganados...
No momento da tua renúncia
Estende sobre a vida
Os teus olhos
E tu verás o que vias:
Mas tu verás melhor...
... E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que é eterno.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Inocêncio Borghese, "Beira Mar"

Ferreira Gullar, "Meu povo, Meu poema"

Meu povo e meu poema crescem juntos
como cresce no fruto
a árvore nova.

No povo meu poema vai nascendo
como no canavial
nasce verde o açúcar.

No povo meu poema está maduro
como o sol
na garganta do futuro.

Meu povo em meu poema
se reflete
como a espiga se funde em terra fértil.

Ao povo seu poema aqui devolvo
menos como quem canta
do que planta.

domingo, 29 de agosto de 2010

Cecília Meireles, "Epigrama nº 5"

Gosto da gota d'água que se equilibra
na folha rasa, tremendo ao vento.

Todo o universo, no oceano do ar, secreto vibra:
e ela resiste, no isolamento.

Seu cristal simples reprime a forma, no instante incerto:
pronto a cair, pronto a ficar - límpido e exato.

E a folha é um pequeno deserto
para a imensidade do ato.

sábado, 21 de agosto de 2010

Adam Gyorgy, "Gnomenreigen (Dança dos Gnomos), de Franz Liszt.

Guilherme de Faria, " Alma Welt e Jonas".


Paulo Henriques Britto













"Mínima Poética"

Dizer não tudo, que isso não se faz,
nem nada, o que seria impossível;
dizer apenas tudo que é demais
pra se calar e menos que indizível.
Dizer apenas o que não dizer
seria uma espécie de mentira:
falar, não por falar, mas pra viver,
falar (ou escrever) como quem respira.
Dizer apenas o que não repita
a textura do mundo esvaziado:
escrever, sim, mas escrever com tinta;
pintar, mas não como aquele que pinta
de branco o muro que já foi caiado;
escrever, sim, mas como quem grafita.

Cassiano Ricardo, "Depois de Tudo"

Mas tudo passou tão depressa
Não consigo dormir agora.
Nunca o silêncio gritou tanto
Nas ruas da minha memória.
Como agarrar líquido o tempo
Que pelos vãos dos dedos flui?
Meu coração é hoje um pássaro
Pousado na árvore que eu fui.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Drummond, "Boitempo"

Concordo quando boa parte da crítica diz que os melhores livros de Drummond são "O Sentimento do Mundo", "A Rosa do Povo" e "Claro Enigma".
Porém, agora, afastado de tudo por um problema de saúde, eu me entreguei ao "Boitempo".
E fiquei apaixonado.

É como uma biografia sentimental construída com fragmentos da memória.
É o Drummond rural e suas reminiscências, quase mitologias.
E não é o funcionário público Drummond lembrando de Minas no Rio de Janeiro, mas é o menino e o jovem Drummond lá em Itabira, em Belo Horizonte e em Friburgo, observando, aprendendo o mundo, e tentando entendê-lo, malgrado o peso do catolicismo e do patriarcalismo de uma sociedade muito tradicional, e ainda marcada pela monarquia e pela escravidão.

O título - BOITEMPO - é um neologismo com um achado poético complexo; - boi - já o remete à infância rural do poeta, e à passividade do animal condenado ao matadouro, enquanto que a terminação - tempo - dá a idéia de movimento, continuidade.

Alguns poemas têm vida própria, mas, em geral, por serem uma sucessão de antigos episódios da família e da sociedade que deixaram marcas na infância e adolescência do autor são melhor saboreados no seu conjunto. A princípio, dão uma enganosa impressão de descuido e falta de burilamento, mas depois compreende-se que não se pode burilar a vida realmente vivida, e, lentamente, seu mineiríssimo encanto vai nos transbordando de poesia.

Em alguns deles, Drummond utiliza palavras e expressões arcaicas que nos obrigam a recorrer ao dicionário, e a maioria tem uma sintaxe bastante coloquial, quase de conversa fiada (lembrando a escrita de Guimarães Rosa), como se estivesse nos contado alguns casos. Ou melhor, "causos".

A seguir, farei uma antologia dos que mais gostei, que irei completando com o tempo.



CUIDADO

A porta cerrada não abras.
Pode ser que encontres
o que não buscavas nem esperavas.
Na escuridão pode ser que
esbarres no casal
em pé tentando se amar
apressadamente.

Pode ser que
a vela que trazes na
mão te revele,
trêmula tua escrava nova,
teu dono-marido.

Descuidosa,
a porta apenas cerrada pode
te contar conto que
não queres saber.

BOITEMPO

Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.

MANCHA

Na escada a mancha vermelha
que gerações seqüentes em vão
tentam tirar.

Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.

E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?

Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.

PRIVILÉGIO

Chicote
de cabo de prata
lavrada
chicote
de status
não fica entre os outros
de couro e madeira
plebeus.
É guardado à parte
zelado ao jeito
dos bens de família.
Não risca no flanco
de qualquer animal.
Reserva-se todo
para uso exclusivo
da mulher fazendeira.
O fino cavalo branco
recebe orgulhoso
a chicotada argêntea
de mão feminina.

NOMES

As bestas chamam-se Andorinha, Neblina
ou Baronesa, Marquesa, Princesa.
Esta é Sereia,
aquela, Pelintra,
e tem a bela Estrela.
Relógio, Soberbo e Lambari são burros.
O cavalo, simplesmente Majestade.
O boi, Besouro,
outro, Beija-flôr,
e Pintassilgo, Camarão,
Bordado.
Tem mesmo o boi chamado Labirinto.
Ciganinha, esta vaca; outra, Redonda.
Assim pastam os nomes pelo campo,
ligados à criação. Todo animal
é mágico.

MULINHA

A mulinha carregada de latões
vem cedo para a cidade
vagamente assistida pelo leiteiro.
Para a porta dos fregueses
sem necessidade de palavra
ou de chicote.
Aos pobres serve de relógio.
Só não entrega ela mesma a cada um o seu litro de leite
para não desmoralizar o leiteiro.

Sua cor é sem cor.
Seu andar, o andar de todas as mulas de Minas.
Não tem idade - vem de sempre e de antes -
nem nome: é a mulinha do leite.
É o leite cumprindo ordem do pasto.

O BELO BOI DE CANTAGALO

Por trás da bossa do cupim
a cobra espreita
o belo boi de Cantagalo
trazido com que sacrifício
de longas léguas a pé e lama
para inaugurar novo rebanho
dos sonhos zebus do Coronel.

Por trás da bossa do cupim
a cobra, cipó inerte,
medita cálculo e estratégia
e o belo boi de Cantagalo
mal sente, sob o céu de Minas,
chegar o segundo relâmpago
em que o cipó se alteia, se arremessa
e fere e se enrodilha e aperta
e aperta mais, aperta sempre
e mata.

Já não cobrirá as doces vacas
ao seu destino reservadas
o belo boi de Cantagalo,
e queda ali,
monumento desmantelado.
A bossa jaz ao lado da outra bossa,
no imóvel sol do meio dia.

ANTOLOGIA

Guardo na boca os sabores
da gabiroba e do jambo,
cor e fragrância do mato,
colhidos no pé. Distintos.
Araticum, araçá,
ananás, bacupari,
jatobá... todos reunidos,
congresso verde no mato,
e cada qual separado,
cada fruta, cada gosto
no sentimento composto
das frutas todas do mato
que levo na minha boca
tal qual me levasse o mato.

DEPÓSITO

Há uma loja no sobrado
onde não há comerciante.
Há trastes partidos na loja
para não serem consertados.
Tamborete, marquesa, catre
aqui jogados em outro século,
esquecidos de humano corpo.
Selins, caçambas, embornais,
cangalhas
de uma tropa que não trilha mais
nenhuma estrada do Rio Doce.
A perna de arame do avô
baleado na eleição da Câmara.
E uma ocarina sem Pastor Fido
que à aranha não interessa tocar,
enorme aranha negra, proprietária
da loja fechada.

RECINTO DEFESO

Por trás da porta hermética
a sala de visitas
espera longamente
visitas.

O sofá recusa
traseiros vulgares.

As escarradeiras
querem cuspe fino.

Ai, espelho nobre
não miras qualquer.

Assim tão selada,
cheirando a santuário,
por que me negas, sala,
teu luxo ?

Por favor, visitas,
vinde, vinde rápido
para que eu também visite
a sala de visitas !

TRÊS GARRAFAS DE CRISTAL

Na sombra da copa, as garrafas
escondem sua cintilação.
Esperam jantares de família
que nunca se realizarão.

A verde-clara, a rósea, a que refrange
todos os tons da transparência,
sem vinho que as anime, calam
o menor tinido de existência.

Cristais letárgicos, como as belas
nos bosques, e as jóias nas malas,
antiquários ainda não nasceram
que virão um dia buscá-las.

TRÊS COMPOTEIRAS

Quero três compoteiras
de três cores distintas
que sob o sol acendam
três fogueiras distintas.

Não é para pôr doce
em nenhuma das três.
Passou a hora de doce,
não a das compoteiras,
e quero todas três.

É para pôr o sol
em igual tempo e ângulo
nas cores diferentes.
É para ver o sol
lavrando no bisel
reflexos diferentes.

Mas onde as compoteiras?
Acaso se quebraram?
Não resta nem um caco
de cada uma? Os cacos
ainda me serviam
se fossem três, das três.

Outras quaisquer não servem
a minha experiência.
O sol é o sol de todos
mas os cristais são únicos,
os sons também são únicos
se bato em cada cor
uma pancada única.

Essas três compoteiras,
revejo-as alinhadas
tinindo retinindo
e varadas de sol
mesmo apagado o sol,
mesmo sem compoteiras,
mesmo sem mim a vê-las,
na hora toda sol
em que me fascinaram.

O VINHO

O vinho à mesa, liturgia.

Respeito silencioso
paira sobre a toalha.
A garrafa espera o gesto,
o saca-rolha espera
o gesto que há de ser lento e ritual.

Ergue-se o pai, grão sacerdote
e prende a garrafa entre os joelhos,
gira regira a espira metálica
até o coração do gargalo.
Não faz esforço,
não enviesa,
não rompe a rolha.
É grave, simples,
de velha norma.

Nítido espoca
o ar libertado.
O vinho escorre
sereno, distribuindo-se
em porções convenientes:
copo cheio, os grandes;
a gente, dois dedos.

Bebe o pai primeiro.
Assume a responsabilidade
sacra.
Já podemos todos
saber que o vinho é bom
e piamente degustá-lo.

Mas quem diz que bebo solene ?
Meu pensamento é o saca-rolha,
o sonho de abrir a barrafa
como ele - só ele - abre.

A roxa mácula no linho,
pecado capital.
Esse menino
não aprende nunca a beber vinho ?
(Quero é aprender a abrir o vinho
e nem mesmo posso aspirar
ao direito de abrir o vinho
que incumbe ao pai e a mais ninguém
em nossa antiga religião).

ESTOJO DE COSTURA

Tesouro da vista.
Não apenas alfinetes
de bolinha colorida na ponta.
Há os alfinetes voadores,
mágicos, de pombas
na cabecinha.
Não duvido nada que eles adejem
no quarto vazio.
“Vamos dar uma volta? – os alfinetes se dizem –
até o beiral da igreja, e voltamos.”
“Não. O céu está cinzento,
o meu azul empalideceria.”
“Ora,ora...”
Saem voando. Ninguém percebe
as pombas minúsculas no espaço.
Mamãe entra no quarto,
revolve o estojo de costura:
“Você andou mexendo em minhas coisas, menino?"

COPO D'ÁGUA NO SERENO

O copo no peitoril
convoca os eflúvios da noite.

Vem o frio nevoso
da serra.
Vêm os perfumes brandos
do mato dormindo.
Vem o gosto delicado
da brisa.

E pousam na água.

CANTO DE SOMBRA

O canto de sombra e umidade no quintal.
Do muro de pedra escorre o fio d’água,
manso, no verde limoso, eternamente.
Uma gota e outra gota, no silêncio
onde só as formigas trabalham
e dorme um gato e dorme o futuro das coisas
que doerão em mim, desprevenido.
Crescem, rasteiras, as plantas sem pretensão
de utilidade ou beleza.
Tudo simples. Anônimo.
O sol é um ouro breve. A paz existe
na lata abandonada de conserva
e no mundo.

BRINCAR NA RUA

Tarde?
O dia dura menos que um dia.
O corpo ainda não parou de brincar
e já estão chamando da janela:
É tarde.

Ouço sempre este som: é tarde, tarde.
A noite chega de manhã?
Só existe a noite e seu sereno?

O mundo não é mais, depois das cinco?
É tarde.
A sombra me proíbe.
Amanhã, mesma coisa.
Sempre tarde antes de ser tarde.

LIQUIDAÇÃO

A casa foi vendida com todas as lembranças
todos os móveis todos os pesadelos
todos os pecados cometidos ou em vias de cometer
a casa foi vendida com seu bater de portas
com seu vento encanado sua vista do mundo
                seus imponderáveis
                por vinte, vinte contos.

ESCRITURAS DO PAI

Cada filho e sua conta,
em cada conta seu débito
que um dia tem de ser pago.
A morte cobrando dívidas
de que ninguém se lembrava,
mas no livro de escrituras,
vermelha, a dívida estava.
São as despesas da vida
em algarismos cifrados.
Estarás sempre devendo
tudo quanto te foi dado
e nem pagando até o fim
o menor vintém de amor
jamais te verás quitado,
pois no livro das escrituras
- capital, juros e mora -
teu débito está gravado.

IRMÃO, IRMÃOS

Cada irmão é diferente.
Sozinho acoplado a outros sozinhos.
A linguagem sobe escadas, do mais moço,
ao mais velho e seu castelo de importância.
A linguagem desce escadas, do mais velho
ao mísero caçula.

São seis ou são seiscentas
distâncias que se cruzam, se dilatam
no gesto, no calar, no pensamento?
Que léguas de um a outro irmão.
Entretanto, o campo aberto,
os mesmos copos,
o mesmo vinhático das camas iguais.
A casa é a mesma. Igual,
vista por olhos diferentes?

São estranhos próximos, atentos
à área de domínio, indevassáveis.
Guardar o seu segredo, sua alma,
seus objectos de toalete. Ninguém ouse
indevida cópia de outra vida.

Ser irmão é ser o quê? Uma presença
a decifrar mais tarde, com saudade?
Com saudade de quê? De uma pueril
vontade de ser irmão futuro, antigo e sempre?

REVOLTA

Não quero este pão — Quinquim atira
o pão no chão.

A mesa vira vidro, transparente
de emoção.
Quem ousa fazer isso em pleno almoço?
Pede castigo
o pão jogado ao chão.

O Castigador decreta:
Agora de joelhos você vai
apanhar este pão.
Vai trazer um barbante e amarrar
o pão no seu pescoço
e vai ficar o dia todo
de pão no peito, expiação.

Quinquim perdeu a força da revolta.
Apanha o pão, amarra o pão
no pescoço humilhado
e ostenta o dia todo
a condecoração.

O BEIJO

Mandamento: beijar a mão do Pai
às 7 da manhã, antes do café
e pedir a bênção
e tornar a pedir
na hora de dormir.

Mandamento: beijar
a mão divino-humana
que empunha a rédea universal
e determina o futuro.
Se não beijar, o dia
não há de ser o dia prometido,
a festa multimaginada,
mas a queda — tibum — no precipício
de jacarés e crimes
que espreita, goela escancarada.

Olha o caso de Nô.
Cresce demais, vira estudante
de altas letras, no Rio de outras normas.
Volta, não beija o Pai
na mão. A mão procura
a boca, dá-lhe um tapa,
maneira dura de beijar
o filho que não beija a mão sequiosa
de carinho, gravado
nas tábuas da lei mineira de família.

Que é isso? Nô sangra na alma,
a boca dói que dói
é lá dentro, na alma. O dia, a noite,
a fuga para onde? Foge Nô
no breu do não-saber, sem rumo, foge
de si mesmo, consigo,
e não tem saída
a não ser voltar,
voltar sem chamado,
para junto da mão
que espera seu beijo
na mais pura exigência
de terroramor.

Olha o caso de Nô.
7 da manhã.
Antes do café.

NOVA CASA DE JOSÉ

José entra resmungando no Paraíso.
Lança os olhos em torno:
-- Pensei que fosse maior.
O azul das paredes está desbotado.
Então é isto, o Céu?

Os anjos entreolham-se: Ah, José!
Estávamos tão contentes com sua vinda...
José procura o recanto menos luminoso
para encastelar-se com sua canastra:
-- Ninguém me bula nisto.
O serafim-ecônomo sorri:
-- Sossegue, José. Aqui todas as coisas
viram essência.
Você terá a essência de sua canastra.

A taciturnidade de José causa espécie aos velhos santos
que pulam carniça, brincam de roda:
-- Não quer vir conosco? A amarelinha
vai ser uma coisa louca...
Leve aceno de cabeça e: -- Obrigado
(entre dentes) é resposta de José.

São Pedro coça a barba: como fazer
José sentir-se realmente no Paraíso?
É sua casa natural, José foi bom,
foi ríspido mas bom.
Carece varrer do íntimo de José as turvas imagens
de desconfiança e solidão.
-- Não há outro remédio, suspira São Pedro.
Vou contar-lhe uma piada fescenina.

E José sorri ouvindo a piada.

O PREPARADO

Por que morreu aquele irmão
que há pouco brincava no quarto
sem qualquer signo na testa ?

Há pouco brincava no quarto.

Foi só tempo de arder em febre
e de o doutor lhe receitar
um preparado que não havia.

O preparado que não havia.

A longa espera da encomenda
pelo correio, e quando veio
em lombo de burro, no chouto,

a morte beijara o menino.
Sá Maria diz que é o destino.

CONVERSA

Há sempre uma fazenda na conversa
bois pastando na sala de visitas
divisas disputadas, cercas a fazer
porcos a cevar
a bateção dos pastos
a pisadura da égua
de testa — e vejo o céu — testa estrelada.

Há sempre
uma família na conversa.
A família é toda a história: primos
desde os primeiros degredados
filhos de Eva
até Quinquim Sô Lu Janjão Tatau
Nonô Tavinho Ziza Zito
e tios, tios-avós de tão barbado-brancos
tão seculares, que são árvores.
Seus passos arrastam folhas. Ninhos
na moita do bigode. Aqui presentes
avós há muito falecidos. Mas falecem
deveras os avós?
Alguém desta clã é bobo de morrer?
A conversa o restaura e faz eterno.

Há sempre uma fazenda, uma família
entreliçadas na conversa:
a mula & o muladeiro
o casamento, o cocho, a herança, o dote, a aguada
o poder, o brasão, o vasto isolamento
da terra, dos parentes sobre a terra.

A NOTÍCIA

Ambrósio Lopes, que fez Ambrósio Lopes ?
Matou-se.
Pior é que não se matou com faca rápida.
mas com lâmina indecisa.
Leva uma semana agonizando
em algum sobrado, longe.

A notícia chega em telegrama verde:
Ambrósio está nas últimas.
Vamos todos visitar sua mulher e filhos
que esperam na sala e telegrama definitivo.

Quando vem a morte ?
Até amanhã resiste Ambrósio Lopes ?
Serve-se café com biscoito.
Conversa-se.

A espera, toda espera é eternidade.
Os assuntos viram polvilho mastigado,
resto de açucar na xícara.

Chega afinal o mensageiro trágico.
Explode um grito, pranto em coro.
Abraçamo-nos todos, e derramo
também minhas lágrimas de visita.

Por entre o nevoeiro vejo a mulher de Ambrósio Lopes
marmorizar-se viúva, estátua
de véu-negrume para sempre.
Os filhos de Anbrósio Lopes adquirem num segundo
caras despedaçadas de órfãos.

Eu mesmo, orfandade a viuvez nas entranhas,
assumo completamente
o suicídio a faca de Ambrósio Lopes.

IMPORTÂNCIA DA ESCOVA

Gente grande não sai à rua,
menino não sai à rua
sem escovar bem a roupa.
Ninguém fora se escandalize
descobrindo farrapo vil
em nossa calça ou paletó.

Questão de honra, de brasão.
Ninguém sussurre:
A família está decadente?
A escova perdeu os pêlos?
A fortuna do Coronel
não dá pra comprar escova?

Toda invisível poeirinha
ameaça-nos a reputação.
Por isso a mãe, sábia, serena,
sabendo que sempre esqueço
ou mesmo escondo, impaciente,
esse objeto sem fascínio,
me inspeciona, me declara
mal preparado para o encontro
com o olho crítico da cidade.

E firme, religiosamente,
vai-me passando, repassando
nos ombros, nas costas, no peito, nas pernas
na alma talvez (bem que precisava)
a escova purificadora.

REPOUSO DO TEMPLO

Não se enterram a céu aberto.
O cemitério não lhes convém.
Ficam sob o chão da sacristia da matriz
ou, distinção especial, ao pé dos altares da capela-mor.
Aí estão mais perto de Deus,
e mesmo não se rezando especialmente por eles,
a reza geral penetra o mármore e a madeira,
embalsama-lhes os ossos dissolvidos,
o pó restante, ou nem isso: o lugar
apenas, debaixo do nome.

São privilégios deante do Senhor.
Não é qualquer família que o consegue.
As luzes, o incenso, a melopédia gregoriana
confortam lá embaixo uma ausência importante de corpo.

A NOVA PRIMAVERA

As tias vestem pesadas armaduras
de morte e gorgorão. Desde o pescoço
à inviolada ponta dos borzeguins, elas proclamam
rompimento com o século. E nada mais existe
senão a noite dos maridos estampada
em cada gesto da soberba solidão.
Assim as queremos para sempre novamente
virgens, reintegradas na pureza original.
Ai de quem boqueje: As tias são mulheres
sujeitas à lei terrestre do desejo,
e em noites brancas lutam corpo a corpo com duendes.

Uma tia, porém, olvida o mandamento
e casa-se outra vez. O raio na família.
Ela é toda jardim, é pura amendoeira
na alegre doação de outra virgindade.

A família decide: essa tia morreu.

AQUELE RAIO

Aquele raio
não era para cair no túmulo orgulhoso
do grão senhor de terras e da tribo.
Devia ser talvez endereçado
à campa de algum pobre pecador
sem glória de família.
Escolher logo esta, romper-lhe a inscrição
debprantos esculpidos com tamanho capricho,
e criar, irisão, essa frase confusa
em que fama e fazenda já não brilham, estelares,
e castigo, talvez de culpas não sabidas,
sepultadas mais que os ossos venerandos.
Sepultadas lá onde o sangue se forma,
onde a prima semente esboçou um caráter,
uma forma de rosto, um vinco de soberba
que rói esta linhagem e agora se dissolve
em rachaduras cruéis de pedra esborcinada.

SIGNO

Fugias do escorpião
lá no quarto de guardados
como quem foge do Cão
sem perceber que o trazias
desde o primeiro vagido
oculto em teu coração.
E por onde quer que fosses,
julgando que te guiavas,
era dele a direção,
e tudo que amas, iluso
de uma ilusória opção,
é ele que te sugere,
te comanda, sorrateiro,
com seu veneno e ferrão,
de tal sorte que, mordido
e mordente, na aflição,
de nada valeu, confessa,
fugires de escorpião.

O PADRE PASSA NA RUA

Beijo a mão do Padre
a mão de Deus
a mão do céu
beijo a mão do medo
de ir para o inferno
o perdão
de meus pecados passados e futuros
a garantia de salvação
quando o padre passa na rua
e meu destino passa com ele
negro
sinistro
irretratável
se eu não beijar a sua mão.

CHEIRO DE COURO

Em casa, na cidade,
vivo o couro
a presença do couro
o couro dos arreios
dos alforjes
das botas
das botinas amarelas
dos únicos tapetes consentidos
sobre o chão de tabuões que são sem dúvida
Formas imemoriais de couro.

Vivo o cheiro do couro,
bafo da oficina do seleiro
suspenso no quarto de arreios.
Surpreendo, apalpo o cheiro futuro
dos bois sacrificados
olhando
a parada estrutura dos bois-vivos.

Aspiro, advinhando-o,
o cheiro do couro nonato
da cria na barriga da vaca Tirolesa
que um dia será carreada.

O couro cheira há muitas gerações.
A cidade cheira a couro.
É um cheiro de família, colado aos nomes.

AMOR SINAL ESTRANHO

Amo demais, sem saber que estou amando,
as moças a caminho da reza.
Entardecer.
Elas também não se sabem amadas
pelo menino de olhos baixos mas atentos.
Olho uma, olho outra, sinto
o sinal silencioso de alguma coisa
que não sei definir - mais tarde saberei.
Não por Hermínia apenas, ou Marieta
ou Dulce ou Nazaré ou Carmen.
Todas me ferem - doce,
passam sem reparar. O lusco-fusco
já decompõe os vultos, eu mesmo
sou uma sombra na janela do sobrado.
Que fazer deste sentimento
que nem posso chamar de sentimento?
Estou me preparando para sofrer.
Assim como os rapazer estudam para médico ou advogado.

SENTIMENTO DE PECADO
                                             I
Pecar, eu peco todo santo dia.
Às vezes mais. Outras nem tanto.
Mas sempre a sombra, na consciência,
visão de inferno, crepitante,
subimpressa, nos atos, nos lugares.

Sei todos os pecados e cometo-os.
Todos os arrependimentos.
Todas as prosternadas confissões,
previstas penitências;
Três padre-nossos,
três ave-marias,
três creiemdeuspadres.

Saio puríssimo para pecar de novo.
Padre Olímpio não se cansa,
não me canso,
jamais se cansa o inferno
de aparecer em brasas nítidas.
Como pode durar o ano inteiro
este jogo de deus e de diabo
em peito de menino?

                                             II
Chegam os missionários estrangeiros
corados
rudes
ininteligíveis.
Festa na cidade, medo em mim;
Entenderão os meus pecados ?
Trazem um inferno mais terrível
da Itália, da Espanha, da Alemanha ?

A Inquisição - me lembro de gravuras
com fogaréus sinistros alumiando
uma praça de olhares -
baixou talvez em Minas, sou a vítima.

Os pecadores não fazem fila.
O mar de pecados
envolve três confessionários
em suor arrependido.

Homens e mulheres exalam
vapor de crimes contra o Céu.
Valho tão pouco, eu !
Outra forma de medo me visita:
Meu Deus, terei pecado
à altura dos Inquisidores,
ou vão me declarar incompetente ?

O RELÓGIO

Nenhum igual àquele.

A hora no bolso do colete é furtiva,
a hora na parede da sala é calma,
a hora na incidência da luz é silenciosa.

Mas a hora no relógio da Matriz é grave
como a consciência.

E repete. Repete.

Impossível dormir, se não a escuto.
Ficar acordado, sem sua batida.
Existir, se ela emudece.

Cada hora é fixada no ar, na alma,
continua sonhando na surdez.
Onde não há mais ninguém, ela chega e avisa
varando o pedregal da noite.

Som para ser ouvido no longilonge
do tempo da vida.

Imenso
no pulso
este relógio vai comigo.

PINTURA DE FORRO

Olha o dragão na igreja do Rosário.
Amarelo dragão envolto em chamas.
Não perturba os ofícios.
Deixa-se queimar, maçã na boca,
olhos no alto:
olha a virgem
entregando o rosário ao frade negro
na igreja dos negros.

Dragão dividido
entre a sensualidade da maçã
e a honra inefável concedida
ao negro que ele não pode devorar.

OS GLORIOSOS

O chão da sacristia é forrado de campas,
domicílio perpétuo dos Antigos,
pois assim deve ser: volta dos filhos
da Santa Madre à Matriz do batismo,
para serem pisados como pó
e lembrados como reis.

CURRAL DO CONSELHO

Aqui se recolhem
os animais vagantes
em ruas estradas logradouros públicos
e os de qualquer natureza
encontrados em plantações
pastos
terras alheias
com ou sem dono conhecido.

(Anexo-dependência do Matadouro.)

Aqui se reúnem
a um passo, a uma parede,
a uma cerca baixa
da morte
os bichos errantes.
E formam nova sociedade.
A sociedade do depósito.

Aqui se espera
uma sorte qualquer
ou nenhuma.
Se passam para o outo lado
e são abatidos ?
Se apodrecem aqui mesmo
ou fogem.

Quem virá buscá-los e para quê,
a burros velhos que não valem
o capim-gordura e o milho prêmios,
e a cachorro cegos de lazeira
desaprendidos de larir ?

Aqui o Hotel do Fim, ao lado
o Matadouro, meta de ouro.

PORTÃO

O portão fica bocejando, aberto
para os alunos retardatários.
Não há pressa em viver
nem nas ladeiras duras de subir,
quanto mais para estudar a insípida cartilha.

Mas se o pai do menino é da oposição
à ilustríssima autoridade municipal,
prima da eminentíssima autoridade provincial,
prima por sua vez da sacratíssima
autoridade nacional,
ah, isso não: o vagabundo
ficará mofando lá fora
e leva no boletim uma galáxia de zeros.

A gente aprende muito no portão
fechado.

CAÇADA

Nada acontece
na cidade. O último crime
foi cometido no tempo dos bisavós.
Ninguém foge de casa, ninguém trai.
Repetição de cores e casos, ó bolor
da vida longa, no chão pregada a oitenta pregos !
As pessoas se cumprimentam, se perguntam
sempre as mesmas coisas, esperando
lentas confirmações
milimetricamente conhecidas.
Ai, tão bem-educadas, as pessoas.
Que fazer, para não morrer de paz ?

Cada morador limpa sua carabina,
convoca o perdigueiro, saem todos
a matar veado, capivara e paca.
Três dias a morte campeia
no mato violento.
Voltam os caçadores triunfantes,
assunto novo para três meses
e se fotografam entre bichos mortos
com inocência de heróis
regressando de Tróia.

RANCHO

Carga
e cangalhas
dormem solidariamente com os tropeiros.

Homens arreios mercadorias
não se distinguem um dos outros, confluídos
no bloco noturno sem estrelas:
viagem dormindo.

O DIA SURGE DA ÁGUA

O chafariz da Aurora
faz nascer o sol.
A água é toda ouro
desse nome louro.
O chafariz da Aurora,
na iridescência trêmula,
bem mais que um tesouro
é prisma sonoro,
campainha abafada
em tliz cliz de espuma,
aérea pancada
súbita
ma pedra lida,
frígida espadana,
tece musicalmente
a áurea nívea rósea
vestimenta do dia lóquido.
Deixa fluir a aurora
sendo um tão pobre
chafariz do povo.

TEMPO AO SOL

Sentados à soleira tomam sol
velhos negociantes sem fregueses.
É um sol para eles: mitigado,
sem pressa de queimar. O sol dos velhos.

Não entra mais ninguém na loja escura
Ou se entra não compra. É tudo caro
ou as mercadorias se esqueceram
de mostrar-se. Os velhos negociantes
já não querem vendê-las? Uma aranha
começa a tecelar sobre o relógio
da parede. E o sagrado pó nas prateleiras.

O sol vem visitá-los. De chapéu
na cabeça o recebem. Se surgisse
um comprador incostumeiro, que maçada.
Ter de levantar, pegar o metro,
a tesoura, mostrar a peça de morim,
responder, informar, gabar o pano...

Sentados à soleira, estátuas simples,
de chinelos e barba por fazer,
a alva cabeça move lentamente
se passa um conhecido. Que não pare
a conversar coisas do tempo. O tempo
é uma cadeira ao sol, e nada mais.

CHEGAR À JANELA

Há um estilo
de chegar à janela, espirar a rua.

Nenhum passante veja o instante
em que a janela se oferece
para emoldurar o morador.

De onde surgiu, de que etérea
paragem, nublado sótão,
como poisou, quedou ali,
recortado em penumbra ?

Modo particularmente de ficar
e não ficar ao mesmo tempo
debruçado à janela
diante da segunda-feira
e das eternidades da semana.
De frente ? De lado ? De nenhum
ângulo ? Está e não está
presente, é ilusão de pessoa,
vaso-begônia, objeto que mofou,
exposto ao ar ?

A janela e o vulto imobilizado
proíbem qualquer indagação.

O ANDAR

O andar é lento porque é lento
desde lentos tempos de antanho.

Se alguém corre, fica marcado
infrator da medida justa.

É o lento passo dos enterros
como é o passo dos casamentos.

O pausado som das palavras.
O tranquilo abrir de uma carta.

Há lentidão em dar o leite
da lenta mama a um sem pressa

neném que mama lentamente,
na lenta espera de um destino.

Não é lenta a vida. A vida é ritmo
assim de bois e de pessoas,

no andar que convém andar
como sugere a eternidade

SERENATA

Flauta e violão na trova da rua
que é uma treva rolando da montanha
fazem das suas.
Não há garrucha que impeça:
A música viola o domicílio
e põe rosas no leito da donzela.

SINA

Nesta mínima cidade
os moços são disputados
para ofício de marido.
Não há rapaz que não tenha
uma, duas, vinte noivas
bordando no pensamento
um enxoval de desejos,
outro enxoval de esperanças.
Depois de muito bordar
e de esperar na janela
maridos de vai-com-o-vento,
as moças, murchando ao luar,
já traçam, de mãos paradas,
sobre roxas almofadas,
hirtas grades de convento.

VIDA VIDINHA

A solteirona e seu pé de begônia
a solteirona e seu gato cinzento
a solteirona e seu bolo de amêndoas
a solteirona e sua renda de bilro
a solteirona e seu jornal de modas
a solteirona e seu livro de missa
a solteirona e seu armário fechado
a solteirona e sua janela
a solteirona e seu olhar vazio
a solteirona e seus bandós grisalhos
a solteirona e seu bandolim
a solteirona e seu noivo-retrato
a solteirona e seu tempo infinito
a solteirona e seu travesseiro
                      ardente, molhado
                      de soluços.

DOIDO

O doido passeia
pela cidade sua loucura mansa.
É reconhecido seu direito
à loucura. Sua profissão.
Entra e come onde quer. Há níqueis
reservados para ele em toda casa.
Torna-se o doido municipal,
respeitável como o juiz, o coletor,
os negociantes, o vigário.
O doido é sagrado. Mas se endoida
de jogar pedra, vai preso no cubículo
mais tétrico e lodoso da cadeia.

OS VELHOS

Todos nasceram velhos — desconfio.
Em casas mais velhas que a velhice,
em ruas que existiram sempre — sempre
assim como estão hoje
e não deixarão nunca de estar:
soturnas e paradas e indeléveis
mesmo no desmoronar do Juízo Final.
Os mais velhos têm 100, 200 anos
e lá se perde a conta.
Os mais novos dos novos,
não menos de 50 — enorm'idade.
Nenhum olha para mim.
A velhice o proíbe. Quem autorizou
existirem meninos neste largo municipal?
Quem infrigiu a lei da eternidade
que não permite recomeçar a vida?
Ignoram-me. Não sou. Tenho vontade
de ser também um velho desde sempre.
Assim conversarão
comigo sobre coisas
seladas em cofre de subentendidos
a conversa infindável de monossílabos, resmungos,
tosse conclusiva.
Nem me vêem passar. Não me dão confiança.
Confiança! Confiança!
Dádiva impensável
nos semblantes fechados,
nos felpudos redingotes,
nos chapéus autoritários,
nas barbas de milénios.
Sigo, seco e só, atravessando
a floresta de velhos.

O BOM MARIDO

Nunca vou esquecer a palavra ingrediente
no plural.
À tarde, Arabela conversava
com Tereza na sala de visitas.
Passei perto, ouvi:
- Custódio tem todos os ingredientes
para ser um bom marido.
- Quais são os ingredientes ?
a outra lhe pergunta.
Arabela sorri, sem responder.
Guardo a palavra com cuidado,
corro ao dicionário:
continua o mistério.

RESISTÊNCIA

O tísico
não tosse.
Não precisa tossir
para provar que continua tísico.
Rosto esverdinhado, barba por fazer,
pescoço envolto em lã xadrez,
roupa de brim dançante no esqueleto,
o tísico da cidade quando morre ?

Cumprimentando de longe,
ninguém lhe aperta a mão.
Alguém já viu micróbios passeando
em seus ossudos dedos pré-defuntos.

Sua voz mal ouvida é som de longe,
de onde ninguém volta, ou só voltou
em véus de assombração. Terá morrido
o tísico, e transita
pausado, de brim caqui, em dia azul ?

Morre de congestão o velho indagador,
de ataque morre súbito o fortido
professor de ginástica. Morrem outros
de 20 anos, rapazes não marcados.
O tísico, vao tossindo, enterra todos.

A CONDENADA

Impossível, casar a moça
bela branca rica
na terra onde príncipes não saltam
do armorial para pedir-lhe a mão
jamais.

Passam cometas de olhar astuto,
canastras sortidas.
Irão comprar a miça, mercadoria
sem preço na terra ?
Jamais.

Passam fazendeiros, botas esculpidas
no estrume, riso ruidoso
de dentes de ouro.
Cuidam levar a moça para saldar
suas hipotecas ?
Jamais.

Passam mulatos de fina lábia
e mil apólices federais.
Como deixar que o sangue cruze
na alva barriga de alvas origens ?

Condena-se a moça ao casamento
consigo mesma
na noite alvíssima
eternamente.

RUAS

Por que ruas tão largas?
Por que ruas tão retas?
Meu passo torto
foi regulado pelos becos tortos
de onde venho.
Não sei andar na vastidão simétrica
implacável.
Cidade grande é isso?
Cidades são passagens sinuosas
de esconde-esconde
em que as casas aparecem-desaparecem
quando bem entendem
e todo mundo acha normal.
Aqui tudo é exposto
evidente
cintilante. Aqui
obrigam-me a nascer de novo, desarmado.

A CASA SEM RAIZ

A casa não é mais de guarda-mor ou coronel.
Não é mais o Sobrado. E já não é azul.
É uma casa, entre outras. O diminuto alpendre
onde oleoso pintor pintou o pescador
pescando peixes improváveis. A casa tem degraus de mármore
mas lhe falta aquele som dos tabuões pisados de botas,
Que repercute no Pará. Os tambores do clã.
A casa é em outra cidade,
Em diverso planeta onde somos, o quê? Numerais moradores.

Tem todo o conforto, sim. Não o altivo desconforto
do banho de bacia e da latrina de madeira.
Aqui ninguém bate palmas. Toca-se a campanhia.
As mãos batiam palmas diferentes.
A batida era alegre ou dramática ou suplicante ou serena.
A campanhia emite um timbre sem história.
A casa não é mais a casa itabirana.

Tenho que me adaptar ? Tenho que viver a casa
ao jeito da outra casa, a que era eterna.
Mobiliá-la de lembranças, de cheiros, de sabores,
de esconderijos, de pecados, de signos,
só de mim sabidos. E de José, de mais ninguém.

Transporto para o quarto badulaques-diamante
de um século. Transporto umidade, calor,
margaridas esmaltadas fervendo
no bule. E mais sustos, pavores, maldições
que habitavam certos cômodos - era tudo sagrado.

Aqui ninguém morreu, é amplamente
o vazio biográfico. Nem veio de noite a parteira
(vinha sempre de noite, à hora de nascer)
enquanto a gente era levada para cômodos distantes,
e tanta distancia havia dentro, infinito, da casa,
Que ninguém escutava gemido e choro de alumbramento.
E de manha o sol era menino novo.

Faltam os quadros dos quatro (eram quatro continentes:
América Europa Ásia África) mulheres
voluptuosamente reclinadas
em coxins de pressentidas safadezas.
A fabulosa copa onde ânforas
dormiam desde a festa de 1989
guardando seus tínidos subentendidos,
guardando a própria cor enclausurada.
O forno abobodal, o picumã
rendilhando barrotes na cozinha.
E o que era sigilo nos armários.
E o que era romance no sigilo
Falta ...
Falto, menino eu, peça da casa.
Tão estranho crescer, adolescer
com alma antiga, carregar as coisas
que não se deixam carregar.
A indelével casa me habitando, impondo
sua lei de defesa contra o tempo.
Sou o corredor, sou o telhado
sobre a estrebaria sem cavalos mas nutrindo
à espera do embornal. Casa-cavalo,
casa de fazenda na cidade,
o pasto, ao Norte; ao Sul, quarto de arreios,
e esse mar de café rolando em grão
na palma de sua mão - o pai é a casa,
e a casa não é mais, nem sou a casa térrea,
terrestre, contingente,
suposta habitação de um eu moderno.

Rua Silva jardim, ou silvo em mim.