sexta-feira, 31 de julho de 2015

Fernando Pessoa, "O andaime"

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado! 

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão. 

A esp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobre mais que minha esp'rança,
Rola mais que o meu desejo. 

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer. 

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou. 

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida! 

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido. 

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só lembranças,
Mas as mortas esperanças -
Mortas, porque hão-de morrer. 

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim. 

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar. 

quinta-feira, 30 de julho de 2015

quarta-feira, 29 de julho de 2015

Antero de Quental, "Tormento do ideal"


Conheci a Beleza que não morre
E fiquei triste. Como quem da serra
Mais alta que haja, olhando aos pés a terra
E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,
 
Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;
Assim eu vi o mundo e o que ele encerra
Perder a cor, bem como a nuvem que erra
Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a ideia pura,
Tropeço, em sombras, na matéria dura,
E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,
E assentado entre as formas incompletas
Para sempre fiquei pálido e triste.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Victor Loureiro, "A mãe e o rio"


O rio toca seu curso atento.
Empurra à foz
notas tardias da noite
e puxa, rumo à nascente,
a brisa precoce da manhã.
A mãe bebe nessa corrente
e desce os olhos sobre o filho
com o mesmo amor
que a água tem pelo rio,
o mesmo cuidado
que no voo, a asa.

domingo, 26 de julho de 2015

Sérgio Milliet, "Unidade"


Jamais seremos um mais de um minuto!

Todas as forças se concentram
todos os desejos se enrijam
todos os anseios se sublimam
na urgência de sermos um...

Mas apenas desprende-se a centelha
já se quebram todas as molas,
inexorável dualidade!
Jamais seremos um mais de um minuto!

sábado, 25 de julho de 2015

Cassiano Ricardo, "Anoitecer"


Homem, cantava eu como um pássaro
ao amanhecer. Em plena unanimidade
de um mundo só.
Como, porém, viver num mundo onde todas as coisas
tivessem um só nome?


Então, inventei as palavras.
E as palavras pousaram gorjeando sobre o rosto
dos objetos.


A realidade, assim, ficou com tantos rostos
quantas são as palavras.

E quando eu queria exprimir a tristeza e a alegria
as palavras pousavam em mim, obedientes
ao meu menor aceno lírico.


Agora devo ficar mudo.
Só sou sincero quando estou em silêncio.


Pois, só quando estou em silêncio
elas pousam em mim - as palavras -
como um bando de pássaros numa árvore
ao anoitecer
.

sexta-feira, 24 de julho de 2015

Aprendendo com os mestres: o caso de Van Gogh, copiado do site "https://peregrinacultural.wordpress.com/"


https://peregrinacultural.wordpress.com/2015/06/26/aprendendo-com-os-mestres-o-caso-de-van-gogh/

artista 08_05_1960Achille Beltrame.1Homenagem: Achille Beltrame copiando e desenhando, 1960
Walter Molino (Itália, 1915-1997)
Capa da revista Domenica del Corriere, 8/03/1960


O conselho universal aos que querem se tornar escritores é conhecido: leia. Leia sempre. Leia bons escritores. Leia maus escritores. Perceba a diferença entre eles.  Imite.  Tente escrever no estilo de algum escritor de que você gosta; tente o estilo de quem você não gosta.  Aprenda as diferenças.  É claro que o conteúdo é importante.  Esse não se aprende.  Mas a técnica pode ser aprendida. É um caminho solitário e tortuoso.  Solitário principalmente.
Meu avô se dedicou à escrita além da advocacia.  Contribuiu por algum tempo com colunas semanais para jornais brasileiros, e vendo que eu, criança, havia mostrado uma certa habilidade para a palavra escrita, recomendou que eu copiasse um, dois, ou três parágrafos, um conto ou uma crônica de que eu gostasse; que eu simplesmente copiasse o texto, para aprender melhor como o escritor chegou ao resultado que havia me encantado.

van gogh, les premiers pas, 1890Os primeiros passos, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 92 x 72 cm
Metropolitan Museum, Nova York

Por isso mesmo, através dos anos, acabei com uma quantidade grande de trechos de livros copiados numa série de cadernos simples com anotações bibliográficas em geral incompletas. Esse hábito me persegue até hoje. Este blog se assemelha um tanto a esses meus cadernos.  Mas ainda me surpreendo quando escolho um trecho, que me encantou, porque descubro o uso de uma palavra que passou despercebida na leitura inicial ou uma colocação de vírgulas, dois pontos, ou divisão de parágrafos que eu não teria notado se não tivesse tido o cuidado de copiar o texto.  Esse hábito me tornou uma leitora cuidadosa.

millet les premier pas 1853Os primeiros passos, 1858
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 32 x 43 cm
Lauren Rogers Museum of Art, Laurel, Mississippi

O  mesmo conselho foi dado aos pintores. Tradicionalmente, desde a idade média, quando eram treinados nas Guildas de São  Lucas, pintores que demonstravam habilidades, copiavam seus mestres. Começando aos onze ou doze anos, dedicavam-se primeiro à fabricação de tintas, aprendendo a ralar as pedras coloridas usadas pelos mestres.  Esse longo aprendizado – de muitos anos — ensinava todos os truques do ofício até o jovem ter o direito de pintar os ramos de flores em uma tela do pintor responsável pela sua educação, ou a paisagem de fundo.  Era uma escola rígida, o ofício era levado a sério. E só era permitido que alguém se chamasse pintor depois de passar por tal sistema.  Dentro desse esquema, copiar o mestre era comum e um mérito.

Louis_Beroud_-_peintre_copiant_un_Murillo_Au_Musee_Du_LouvreCopiando Murillo no Louvre, 1912
Louis Beroud (França, 1852-1930)
óleo sobre tela,  130 x 161 cm
Coleção Particular

A cópia de obras de arte sempre foi uma maneira dos pintores entenderem  como um mestre do passado, de outro século, resolvera um problema, como combinara uma cor, ou como posicionara os elementos na tela.

mulher com ancinho, van gogh, 1889Muher com ancinho, 1889
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela
Coleção Particular

Conhecidos exemplos desses estudos podem ser encontrados na obra dos maiores pintores da arte ocidental de Delacroix, que copiou Rubens, a  Manet que estudou a obra de Velazquez ou Picasso copiando Manet.  O círculo é infinito e demonstra como o sistema é uma das melhores maneiras de se aprender o ofício da pintura.

mullher com ancinho, millet1854Camponesa com ancinho, 1857
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 39 x 34 cm
Metropolitan Museum, Nova York

Venho a esse texto porque tenho recebido muitos emails de pessoas que sabem do meu envolvimento com as artes plásticas, emails que anunciam a fraude, em geral de um pintor famoso, nesse caso van Gogh mostrado acima, em que um texto maldoso e ignorante do estudo da técnica, sugere a falta de criatividade, a falta de caráter mesmo, de um artista.  Com títulos sensacionalistas tal como — Fraude ou falsificação? ;  Artista … plagiador — esses emails têm enchido a minha caixa postal.

800px-Noon,_rest_from_work_-_Van_GoghA sesta, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 73 x 91 cm
Musée d’Orsay, Paris

No caso de van Gogh, a cópia era absolutamente necessária já que se tratava de um artista com muito pouco estudo, não mais do que um ano na Academia Real de Belas Artes em Bruxelas, por volta de 1880 e algum tempo, quase dois anos com seu primo o pintor Anton Mauve.  Foi de fato necessário para seu próprio aprendizado a cópia de outros artistas.  Ela não se limitou às obras de Millet.

Slide5.jpg a sesta 1866, milletA sesta, 1866
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 29 x 41 cm
Museum of Fine Arts, Boston

Essa obra de Millet, A Sesta, inspirou pelo menos mais um pintor.  John Singer Sargent, americano, impressionista que passou toda sua vida na Europa, dedicando-se às paisagens americanas só na última década de vida.
john singer sargentA sesta, c. 1875
[d’après Millet]
John Singer Sargent (EUA,
grafite sobre papel, 14 x 21 cm
Metropolitan Museum, Nova York

Vincent van Gogh admirava Millet. Seus temas de peões no campo, gente de vida simples, pareciam inundados da espiritualidade dos homens comuns que teve grande ressonância no pintor holandês, que havia desejado estudar teologia.

Jean-Francois Millet Night 1867 Fine Arts Museum, BostonA vigília, 1867
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
pastel e crayon sobre papel, 29 x 41 cm
Museum of Fine Arts, Boston

evening-the-watch-after-millet-1889(1)Vigília noturna, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 74 x 93 cm
The van Gogh Museum, Amsterdam

Mas van Gogh nunca chegou a se sentir satisfeito com as telas que produziu tendo como modelo as obras de Millet.  Sabe-se por exemplo que as oito telas inspiradas no Semeador de Millet, nunca lhe agradaram, ainda que para nós hoje elas pareçam muito boas. Ele desistiu do tema, frustrado, porque achava que em nenhuma das versões conseguira chegar próximo da mestria de seu predecessor.

sower-after-millet-1889(1).jpg!BlogO semeador, 1890
[d’après Millet]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 80 x 66 cm
Coleção Particular

SC269804O semeador, 1850
Jean-François Millet (França, 1814-1875)
óleo sobre tela, 101 x 82 cm
Museum of Fine Arts, Boston

Mas van Gogh não limitou seu aprendizado a Millet.  Copiou, entre outros, o trabalho de Gustave Doré, como vemos abaixo:

f_0669O exercício na prisão, 1890
[d’après Gustave Doré]
Vincent van Gogh (Holanda, 1853-1890)
óleo sobre tela, 80 x 64 cm
Museu Pushkin, Moscou

Newgate Prison Exercise Yard Gustave DorePátio de exercícios da prisão Newgate, 1872
Gustave Doré (França, 1832-1883)
Gravura, ilustração para ‘London: a Pilgrimage‘ [Londres: uma peregrinação] de Blanchard Jerrold e Gustave Doré, 1872.
Museu de Londres

A cópia de telas e gravuras dos mestres do passado é uma técnica difundida há muitos séculos, que teve grande ímpeto no coração da Idade Média, quando monges se dedicavam à ilustração de textos religiosos e filosóficos, e às cópias desses textos com as quais difundiam o conhecimento para outros ramos das ordens religiosas a que pertenciam. É uma técnica usada até hoje.   Pobre é a escola ou o professor de pintura que não incentiva esse método a seus alunos, mesmo que no futuro eles venham a ser artistas dedicados ao abstracionismo, ao conceitualismo ou a qualquer outro estilo que pareça não ter nada a ver com o passado.  O conhecimento do lugar em que a sua arte se enquadra na história das artes, é uma sólida base para a produção de qualquer artista, qualquer pintor, mesmo nos dias hoje.

 

Gravura em água-forte de Iberê Camargo, da série "Os ciclistas"



quinta-feira, 23 de julho de 2015

Alphonsus de Guimaraens, "Hão de chorar por ela os cinamomos"


Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão: - "Ai! nada somos,
Pois ela morreu, silente e fria..."
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolve-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: - "Por que não vieram juntos?"

quarta-feira, 22 de julho de 2015

António Gomes Leal, "Hora do meio-dia"


- Sozinho no meu quarto retirado -,
Certas horas do dia calorosas,
Quando as flechas do Sol queimam as rosas,
Eu cismo no seu corpo esbelto e amado!

As curvas do seu colo acetinado,
Mais fino que o das rolas amorosas,
Dar-me-iam as noites voluptuosas
De que falam os doutos do Pecado.
 
Mas, no entanto, lá fora o sol adusto
Queima as campinas e o aldeão robusto;
Voam abelhas a colher o mel.
 
E eu cheio de tristeza e d'ansiedade,
Continuo a cismar—como um abade—
Na Virgindade olímpica e cruel.

 

terça-feira, 21 de julho de 2015

segunda-feira, 20 de julho de 2015

Jorge Luis Borges, "A Luis de Camões"


Sem pena ou ira o tempo menoscaba
As heroicas espadas. Pobre e triste
À nostálgica pátria retornaste,
Ó capitão, para morreres nela
E com ela. No mágico deserto
A flor de Portugal fora perdida
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava seu costado aberto.
Quero saber se aquém desta ribeira
Última compreendeste humildemente
que quando foi perdido o Ocidente
E o oriente, a têmpera e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda humana
Mudança) em tua Eneida lusitana.

Tradução de Rolando Roque da Silva

domingo, 19 de julho de 2015

Eucanaã Ferraz, "Simples"


Se você não sai da minha cabeça,
minha cabeça é seu apartamento.
Já você, sendo você, é um chapéu
que uso dentro, como se usa um caroço.
Porque minha cabeça todo o tempo
está em você, suas pernas não saem
da minha cabeça e sinto seus braços
se formarem nos mesmos escaninhos.
Não tenho cabeça para outro assunto,
guarda-chuva chapéu pernas ou versos
que não sejam você. Devia pensar
noutras coisas - alfinetes perdidos,
convicções perdidas praias desertas
ou novas medidas de segurança
para a cena do atirador de facas.
Perdi a cabeça e já não há remédio.
Mas quem havia de a querer no lugar
se seus dedos brotam em meus cabelos?
Você me subiu à cabeça - forças
belezas alegrias me pertencem.
havia muito sangue na calçada
dizem. Ai, sou um equilibrista em queda
livre. Desempregado. E se giro
por aí com a cabeça no ar
carregando você, minha cabeça
é um balão bailando então. Sim, daqui
a Cordilheira dos Andes é nítida.
Escute, escreverei uma coisa
tão simples assim: você é meu sol.
Porque você me deixa com a cabeça
quente. E sem juízo, imaginando.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

David Mourão Ferreira, "Teia"


Se da baba o insecto faz a teia,
se com choro porém não sei prender-te,
do céu, que era de cinza, direi verde,
e da terra e das lágrimas areia.

E da forma direi que foi ideia,
para que à noite o corpo não desperte.
Do perdido direi que não se perde
se ao menos nestes versos se encadeia.

Do cabelo, se louro, direi preto;
do amor que sofro direi soneto,
ante a luz tão corpórea que o invade ...

Nas redes da ficção ficará presa
e acordarás, mais tarde, na surpresa
de ser outra por toda a eternidade.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Hilda Hilst, "De cigarras e pedras ... (Da Via Espessa)"


De cigarras e pedras, querem nascer palavras.
Mas o poeta mora
A sós num corredor de luas, uma casa de águas.
De mapas-múndi, de atalhos, querem nascer viagens.
Mas o poeta habita
O campo de estalagens da loucura.

Da carne de mulheres, querem nascer os homens.
E o porta preexiste, entre a luz e o sem nome.



terça-feira, 14 de julho de 2015

Odylo Costa, filho, "Soneto dos cinquent'anos"


Não sinto como o herói do mestre egrégio:
estou com os homens e com deus contente.
Revejo-me dos tempos de colégio,
aceito o meu passado e o meu presente.

A dor que deus me deu, aceito-a. Ponho
máscaras mansas no meu sofrimento.
Não quero mais que tenho, nem proponho
mesmo esse pouco dissipar no vento.

Tudo se foi, mas tudo está presente:
o rio, os bois, as árvores da infância,
meu Pai, severo, minha Mãe, paciente.

Faltam-me o olhar e a voz desse menino,
mas desce do seu gesto, na distância,
a força que enfrento o meu destino.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Ivan Junqueira, "O poema"

 
Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa
como um polvo a distender-se, lento
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
 
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.


Ele se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.


As palavras com que em vão o invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo o engenho,


não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.


sábado, 11 de julho de 2015

Paul Verlaine, "Bibliofilia"


O livro velho, tantas vezes lido!
Com furos e fissuras ficou feio
Por uso, mas de súbito está cheio
De vida, ao tato e à vista oferecido.

O livro, que até pouco era defunto,
Ressurge "sem surpresa para o sábio"
Que sabe, ó Transformista de alfarrábio,
O quanto de arte pões no teu assunto.

Jovem de novo, afoito para o afã:
O livro – feito antiga cortesã
Que alguma fada-mãe deixasse virgem;

E, como se escutássemos a voz
Dourada de uma excelsa musa, nós
Relemos, entretidos na vertigem.

Tradução de André Vallias

sexta-feira, 10 de julho de 2015

Eucanaã Ferraz, "Sem"


Que as estrelas morrem ensina a ciência
numa espécie de obituário absoluto.

Também a felicidade é passageira dizem
pode estar em Porto Alegre Planaltina

Ponte Nova lugares onde o mundo não existe
(o mundo é de onde a felicidade pôs-se a caminho

e não regressa) Ser feliz sei onde passa:
dura algumas horas

nós dois
sob o céu de um hotel sem estrelas.


quinta-feira, 9 de julho de 2015

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Ana Cristina Cesar, "Tento até o velho golpe..."


Tento até o velho golpe:
recitar poemas para tua indiferença.
Cabotina. Agarrada num rabo de cavalo.
"Teus versos agora me tocam menos
que você." Tua mão vacila.
Não é de cera.
Até que um dia com a unha
tira a lasca do rosto e descubro
a identidade morta por debaixo.
É porque tem que chegar. Perto do coração
não tem palavras?

terça-feira, 7 de julho de 2015

Konstantinos Kaváfis, "Quanto possas"


E se não podes fazer tua vida como a queres,
esforça-te pelo menos nisto,
quanto possas: não a degrades
na convivência demasiada com pessoas,
nos demasiados movimentos e colóquios.

Não a degrades levando-a,
trazendo-a frequentemente e expondo-a
à estupidez cotidiana
das relações e das companhias,
até que se torne pesada como uma estranha.

segunda-feira, 6 de julho de 2015

domingo, 5 de julho de 2015

Miguel Torga, "Chicote"


Arre, burro madraço!
Qual carga! Qual cansaço!
Chouta! Chouta, com forças ou sem elas.
Firme nessas canelas
Até onde o exija a própria vida.
Que fique bem cumprida
A penitência.
Que nenhuma sensata resistência
Torne mais absurda a caminhada,
Curva inútil traçada
De negrura em negrura:
O ventre e a sepultura.

sábado, 4 de julho de 2015

Reinaldo Ferreira, "O essencial é ter o vento"


O essencial é ter o vento.
Compra-o; compra-o depressa,
A qualquer preço.
Dá por ele um princípio, uma ideia,
Uma dúzia ou mesmo dúzia e meia
Dos teus melhores amigos, mas compra-o.
Outros, menos sagazes
E mais convencionais,
Te dirão que o preciso, o urgente,
É ser o jogador mais influente
Dum truste de petróleo ou de carvão.
Eu não:
O essencial é ter o vento.
E agora que o Outono se insinua
No cadáver das folhas
Que atapeta a rua
E o grande vento afina a voz
Para réquiem do Verão,
A baixa é certa.
Compra-o; mas compra-o todo,
De modo
Que não fique sopro ou brisa
Nas mãos de um concorrente
Incompetente.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Sophia de Mello Breyner Andresen, "Goesa"


Tudo era atravessado por um rio de memórias
E brisas sutis e lentas se cruzavam
E enquanto lá fora baloiçavam
Os grandes leques verdes das palmeiras
Uma rapariga descalça como bailarina sagrada
Atravessou o quarto leve e lenta
Num silêncio de guitarra dedilhada.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Bertold Brecht, "O nascido depois"


Eu confesso: eu
Não tenho esperança.
Os cegos falam de uma saída. Eu
Vejo.
Após os erros terem sido usados
Como última companhia, à nossa frente
Senta-se o Nada.

Tradução de Paulo César de Souza.