quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade, "Conclusão"


Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem o mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então, desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Camilo Pessanha, "São Gabriel"


Vem conduzir as naus, as caravelas,
Outra vez, pela noite, na ardentia,
Avivada das quilhas. Dir-se-ia
Irmos arando em um montão de estrelas.

Outra vez vamos! Côncavas as velas,
Cuja brancura, rútila de dia,
O luar dulcifica... Feeria
Do luar não mais deixes de envolvê-las!

Vem guiar-nos, Arcanjo, à nebulosa
Que do além mar vapora, luminosa,
E à noite lactescendo, onde, quietas,

Fulgem as velhas almas namoradas...
Almas tristes, severas, resignadas,
De guerreiros, de santos, de poetas.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Álvaro de Campos, "Não ..."


Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos

Uma  divergência instintiva.
Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...

Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?



domingo, 24 de fevereiro de 2013

Eugénio de Andrade, "A palmeira jovem"


Como a palmeira jovem
que Ulisses viu em Delos, assim

esbelto era o dia
em que te encontrei;

assim esbelta era a noite 
em que te despi,

e como um potro na planície nua
em ti entrei.


sábado, 23 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Carlos Pena Filho, "Soneto da sexta-feira da Paixão"


Morto. Como também já morre o dia
mas continua a ser noutros lugares?
Ou morto diariamente nos altares
Por ser diversa a morte que morria?

O corpo morto: azul melancolia
do mesmo azul perdido pelos ares,
Vivo azul sobre os campos sobre os mares,
Sobre a clara manhã ou a hora tardia.

Um corpo morto. Um corpo morto de homem
Igual a esses cadáveres de guerra
Que as batalhas atraem e consomem?

Ou um que junta o mundo à sua sorte,
Contempla a sombra em torno e desce à terra
E morre em solidão e vence a morte.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Uma prosa com Carlos Drummond de Andrade.

























“Entrevista inédita com Carlos Drummond de Andrade? Cê tá brincando!” 

Felizmente, não estava. Era sério. Ouvi um pedaço da fita cassete, já bem velha, datada de 1984. A entrevista existia mesmo. Era o Drummond falando sobre velhice e morte. Mas, como ela foi feita? Quando? Onde? E por quê ela permaneceu inédita até agora? Renan Garcia Miranda, professor de história e escritor, conta como tudo aconteceu:

“Em 1984, quando éramos estudantes de Jornalismo, na PUC- SP, eu e o José Eduardo Duó (hoje roteirista e proprietário do restaurante Santa Gula na Vila Madalena em São Paulo) tivemos a idéia de fazer um programa de rádio sobre a velhice, como parte do curso. Acontece que uma de nossas colegas de classe, a Raquel (com quem perdemos contato e por isso vai aqui sem sobrenome), era aparentada de Drummond e se ofereceu para tentar uma entrevista. Bolamos as perguntas e as enviamos junto com uma fita cassete.

Pouco tempo depois, a fita chegou de volta com um bilhete de Drummond, que nosso intolerável desleixo deixou escapar em algum lugar do passado. No bilhete, Drummond falava de seu prazer em responder àquelas perguntas e contava como elas haviam sido respondidas: numa tarde de domingo, após o almoço, com a família reunida e a filha Maria Julieta lendo as questões. A imagem de como aquelas perguntas de aprendizes foram respondidas, sem a presença do jornalista e seu alvará de intrometido, nos agradava e continua nos agradando. Parecem caber numa paixão medida.

Posteriormente à entrevista, se a memória - quebrada lembrança - não estiver falhando, contamos com o auxílio de Juraci de Souza, hoje um azougue dos arquivos do Dedoc na editora Abril, para editá-la sob a forma de um programa de rádio e transmiti-la uma única vez, através do sistema de rádio interno da PUC. Nós nunca a transcrevemos para o papel, nunca a reproduzimos de novo.”

Quinze anos se passaram, e a fita foi “desenterrada” em uma dessas noites frias de julho, quando eu visitava o Renan. No meio de uma conversa jogada fora, ele mencionou a entrevista e a existência da gravação. Foi o suficiente para que eu passasse a infernizar a vida do pobre rapaz: exigi que revirasse o apartamento até encontrar a fita. Isso explica por quê ela permaneceu inédita até agora: faltava o tal do “jornalista com alvará de intrometido” para dar publicidade a um documento tão importante. Segue, na íntegra, a transcrição da entrevista.

A moça que leu as perguntas, Maria Julieta (“a pessoa que mais amei no mundo”, segundo disse o próprio poeta), morreu em 5 de agosto de 1987, após uma longa e dolorosa guerra contra o desenvolvimento do câncer no tecido ósseo. Seu pai se foi doze dias depois, em um domingo, às 20h45, por insuficiência respiratória provocada por infarto.

Entrevista com Carlos Drummond de Andrade no dia 30 de julho de 1984, na rua Conselheiro Lafaiete:

Podemos começar?
Sim.

A primeira pergunta de Rachel é a seguinte, eu vou ler: 
“Gostaríamos que fizesse um perfil de você mesmo, da seguinte maneira, como era aos 22 anos, agora aos 82, e qual a transformação mais importante que sofreu nestes sessenta anos?”

Aos 22 anos eu era um rapaz muito inseguro com relação aos rumos a tomar, mas tinha uma namorada, e tinha preocupações literárias. Esses dois quadros parece que, de certa maneira, me ajudaram a enfrentar o problema da perplexidade que costuma ocorrer aos jovens, ou que pelo menos ocorria com certo rigor na minha geração. Bem, não era uma pessoa estudiosa, não levava a vida muito a sério, mas os mecanismos de preparação para a vida funcionavam inconscientemente em mim. Eu já publicava crônicas e pequenos poemas de verso livre nas revistas do Rio de Janeiro, e tinha sobretudo a fortuna de contar com um grupo de amigos todos eles mais estudiosos do que eu, levando a vida mais a sério do que eu porque trabalhavam, tinham os seus empregos fixos, e eram acadêmicos de direito, de medicina etc., e essas pessoas, como eu já tenho assinalado em outras entrevistas, foram muito camaradas para comigo, porque me recebiam de igual para igual, me tratavam como se eu fosse uma pessoa que realmente tivesse algum merecimento, então me estimulavam muito e de certa maneira ajudavam a enfrentar as barras da inquietação, da angústia que eram minhas companheiras bastante inseparáveis. Aos 82 anos, evidentemente, esse quadro é completamente outro. São sessenta anos de vida, e seria muito difícil que alguém não tivesse aprendido nada durante esse tempo, não tivesse recolhido nenhuma parcela de filosofia da vida, de comportamento, de compreensão das coisas. Então, eu acho que agora eu estou, evidentemente, muito mais equipado para viver, embora a margem de vida que sobra não seja a maior. Mas, de qualquer maneira, o caminho percorrido assinala isso, que eu fui de evolução em evolução, de passo em passo e passo a passo, ou talvez um pouco aos tropeções, mas fui vivendo ao longo da vida e aprendendo coisas. Eu acho que a diferença fundamental não existe entre o jovem inquieto e um velhinho já mais ou menos tranqüilo, o temperamento não mudou, apenas as experiências me ajudaram a ver mais claro as coisas que eu via então de uma maneira um pouco embaçada.

Vamos ver a segunda pergunta: 
“Como você sentiu a sua produção literária alterando-se com o passar dos anos? Se sentiu, de que maneira?”

Não, não senti, porque essa evolução se opera um pouco inconscientemente, você vai adquirindo novos meios de expressão, vai penetrando o sentido das coisas, ou tentando penetrar, e naturalmente pela leitura, pela reflexão, pelo hábito de escrever, vai se aprimorando o seu aparelho literário, a sua forma literária, os seus recursos verbais. Então, essa coisa só pode ser verificada depois comparando-se o que eu escrevia aos 22 anos e o que eu escrevo aos 82. Não creio que eu tenha feito um milagre de estar escrevendo agora coisas extraordinárias. Não, eu apenas acho que agora escrevo com mais consciência, e também é importante dizer, com mais dificuldade do que eu tinha aos 22 anos, porque passei a ter uma noção mais íntima da língua em que eu escrevo e das dificuldades que ela tem, e uma certa preocupação maior de usar a palavra própria, o termo adequado, e não um termo aproximado, ou um termo impressionista como eu então fazia, porque eu cuidava mais dos adjetivos, cuidava mais de uma forma de exprimir minhas emoções, do que propriamente de construir uma obra literária correta, e com conhecimento das particularidades da língua, e também com a preocupação de dizer alguma coisa que não fosse exclusivamente emocional, e sim uma coisa que envolvesse uma visão mais ou menos crítica da vida.

A pergunta número três: 
“Você sente que a sua memória vem falhando com o passar do tempo?”. E a segunda parte: “Até que ponto a memória é importante para o exercício das atividades poéticas?

Eu considero a memória um repositório fabuloso de elemento, uma espécie de enciclopédia que nós temos dentro de nós, e que vai sendo utilizada ao longo da vida. No meu caso, então, eu acho que a memória foi o que me valeu muito, porque eu não tenho estudos regulares, não tenho uma formação cultural perfeita, ou aproximadamente perfeita, mas tenho uma certa habilidade de procurar nas fontes mais recomendáveis as coisas que eu preciso saber para o efeito de escrever. Então, essa habilidade me permite consultar livros e documentos e textos e interpretá-los de uma maneira que só a memória poderia fornecer, porque se eu não tivesse essa memória, eu não saberia utilizar esses conhecimentos. Eu leio uma página de um escritor há vinte anos atrás, se eu me recordo dela, eu vou ao livro onde ela está, e posso reconstituir a emoção que eu senti, ou a impressão que eu tive lendo essa página. Agora, por outro lado, a memória é muito traiçoeira. E, no meu caso, parece que a quantidade de memória que me foi distribuída não é a das mais opulentas, pelo contrário, ela falha sempre, tenho uma triste memória visual. Sou capaz de não reconhecer seis meses depois uma pessoa que me causou profunda impressão pelo seu aspecto físico ou pela sua maneira pessoal de ser. Troco muito os nomes das pessoas, e esqueço muitas vezes ao falar a palavra que devia, nesse momento, por exemplo, a palavra que deveria pronunciar, ela não sai da minha cabeça, a não ser cinco minutos depois, quando já não adianta mais. Da mesma maneira a dificuldade de reagir a uma pergunta qualquer, responder uma indagação ou mesmo enfrentar uma situação difícil, no meu caso é muito precária, porque a solução ideal, o comportamento ideal esse só me ocorre quando já passou a situação. Mas eu acho que, mesmo não contando com a memória muito fiel, eu sei explorar com bastante habilidade essa pouca memória que eu tenho.

A pergunta seguinte é composta de três partes: 
“A crônica diária escrita nos jornais envelhece muito rapidamente por estar ligada às situações do cotidiano.” Pergunta:  “Como fica a relação da poesia com o tempo? O que significa dizer que a poesia é atemporal?” 

Não estou vendo muito bem a relação. Não tem muito nexo. A crônica realmente pela sua natureza é fugitiva, fugidia, ela passa depressa. Agora, não obstante nós devemos reconhecer que crônicas escritas há quase cem anos por um cidadão chamado Machado de Assis estão hoje vivas como naquele tempo. Os acontecimentos perderam a atualidade, mas a crônica não perdeu, porque elas traduzem uma visão tão sutil, tão maliciosa, tão viva da realidade, que o acontecimento fica valendo pela interpretação que Machado de Assis. Nesse sentido, a crônica não é assim tão passageira.
Por outro lado, eu devo dizer também que já tenho seis ou sete livros constituídos de crônicas, e essas crônicas, não quero me gabar de coisa nenhuma, parece que elas não perderam a atualidade porque nem sempre elas comentam um fato do dia, ou quando comentam elas procuram dar uma extensão maior a esse fato, e generalizar, fazer uma reflexão qualquer sobre a vida, sobre os costumes, sobre a política, sobre os homens, à margem de um acontecimento transitório. E, sendo assim, a crônica tem uma certa chance de permanecer. Agora, por outro lado, eu devo reconhecer que cerca de 80 por cento, senão mais, das crônicas escritas por mim não podem perdurar porque em primeiro lugar eu não as achei adequadas a formarem um livro, e depois porque o jornal que é tão vivo no dia é uma sepultura no dia seguinte. Então, essas coisas escritas ao sabor do tempo perdem completamente não só a atualidade como o sabor, o sentido, a significação. Quando se fala de um determinado indivíduo que foi importante no Brasil, isso é tão comum uma pessoa ser importante vinte anos, durante dez anos, depois ficar completamente esquecida na política, na administração, no empresariado, na literatura, então a crônica que aborda um fato ou uma circunstância de vida dessa pessoa, perdeu completamente o sentido, porque essa própria pessoa perdeu o sentido. Então não é propriamente a crônica, é o acontecimento que ela reflete que perdeu a significação. Agora, a outra parte da pergunta me parece alheia, em todo caso, vamos a ela.

“Como fica a relação da poesia com o tempo, e o que significa dizer que a poesia é atemporal?”

A poesia com o tempo? A relação da poesia com o tempo, naturalmente, vem disso que todos nós vivemos no tempo e dentro do tempo, condicionados por ele. Então, a poesia que nós fazemos, mesmo não parecendo referir-se a esse tempo, ela traz a marca do tempo que nós vivemos, mesmo não sendo uma poesia estritamente temporal, não abordando temas que circulam hoje, que são hoje considerados importantes. Mas a poesia, a meu ver, se considerada na sua expressão mais pura, ela transcende o tempo, é exatamente uma das formas de transcendência do tempo, como a arte em geral, porque a ciência já não é assim. Um conhecimento científico da atualidade perdeu completamente o valor hoje, só tem valor histórico, mas um poema, como os poemas de Homero, os poemas de Virgílio, os poemas da Horácio na antiguidade clássica, hoje podem ser lidos, exigem naturalmente uma certa formação cultural, como se tivessem sido escritos hoje. A Arte de Amar de Ovídio é atualíssima, os detalhes que ela enumera a respeito do modo de amar, das carícias que podem ser feitas, das reações masculinas e femininas, das conseqüências deste ou daquele impulso são coisas que acontecem na vida inteira. Então, a poesia refletindo isso, ela por sua vez é eterna. Também porque nós precisamos às vezes de um certo refúgio contra o tempo, queremos nos libertar, queremos ficar livres da pressão demasiada dos acontecimentos. Onde nós procuramos? Nós procuramos na música, nas artes plásticas, ou procuramos na poesia, são formas de transcender o imediato e o real e fugir a ele, nos elevando acima dele.

A pergunta número cinco é sobre o modernismo, diz o seguinte:
“Das concepções que originaram o modernismo quanto à liberdade formal, ideologia etc., o que você considera ultrapassado, e o que ainda é atual e por que?”

Quem deve responder melhor essa pergunta foi Mário de Andrade quando enumerou as conquistas do modernismo, que estão naquela famosa conferência dele pessimista sobre o modernismo. Ele pessoalmente achou que o modernismo era um movimento ultrapassado, e que ele tinha falhado porque não tinha dado um caráter mais permanente à sua obra. Mas as conquistas, digamos assim, técnicas do modernismo, culturais do modernismo, a atualização da inteligência brasileira, por assim dizer, embora pareça pretensioso, o fato de o modernismo ter trazido um novo estilo literário, um estilo que ficou até hoje, porque todas as liberdades que hoje se usa e se abusa na literatura, todas elas são fruto do modernismo. A desarticulação da sintaxe clássica sem desrespeito naturalmente ao fio condutor do pensamento, que nada tem a haver com as formas gramaticais rígidas, é uma conquista do modernismo. É um pensamento mais livre. O Brasil se libertou de uma poesia, de uma literatura copiada, imitada de cânones que ninguém mais nem cogitava. Fazia-se poesia no Brasil sobre a Grécia antiga, sobre a Idade Média, a poesia brasileira era um reflexo, era uma cópia apagada de poesias que tinham sido feitas em séculos anteriores. Isso tudo passou e hoje há uma liberdade de criação que só se deve ao modernismo. Eu tenho a impressão de que a herança dele é muito grande. Agora, como movimento evidentemente ele passou. Livros do modernismo, com exceção de um ou outro hoje, dão a impressão de datados. As originalidades do Oswald de Andrade, são interessantes consideradas como feitas em 1920, mil novecentos e vinte e poucos. Já o Macunaíma é um livro que, tão bem estruturado, tão bem composto no aproveitamento das fontes indígenas ligadas a uma visão maliciosa do caráter brasileiro, esse livro, a meu ver, fica independente de escola. Mas, as outras obras, essas daí valeram mais como um marco de uma evolução literária, um combate à rotina. Mas, como datadas que foram, elas já não têm hoje a intensidade que teria, digamos, a obra de um Guimarães Rosa, que, embora não tenha assim ligação direta ou não tivesse ligação consciente com o modernismo, pode ser considerada como um fruto evidente do modernismo.

Pergunta número seis: 
“Como você avalia o papel das vanguardas literária, política, intelectual etc., e qual é a sua relação com tais vanguardas?”

Eu não me dou bem com as vanguardas, ou as vanguardas não se dão bem comigo. Eu lamento muito, mas não posso fazer nada, porque eu acho as vanguardas uma coisa puramente superficial, e que não deixa traço na vida cultural brasileira. O vanguardista é um homem que rompe com todos os cânones, procura fazer uma coisa de estardalhaço, de ruído, de escândalo, e que passa com maior rapidez possível. Hoje, acho que ninguém fala mais em poesia concreta, em poesia práxis nessas coisas. Elas foram realmente curiosas na ocasião em que apareceram. Eles se gabam muito historicamente que na Suíça foram citados, na Alemanha e outros países da Europa, mas o fato é o seguinte, não fica uma poesia, eu estou falando da vanguarda poética, uma poesia que não tenha raízes profundas na sensibilidade humana e na consciência artística. Se nós queremos desarticular a linguagem a um ponto em que só restam palavras ou meias palavras, o resto são sons, ou meras consoantes ou meras vogais, então nós estamos desarticulando um trabalho que durante milhares e milhares de anos o homem fez para compor uma linguagem equilibrada, e artisticamente válida. É a negação da arte, é a negação da poesia, da literatura, do pensamento, é um brinquedo que não chamaria de maluco, mas é um brinquedo entre infantil e entre adulto, sem consciência, sem noção do que deva ser um brinquedo, que o caráter lúdico da criança geralmente é maravilhoso, nós todos já fomos criança, e lembramos com saudade do tempo em que nós inventávamos o brinquedo, que nós transformávamos um objeto num outro, tínhamos uma visão fantástica da vida. Então, não podendo ver, nós convivíamos com príncipes, com fadas, com dragões, com uma porção de coisas que não existem na realidade, mas dentro da atmosfera infantil, aquela coisa era uma realidade viva. Então, eu acho uma criança muito mais criativa do que um poeta adulto que as frases aparentemente estranhas, ou frases chocantes, das quais não resulta nada. Eu acho que a história da literatura não é a história da vanguarda. A vanguarda são, por assim dizer, intervalos numa evolução que se processa de uma maneira muito diferente.

Pergunta número sete: 
“Aos 21 anos, como você se imaginava com a idade que tem hoje? Tinha medo de envelhecer, que angústias em relação à velhice sentia nessa época?”

Não, eu acho que aos 21 anos, não. Eu deveria ser um jovem como outro qualquer, assim que não tinha muita consciência da vida, e não sabia o que era a velhice, não podia saber, olhava para os velhos assim com uma certa pena deles, “coitados, estão velhos”, e não se dava conta de que um dia chegaria a nossa vez. Não guardo uma impressão muito grande da minha reação diante dos velhos, diante da hipótese da minha velhice.

A pergunta seguinte me parece que já está respondida, em todo caso não quero interferir:
“De um modo geral, os jovens estão preparados para envelhecer? Por que as pessoas têm tanto medo da velhice?”

Eu acho que ninguém está preparado para envelhecer. É uma coisa que a vida se encarrega de nos trazer, sem que nós tenhamos pedido, nós não influímos nesse assunto, a mocidade não espera a velhice, não receia a velhice, e ninguém está preparado para envelhecer, ela vem como uma fatalidade biológica.

“Como você encara a morte?”

Aí é que está a pergunta realmente central da entrevista, porque, quando se fala em velhice, no fundo nós estamos escamoteando um nome, que seria esse, como é que você considera a morte? O que é que você espera? O que você pensa da morte? Porque a velhice é apenas uma fase como a infância, a adolescência, como a mocidade, como a maturidade, então tudo são fragmentos de um conjunto que é a vida, com a particularidade apenas de que a velhice é aquele segmento, aquela parte da vida em que a idéia de morte se apresenta assim frontalmente. Na infância, ela não existe; na mocidade, não a consideramos; na maturidade, a gente começa a ter uma vaga noção de que a morte pode vir para nós como vem para as outras pessoas.
Mas é na velhice que a idéia de morte se realiza plenamente, com todo vigor, com toda nitidez. Primeiro porque nós vemos os nossos amigos envelhecerem, nós não percebemos muito a nossa velhice. Mas convivendo com pessoas que dia a dia aparecem com os traços do rosto mais marcados, com o cabelo mais branqueado ou ausente, com os gestos mais lentos, com o andar mais arrastado, e com interesses intelectuais e humanos de toda natureza mais limitados, nós nos damos conta de que existe a velhice. Mas, neste primeiro estágio, nós ainda nos consideramos privilegiados, porque nós ainda não reparamos na nossa velhice. É preciso que os outros reparem, é preciso que os outros nos tratem com atenções especiais ou com o desprezo pela velhice, é preciso que as outras pessoas que nos rodeiam nos façam sentir que nós estamos velhos. Aí, então, nós começamos a sentir realmente a velhice, mas sempre com uma resistência interior, com um esforço: “Eu estou velho fisicamente, mas eu não estou velho intelectualmente”; é diferente. Mas já agora não é propriamente a idéia de estar velho que nos preocupa, é a idéia da morte, de quando ela chegará. Eu acredito que essa idéia é fecunda, é boa, não é daquelas idéias que nos deprimem. É até conveniente que a gente pense nisso, porque do contrário nós nos arriscamos a ter uma surpresa terrível, se uma moléstia grave nos acomete, nos prende à cama ou nos invalida durante muito tempo, e nós não percebemos que aquela moléstia é uma moléstia preparatória da morte, que a morte chegou sob aquela forma cruel, mas uma das formas positivas. Então, a idéia de morte, digo, eu me refiro a meu caso pessoal, ela está sempre presente na minha frente. Mas não se apresenta de uma forma assim muito dolorosa. Evidentemente não é agradável, não vou dizer que eu tenho prazer, eu não tenho prazer nenhum, preferia ficar por aqui mesmo, embora sob determinadas condições, uma delas é que não estivesse fisicamente inválido, incapaz de viver, de sentir, de amar, de brincar, de trabalhar, de fazer coisas, né ? Então, a morte considerada assim com realismo, como um termo natural de uma vida, apresenta até, digamos, ás vezes, um aspecto consolador, porque ela significa uma extinção completa das crises, dos conflitos, dos tumultos que acompanham a vida humana desde o nascimento até o final. Evidentemente, não é uma idéia assim muito feliz, como estava dizendo, mas acredito que a preparação para a morte, seja um dos trabalhos filosóficos do ser humano mais recomendados. É a pessoa sentir que não é eterno, sentir que deve dar lugar aos mais moços, sentir que não deve levar ao trágico esse final, e preparar-se para não dar trabalho aos outros, na medida do possível, e sobretudo depois da morte, porque é muito chato o sujeito morrer deixando os seus negócios atrapalhados, deixando a vida complicada para a família, para os amigos etc. Isso eu acho que não é uma coisa má. E nesse sentido, tanto quanto é possível ver dentro de mim, eu não vejo muito claramente, não tenho esta luz mágica que me permite me conhecer perfeitamente, eu não acho que a idéia de morte não só fica sendo aceitável, razoável, como fica sendo uma coisa natural.

A pergunta número dez: 
“Você acha que o ‘fantasma’”, isso foi entre aspas, “que o fantasma da velhice pode levar alguém ao suicídio? Na sua opinião, o suicídio de Nava tem relação com esse fantasma?”

Eu não acho que o suicídio do velho seja um caso específico vinculado à velhice. Em qualquer idade as pessoas se matam. Há casos doloríssimos de crianças que se matam, os jovens não se falam, porque não sabem nada da vida, ficam perturbados com qualquer crise, acham que o mundo está acabado, não sabem resolver o problema, e se matam. Os homens maduros também, os velhos também. No caso dos velhos, pode haver até um suicídio, digamos, filosófico, um suicídio racionalizado, de pessoa que sentindo-se incapaz de viver, porque a vida já não oferece mais nenhum interesse, e a própria pessoa só oferece problemas, só com problema para os outros, então essa pessoa considera possível encerrar a sua vida, e se mata. Eu acho isso razoável. O caso do Pedro Nava não me parece tenha sido exatamente esse. Eu não posso analisá-lo bem porque Nava não deixou sinais de motivação do seu ato. Então, foi uma resolução, ao meu ver súbita, num momento de solidão em que ele não estava apoiado em nenhum amigo, nenhuma força solidária que pudesse demovê-lo dessa idéia, ele então, num momento de desespero, resolveu se eliminar. Respeito muito o ato dele, mas lamento muito que nós, os amigos dele, não tenhamos podido fazer alguma coisa por ele. Fazer aquilo que ele fez com um de nossos amigos que estava também disposto a suicidar-se em conseqüência de uma profunda depressão psicológica. Ele foi à casa desse amigo altas horas da noite, chamado pelo amigo, aliás, e tomou o revólver que ele tinha no quarto e intimou-o com a maior severidade a tratar-se, a reagir contra a depressão. Salvou a vida desse nosso amigo, e não salvou a sua própria. Mas acho, continuo achando, que o homem é dono do seu destino, é dono da sua vida, não posso acusá-lo.

Pergunta número onze: 
“Um dos principais medos da velhice está no temor da impotência sexual. Como você encara essa questão? Em que medido isso é verdade? E até que ponto não se trata de um preconceito?” (riso)

Você está dizendo que é um dos principais medos da velhice, vocês falam isso sem autoridade, porque vocês são jovens. O problema da sexualidade na velhice não é assim tão grave como pode parecer. De fato, perder, abrir mão dos prazeres da sexualidade não é nada agradável para ninguém, mas isso pode ocorrer em qualquer idade, não é privativo da velhice. Há casos até em que essa perda é até muito precoce. O que há é o seguinte, o que eu posso assegurar a vocês é que a sexualidade é um valor permanente na vida das pessoas, ela não desaparece, ela não acaba. Podem diminuir, reduzir-se, anular-se os meios de realização formal e habitual da sexualidade. Mas a imaginação criadora sempre opera nesses casos, e Deus, ou a natureza, seja que poder for, permite que as pessoas velhas também sintam prazer sexual independente das suas restrições fisiológicas. Posso tranqüilizar então vocês para uma futura velhice. (risos)

A última pergunta, não sei se é última, não, tem seguimento, a número doze:
“Por que a sociedade não prepara as pessoas para a velhice? Que interesses estão por trás de uma sociedade que marginaliza os velhos?”

Eu acho que vocês estão sendo muito rigorosos com relação à sociedade neste particular. A sociedade, em certo sentido, ela prepara, ela tem um certo apreço pelos velhos. As provas são as organizações existentes no mundo de previdência social. Todo país hoje, todo Estado tem um órgão de previdência social. Ele é deficiente, ele sofre as conseqüências da falta de poder econômico, das restrições financeiras, mas existe, coisa que não existia no Brasil da minha infância, da minha mocidade. Há sessenta anos atrás não havia nada, havia uma coisa tétrica chamada Asilo da Velhice Desamparada. Era uma coisa tão triste, a começar pelo nome, que as próprias pessoas que se internassem lá deviam sentir-se infelizes, porque chamar a velhice de abandonada é realmente cruel. Então, esses asilos deveriam ser lamentáveis. Hoje, não. Hoje existem clínicas geriátricas onde as pessoas, mediante um pagamento ajustado, têm os prazeres da convivência com outras pessoas da mesma idade, têm um ambiente em que elas podem jogar, podem brincar, e podem namorar também. Então , é assim.
Agora, o estado não é deficiente só no tratamento aos velhos. O Estado é deficiente em tudo, pelo menos no nosso país. O Estado é deficiente na educação primária, secundária e universitária. O Estado é deficiente nos programas de saúde, nos programas de urbanização, em tudo mais de urbanismo. Então, eu acredito que não haja da parte do Estado, como força assim organizadora, controladora da vida social, intenção de desprezar os velhinhos. O que há muitas vezes é que o Estado é incapaz, é incompetente para fazer os programas e para executá-los, dando condições realmente de conforto, de estabilidade, de segurança aos velhinhos.

Não é mais uma pergunta, mas, enfim, a parte final da entrevista diz o seguinte: 
“Gostaria que você declamasse os versos seus que foram declamados oportunamente por uma senhora, dona Micaela”. Diz aqui: “Uma simpática senhora de 84 anos que também cedeu um pouco de seu tempo para os rapazes”. Parece que ela se referiu a esses versos, e eles pediram para que você dissesse.

São uns versinhos que eu fiz para um livro de memórias infantis em que eu me referia a pessoas da minha família e pessoas das relações, de pessoas que constituíam o mundo de Itabira, pequeno mundo de Itabira. E este é referente a minha irmã, Maria das Dores, a minha irmã caçula, que era o “ai-Jesus” da família. Meus pais tinham por ela um encantamento especial. Era uma garota muito bonita, como foi também uma moça muito bonita, já morreu. O poeminha é o seguinte:

Era um brinquedo Maria

Era uma história Maria
Era uma nuvem Maria
Era uma graça Maria
Era um bocado Maria
Era um mar de amor Maria
Era uma vez, era um dia, Maria

Há ainda aqui um pós-escrito, que diz o seguinte: 
“Procuramos sintetizar nessas doze perguntas a relação do poeta com a velhice. O tema é amplo e complexo, reservamos esse espaço final para uma eventual abordagem que você julgue necessária, e que nos tenha fugido de alguma forma na concepção das questões”.

Não me ocorre dizer nada de especial, achei as perguntas interessantes, e respondi com prazer, sem nenhum constrangimento. Não omiti resposta nenhuma, e vocês tinham me autorizado a isso, mas não havia nada a omitir. Eu quero agradecer a Rachel e seus companheiros pela simpatia que manifestaram por mim fazendo essas perguntas a esse velhinho que se sente muito satisfeito, muito contente. Um abraço pra vocês todos. Ia me esquecendo, vou fazer um pós-escrito verbal. Esta entrevista resultou de uma reunião familiar, estamos todos aqui no meu escritório, minha filha Maria Julieta foi quem leu as perguntas para mim, quem ajudou a manobrar o gravador foi o meu neto Pedro Augusto; e tudo isso foi assistido pela minha querida companheira de 59 anos de casamento, Dolores; um abraço e um beijo para vocês todos.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Miguel Torga, "Tribunal"


Não há outros comparsas no processo.
Eu acuso, defendo e sou juiz
Do réu que também sou, preso por mim.
O crime é um acto de rebelião
Contra os altos ditames da razão,
Que mandam que me aceite como vim.

Ora eu não me quero tal e qual!
Desejo-me intangível, imortal,
Não sei ao certo ainda em que universo...
E aguardo, cabisbaixo, o julgamento,
Enquanto vou sentindo o pensamento
Evadir-se da sala em cada verso.

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Lêdo Ivo, "A vã feitiçaria"


Invento a flor, e mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor,
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade













"Mãos dadas"

Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e e olho meus companheiros.
Estão taciturnos, mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.

Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, à paisagem vista da janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicídio.
Não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes.
A vida presente.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

Ferreira Gullar, "Arte poética"


Não quero morrer não quero
apodrecer no poema
que o cadáver de minhas tardes
não venha a feder em tua manhã feliz
                           e o lume
que tua boca acenda acaso das palavras
- ainda que nascido da morte -
                             some-se
                             aos outros fogos do dia
aos barulhos da casa e da avenida
                             no presente veloz

Nada que se pareça
a pássaro empalhado múmia
de flor
dentro do livro
                          e o que da noite volte
volte em chamas 
           ou em chagas

           vertiginosamente como o jasmim
que num lampejo só
ilumina a cidade inteira.

Rubem Braga, "Homem no mar"


De minha varanda vejo, entre árvores e telhados, o mar. Não há ninguém na praia, que resplende ao sol. O vento é nordeste, e vai tangendo, aqui e ali, no belo azul das águas, pequenas espumas que marcham alguns segundos e morrem, como bichos alegres e humildes; perto da terra a onda é verde.

Mas percebo um movimento em um ponto do mar; é um homem nadando. Ele nada a uma certa distância da praia, em braçadas pausadas e fortes; nada a favor das águas e do vento, e as pequenas espumas que nascem e somem parecem ir mais depressa do que ele. Justo: espumas são leves, não são feitas de nada, toda sua substância é água e vento e luz, e o homem tem sua carne, seus ossos, seu coração, todo seu corpo a transportar na água.

Ele usa os músculos com uma calma energia; avança. Certamente não suspeita de que um desconhecido o vê e o admira porque ele está nadando na praia deserta. Não sei de onde vem essa admiração, mas encontro nesse homem uma nobreza calma, sinto-me solidário com ele, acompanho o seu esforço solitário como se ele estivesse cumprindo uma bela missão. Já nadou em minha presença uns trezentos metros; antes, não sei; duas vezes o perdi de vista, quando ele passou atrás das árvores, mas esperei com toda confiança que reaparecesse sua cabeça, e o movimento alternado de seus braços. Mais uns cinqüenta metros, e o perderei de vista, pois um telhado a esconderá. Que ele nade bem esses cinqüenta ou sessenta metros; isto me parece importante; é preciso que conserve a mesma batida de sua braçada, e que eu o veja desaparecer assim como o vi aparecer, no mesmo rumo, no mesmo ritmo, forte, lento, sereno. Será perfeito; a imagem desse homem me faz bem. 

É apenas a imagem de um homem, e eu não poderia saber sua idade, nem sua cor, nem os traços de sua cara. Estou solidário com ele, e espero que ele esteja comigo. Que ele atinja o telhado vermelho, e então eu poderei sair da varanda tranqüilo, pensando — "vi um homem sozinho, nadando no mar; quando o vi ele já estava nadando; acompanhei-o com atenção durante todo o tempo, e testemunho que ele nadou sempre com firmeza e correção; esperei que ele atingisse um telhado vermelho, e ele o atingiu".
Agora não sou mais responsável por ele; cumpri o meu dever, e ele cumpriu o seu. Admiro-o. Não consigo saber em que reside, para mim, a grandeza de sua tarefa; ele não estava fazendo nenhum gesto a favor de alguém, nem construindo algo de útil; mas certamente fazia uma coisa bela, e a fazia de um modo puro e viril.

Não desço para ir esperá-lo na praia e lhe apertar a mão; mas dou meu silencioso apoio, minha atenção e minha estima a esse desconhecido, a esse nobre animal, a esse homem, a esse correto irmão. 

domingo, 10 de fevereiro de 2013

José Saramago, "Lamento de D.João no inferno"


Das ameças do céu me não temi
Quanto da terra as leis desafiei:
O lugar dos castigos é aqui,
Do céu nada conheço, nada sei.
O cilício do Diabo não me cinge,
Nem a mercê de Deus aqui me segue:
A chama mais ardente é a que finge
Este cheiro de mulher que me persegue.

sábado, 9 de fevereiro de 2013

António Botto, "Homem que vens ..."


Homem que vens de humanas desventuras,
Que te prendes à vida e te enamoras,
Que tudo sabes e que tudo ignoras,
Vencido herói de todas as loucuras;

Que te debruças pálido nas horas
Das tuas infinitas amarguras -
E na ambição das coisas mais impuras
És grande simplesmente quando choras;

Que prometes cumprir e que te esqueces,
Que te dás à virtude e ao pecado.
Que te exaltas e cantas e aborreces,

Arquiteto do sonho e da ilusão
Ridículo fantoche articulado
- Eu sou teu camarada e teu irmão. 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Eucanaã Ferraz













"O dragão"

Semana que vem, chega-te pelo correio
a lua: puro papelão,
que aos teus dedos transmutará em loiça.
Não fosse a gripe que me assolou esses dias,
não fosse a preguiça, os livros e o sono,
eu te mataria um dragão.

Na entrada da tua vila, deixaria o bicho,
pesado como uma hecatombe
(um hematoma na boca do estômago,

as asas imensas de bomba
imersas numa poça de sangue verde).
Ora, não te assustes,

sei que te acostumei com presentes mais delicados.
Mas não seria preciso guardá-lo: telefonarias
para o Departamento de Limpeza Urbana

avisando que um louco que te ama
deixou um sonho morto
na porta da tua casa.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Junqueira Freire, "Louco (Hora de Delírio)".


Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

Achou pequeno o cérebro que o tinha;
Suas idéias não cabiam nele:
Seu corpo é que lutou com a sua alma.
E nessa luta foi vencido aquele.

Foi uma repulsão de dois contrários:
Foi um duelo na verdade insano;
Foi um choque de agentes poderosos:
Foi o divino combater co'o humano.

Agora está mais livre. Algum atilho* 
Soltou-se-lhe do nó da inteligência;
Quebrou-se o anel dessa prisão de carne,
Entrou agora em sua própria essência.

Agora é mais espírito que corpo:
Agora é mais um ente lá de cima;
É mais, é mais que um homem vão de barro;
É um anjo de Deus, que deus anima.

Agora sim - o espírito mais livre
Pode subir às regiões supernas*:
Pode, ao descer, anunciar aos homens
As palavras de Deus, também eternas.

E vós, almas terrenas, que a matéria
Ou sufocou ou reduziu a pouco,
Não lhe entendeis, por isso, as frases santas,
E zombando o chamais, portanto - louco!

Não, não é louco. O espírito somente
É que quebrou-se-lhe um elo da matéria.
Pensa melhor que vós, pensa mais livre,
Aproxima-se mais à essência etérea.

* Atilho - Tira de pano ou couro que serve para atar, amarrar.
* Superna - Superior, muito alta, muito elevada.

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Carlos Drummond de Andrade, "Mundo grande".


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho cruamente nas livrarias:
preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.

Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.

Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?

Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)

Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.

Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.

Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.

Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Alphonsus de Guimaraens














"Como se moço e não bem velho eu fosse..."

Como se moço e não bem velho eu fosse,
Uma nova ilusão veio animar-me.
Na minh'alma floriu um novo carme*,
O meu ser para o céu alcandorou-se*.

Ouvi gritos em mim como um alarme.
E o meu olhar, outrora suave e doce,
Nas ânsias de escalar o azul, tornou-se
Todo em raios, que vinham desolar-me.

Vi-me no cimo eterno da montanha,
Tentando unir ao peito a luz dos círios
Que brilhavam na paz da noite estranha.

Acordei do áureo sonho em sobressalto:
Do céu tombei ao caos dos meus martírios,
Sem saber para que subi tão alto.


* Carme - Versos líricos, canto, poema.
* Alcandorar - Colocar-se alto, guindar-se, subir.


Djanira, "Ceia carioca"



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

Eucanaã Ferraz, "O soldado"


Ali está meu pai, os olhos pequeninos,
não esqueço. E as pernas marcadas
pelos estilhaços das granadas, romãs

amargas. Sobrevivente de Monte Castelo.
Na fotografia, serão talvez uns trinta,
e parecem todos exatamente iguais,

tão mínimas as variações, tão larga a série.
A hierarquia é uma mentira, são todos
soldados, assim enganados, graves.