sábado, 29 de junho de 2013

Karmelo Iribarren, "Ao limite"


Tens vinte anos,
tens a vida
no colo,
à tua mercê,
mas não é o suficiente,
queres mais.

Conheço
esta sensação.

E te desejo muita sorte,
porque vais precisar.

Tradução amadora minha.

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Cecília Meireles, "Elegia"


Perto da tua sepultura,
trazida pelo humilde sonho
que fez a minha desventura,
mal minhas mãos na terra ponho,
logo estranhamente as retiro.
Neste limiar de indiferença,
não posso abrir a tênue rosa
do mais espiritual suspiro.
Jazes com a estranha, a muda, a imensa
Amada eterna e tenebrosa
pelas tuas mãos escolhida
para teu convívio absoluto.
Por isso me retraio certa
de que é pura felicidade
a terra densa que te aperta.
E por entre as pedras serenas
desliza o meu tímido luto,
com uma quieta lágrima, apenas,
- esse humano, doce atributo.


(Provavelmente dedicado ao primeiro marido, que se suicidou.)

quarta-feira, 26 de junho de 2013

Álvaro de Campos, "Se te queres matar ..."


 Se te queres matar, porque não te queres matar?
Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste;
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?

Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem.
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?

És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...

terça-feira, 25 de junho de 2013

Ronald de Carvalho, "Sabedoria"


Enquanto disputam os doutores gravemente
sobre a natureza
do bem e do mal, do erro e da verdade,
do consciente e do inconsciente;
enquanto disputam os doutores sutilíssimos,
aproveita o momento!

Faze da tua realidade
uma obra de beleza

Só uma vez amadurece,
efêmero imprudente,
o cacho de uvas que o acaso te oferece...
 

segunda-feira, 24 de junho de 2013

domingo, 23 de junho de 2013

Darcy Ribeiro













"Idos e sidos"

Que é que fiz, não fiz, de mim?
Que é que fiz na vida, da vida?
Quem sou eu? Esse eu que me sou.

Minhas mãos me pendem soltas.
Inúteis para fazimentos.
Só servem para escrever, acarinhar.

Não sei dançar, nunca soube.
Olho, idiota, o céu estrelado.
Não conheço estrela nenhuma.

As árvores, tantíssimas, que vi,
Recordo inumeráveis, enormíssimas,
Não sei quem são.

Diante das flores me extasio.
Tolo, só reconheço rosas, orquídeas, cravos.
A música clássica me atordoa, cansa.

Quem sou eu, septuagenário,
Que esgoto meu tempo de me ser aqui?
Insciente, perplexo, inexplicado.

Só cheio de saudades de mim.
De tantos eus que fui. Sidos. Idos.
Somos descartáveis, sei, mas dói.
 


sexta-feira, 21 de junho de 2013

Oswald de Andrade










"Risco"

Um poema livre
da gramática, do som
das palavras
livre
de traços

Um poema irmão
de outros poemas
que bebem a correnteza
e brilham
pedras ao sol

Um poema
sem o gosto
de minha boca
livre da marca
de dentes em seu dorso

Um poema nascido
nas esquinas nos muros
com palavras pobres
com palavras podres
e
que de tão livre

traga em si a decisão
de ser escrito ou não
 

Marcelo Grassmann





"A grande batalha é você lutar contra o aplauso fácil".

Marcelo Grassmann - São Simão - 1925 /  São Paulo -  2013

Desenho de Vicente do Rego Monteiro.


quinta-feira, 20 de junho de 2013

Bertold Brecht












"A solução"

Depois da rebelião do 17 de junho
O secretário da Associação dos escritores
mandou distribuir panfletos na Alameda Stalin
Onde se podia ler que o povo havia
Levianamente perdido a confiança no governo
E somente a reconquistaria
mediante trabalho dobrado. Ora,
Não seria bem mais fácil
Se o governo dissolvesse o povo e
Elegesse um outro?

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Miguel Torga















"Pânico"

Nestas horas sem versos,
É o silêncio da morte que adivinho.
Um silêncio maninho*
Que entorpece os sentidos.
A vida
Anoitecida
Na lembrança,
Com todos os pecados cometidos
Já sem peso no prato da balança.
Assim são condenados os poetas
à visão do seu nada.
Quando as musas cruéis os emudecem.
Quando parecem
Múmias a apodrecer.
Quando em vão querem ter
A voz passada.
A voz insone que os fazia ser
Os arautos da eterna madrugada.

*Maninho - adj. estéril, improdutivo, infértil.

domingo, 16 de junho de 2013

Alexandre O'Neill, "Perfilados de medo"


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido…

sexta-feira, 14 de junho de 2013

Cecília Meireles, "Não temos bens, não temos terra ..."


Não temos bens, não temos terra
e não vemos nenhum parente.
Os amigos já estão na morte
e o resto é incerto e indiferente.
Entre vozes contraditórias,
chama-se Deus onipotente:
Deus respondia no passado,
mas não responde, no presente.
Por que esperança ou que cegueira
damos um  passo para frente?
Desarmados de corpo e de alma,
vivendo do que a dor consente,
sonhamos falar - não falamos;
sonhamos sentir - ninguém sente;
sonhamos viver - mas o mundo
desaba inopinadamente.
E marchamos sobre o horizonte:
cinzas no oriente e no ocidente;
e nem chegada nem retorno
para a imensa turba inconsciente.
A vida apenas à nossa alma
brada este aviso imenso e urgente?

Sonhamos ser. Mas ai, que somos,
entre esta alucinada gente?

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Lêdo Ivo, "Pela última vez"


Na igreja, abre-se de novo o ataúde
e os acompanhantes tornam a contemplar o rosto do defunto.
Ó Morte, onde está a tua vitória?
Toda sepultura é um berço no chão do universo.
Como a aragem que faz tremer a relva
foste apenas um instante. Ninguém te encontrará
quando voltar a renascer entre as estrelas.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Manuel Bandeira, "Soneto inglês nº 2"


Aceitar o castigo imerecido,
Não por fraqueza, mas por altivez.
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com que o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então
    Morrer sem uma lágrima, que a vida
    Não vale a pena e a dor de ser vivida.

segunda-feira, 10 de junho de 2013

Alphonsus de Guimaraens, "Encontrei-te. Era o mês... "


Encontrei-te. Era o mês...Que importa o mês? agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março,
Brilhasse o luar, que importa? ou fosse o sol já posto,
No teu olhar todo o meu sonho andava esparso.

Que saudades do amor na aurora do teu rosto,
Que horizonte de fé no olhar tranquilo e garço*!
Nunca mais me lembrei se era no mês de agosto,
Setembro, outubro, maio, abril, janeiro ou março.

Encontrei-te. Depois... depois tudo se some:
Desfaz-se o teu olhar em nuvens de ouro e poeira...
Era o dia... Que importa o dia, um simples nome?

Ou sábado sem luz, domingo sem conforto,
Segunda, terça ou quarta ou quinta ou sexta-feira,
Brilhasse o sol, que importa? ou fosse o luar já morto!

* Garço - adj. Esverdeado, verde azulado.

sábado, 8 de junho de 2013

Miguel Torga, "Haja temeridade"


Sobre a ponte insegura é que é passar!
Fica o rio a correr dentro das veias,
Quanta angústia levar,
Quantas areias
De oiro
Ou de ilusão.
É como se nos fossem afogar
A inquietação.

Arcos de ferro ou de granito
E sólidos soalhos de varanda
Não me parecem piso de quem anda
A descobrir as formas imprecisas
Desta humana aventura.
Só de credo na boca vale a pena
Olhar a vida, que da sepultura
Nos acena.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Lau Siqueira













"artéria em pausa"
 

não pintaremos as bandeiras da farsa
ou da hipocrisia


nem esqueceremos as rimas
dos que trafegam nas palavras
acolhedoras de pior desfecho

não fecharemos os olhos
para o que não pode ser visto
nem deixaremos nossas mãos
alheias ao que germina


as palavras são uma espécie
de coisa nenhuma
as olheiras do sol
não explicam a noite anterior

tudo está posto

sinta o gosto

 

Copiado do site http://poesia-sim-poesia.blogspot.com.br/

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Ana Cristina Cesar













"Nestas circunstâncias o beija-flor vem sempre aos milhares"

Este é o quarto Augusto.
Avisou que vinha.
Lavei os sovacos e os pezinhos.
Preparei o chá. Caso ele me cheirasse...
Ai que enjoo me dá o açúcar do desejo.

terça-feira, 4 de junho de 2013

Jorge Luis Borges, "Ausência"


Haverei de edificar a vasta vida
que ainda agora é teu espelho:
toda manhã haverei de reconstruí-la.
Desde que te afastastes,
tantos lugares tornaram-se inúteis
e sem sentido, como
luzes ao dia.
Tardes que foram nichos da tua imagem,
músicas onde sempre me aguardavas,
palavras daquele tempo,
eu terei que quebra-las com as próprias mãos.
Em que profundezas esconderei minha alma
para que não enxergue a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e desapiedada?
Tua ausência me rodeia
como a corda ao pescoço,
o mar ao que naufraga.

Tradução amadora minha.

domingo, 2 de junho de 2013

José Paulo Paes













"O aluno"

São meus todos os versos já cantados:
A flor, a rua, as músicas da infância,
O líquido momento e os azulados
Horizontes perdidos na distância.

Intacto me revejo nos mil lados
De um só poema. Nas lâminas da estância,
Circulam as memórias e a substância
De palavras, de gestos isolados.

São meus também os líricos sapatos
De Rimbaud, e no fundo dos meus atos
Canta a doçura triste de Bandeira.

Drummond me empresta sempre o seu bigode.
Com Neruda, meu pobre verso explode
E as borboletas dançam na algibeira.

sábado, 1 de junho de 2013

Sebastião Alba, "Ninguém meu amor"


Ninguém meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Podem utilizá-lo nos espelhos
apagar com ele
os barcos
de papel dos nossos lagos
podem obriga-lo a parar
à entrada das casas mais baixas
podem ainda fazer
com que a noite gravite
hoje no mesmo lado
Mas ninguém  meu amor
ninguém como nós conhece o sol
Até que o sol degole
o horizonte em que um a um
nos deitam
vendando-nos os olhos.