sexta-feira, 30 de setembro de 2011

Eugénio de Andrade, "Às vezes ..."

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus

Cecília Meireles, "Máquina breve"

O pequeno vaga-lume
com sua verde lanterna,
que passava pela sombra
inquietando a flor e a treva
— meteoro da noite, humilde,
dos horizontes da relva;
o pequeno vaga-lume,
queimada a sua lanterna,
jaz carbonizado e triste
e qualquer brisa o carrega:
mortalha de exíguas franjas
que foi seu corpo de festa.

Parecia uma esmeralda
e é um ponto negro na pedra.
Foi luz alada, pequena
estrela em rápida seta.
Quebrou-se a máquina breve
na precipitada queda.
E o maior sábio do mundo
sabe que não a conserta.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Menotti Del Picchia, "Noite"

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Ivan Junqueira, "E se eu disser ..."

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

domingo, 25 de setembro de 2011

João Cabral de Melo Neto




"O fogo no canavial"

A imagem mais viva do inferno.
Eis o fogo em todos seus vícios:
eis a ópera, o ódio, o energúmeno,
a voz rouca de fera em cio.
E contagioso, como outrora
foi, e hoje, não é mais, o inferno:
ele se catapulta, exporta,
em brulotes* de curso aéreo,
em petardos que se disparam
sem pontaria, intransitivos;

mas que queimada a palha dormem,
bêbados, curtindo seu litro.
(O inferno foi fogo de vista,
ou de palha, queimou as saias:
deixou nua a perna da cana,
despiu-a, mas sem deflorá-la.)

*Brulote - Navio carregado de material inflamável que após ser incendiado era lançado sem tripulantes sobre a frota inimiga.

sábado, 24 de setembro de 2011

Cecília Meireles, "Não tem mais lar"

Não tem mais lar o que mora em tudo.
Não há mais dádivas
Para o que não tem mãos.
Não há mundos nem caminhos
Para o que é maior que os caminhos
E os mundos.
Não há mais nada além de ti,
Porque te dispersaste...
Circulas em todas as coisas
E todos te sentem
Sentem-te como a si mesmos

E não sabem falar de ti.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Olavo Bilac, "A Bocage"

Tu, que no pego impuro das orgias
Mergulhavas ansioso e descontente,
E, quando à tona vinhas de repente,
Cheias as mãos de pérolas trazias;

Tu, que do amor e pelo amor vivias,
E que, como de límpida nascente,
Dos lábios e dos olhos a torrente
Dos versos e das lágrimas vertias;

Mestre querido! viverás, enquanto
Houver quem pulse o mágico instrumento,
E preze a língua que prezavas tanto:

E enquanto houver num canto do universo
Quem ame e sofra, e amor e sofrimento
Saiba, chorando, traduzir no verso.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Ariano Suassuna, "Abertura sob pele de ovelha"

Falso Profeta, insone, Extraviado,
Vivo, Cego, a sondar o Indecifrável:
e, jaguar da Sibila- inevitável,
meu Sangue traça a rota desse Fado.
Eu, forçado a ascender, eu, Mutilado,
busco a Estrela que chama, inapelável.
E a pulsação do Ser, fera indomável,
arde ao Sol do meu Pasto- incendiado.
Por sobre a Dor, Sarça do Espinheiro
que acende o estranho Sol, sangue do ser,
transforma o sangue em Candelabro e Veiro.
Por isso, não vou nunca envelhecer:
com meu Cantar, supero o Desespero,
sou contra a Morte e nunca hei de morrer.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Jorge Luis Borges, "Um amanhã"

Louvada seja a misericórdia
De Quem, completos meus setenta anos
E selados meus olhos,
Salva-me da venerada velhice
E das galerias de precisos espelhos
Desses dias iguais
E dos protocolos, molduras e cátedras
E da assinatura de incansáveis papéis
Para os arquivos do pó
E dos livros, que são simulacros da memória,
E me prodiga o animoso desterro,
Que talvez seja a forma essencial do destino argentino,
E o acaso e a jovem aventura
E a dignidade do perigo,
Conforme opinou Samuel Johnson.
Eu, que sofri a vergonha
De não ter sido aquele Francisco Borges que morreu em 1874
Ou meu pai, que ensinou a seus discípulos
O amor à psicologia e não acreditou nela,
Esquecerei as letras que me deram alguma fama,
Serei homem de Austin, de Edimburgo, da Espanha,
E buscarei a aurora em meu ocidente.
Na ubíqua memória serás minha,
Pátria, e não na fração de cada dia.

domingo, 18 de setembro de 2011

Jorge de Lima, "Qualquer poema"

Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,

coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.

Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Eucanaã Ferraz, "Cantiga"

Pensar que o vi hoje à tarde
não passou de um traço rápido
que a saudade acendeu por engano.

Onde andará o meu amigo ? Ilíadas
em tumulto, ondas sem descanso,
transparência sem desfecho, a cidade

é água sem memória. Fecho os olhos
e ouço sua voz dizendo-me eu vim,
sou o sábado que ficará contigo.

Onde andará a árvore, a copa alta
que se fez no meu caminho ?
Onde andará o meu amigo ?

A mudez de tudo diz-me
que esqueça ? Insisto. Não descanso,
não arrumo os livros, não deito

a âncora, não deito a lâmpada.
E minha cantiga há de queimar-
se toda assim, antiga, ridícula.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Jorge de Sena, "Quem muito viu ..."

Quem muito viu, sofreu, passou trabalhos,
mágoas, humilhações, tristes surpresas;
e foi traído, e foi roubado, e foi
privado em extremo da justiça justa;

e andou terras e gentes, conheceu
os mundos e submundos; e viveu
dentro de si o amor de ter criado;
quem tudo leu e amou, quem tudo foi –

não sabe nada, nem triunfar lhe cabe
em sorte como a todos os que vivem.
Apenas não viver lhe dava tudo.

Inquieto e franco, altivo e carinhoso,
será sempre sem pátria. E a própria morte,
quando o buscar, há-de encontrá-lo morto.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Orides Fontela












"Homenagem" II

Mário Quintana

Exorcizar os ventos
anular as estátuas
recuperar os anjos
- instaurar a alegria.

Para instaurar jardins:
desencantar as fadas
dissolver os rochedos
devorar as esfinges.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Ivan Junqueira, "A mão que escreve"

A mão que escreve é aquela
que não pôde, inepta,
agarrar o que lhe era
devido nesta gleba:
glória, insígnias, troféus
e algo enfim que soubesse
àquilo a que, incrédulos,
chamamos vida eterna.

A mão que escreve é aquela
cujas linhas, babélicas,
descumpriam o périplo
que lhes previa a esfera
de um trismegístico Hermes,
e que, por dolo e inércia,
deixou perder-se a pérola
que arrancara do pélago.

A mão que escreve é aquela
que foi, além de réproba
e amiúde analfabeta,
muitas vezes canhestra:
urdiu frases sem nexo,
bateu-se em tolos duelos
e excedeu-se, sem rédeas.

A mão que escreve é aquela
que compôs alguns versos,
odes, canções de gesta
e elegias sem metro,
às quais ninguém deu crédito
nem ouvidos. Aquela
que ergueu um brinde aos féretros
de uma insepulta Grécia.

domingo, 11 de setembro de 2011

sábado, 10 de setembro de 2011

João Cabral de Melo Neto


















"Exceção: Bernanos, que se dizia escritor de sala de jantar"

Por que é o mesmo o pudor
de escrever e defecar?
Não há o pudor de comer,
de beber, de incorporar,
e em geral tem mais pudor
quem pede do que quem dá.
Então por que quem escreve,
se escrever é afinal dar,
evita gente por perto
e procura se isolar?

Escrever é estar no extremo
de si mesmo, e quem está
assim se exercendo nessa
nudez, a mais nua que há,
tem pudor de que outros vejam
o que deve haver de esgar,
de tiques, de gestos falhos,
de pouco espetacular
na torta visão de uma alma
no pleno estertor de criar.

(Mas no pudor do escritor
o mais curioso está
em que o pudor de fazer
é impudor de publicar:
com o feito, o pudor se faz
se exibir, se demonstrar,
mesmo nos que não fazendo
profissão de confessar,
não fazem para se expor
mas dar a ver o que há.)

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Cassiano Ricardo, "Poderia ter sido eu"

I - O MENINO 1904

Quem não guardou, entre as recordações da infância,
o cego do realejo, com o seu pássaro ?
Aquele que - olhos brancos na órbita
da manhã rosa -
em cada esquina faz ressoar o seu lamurioso instrumento
à manivela ?

O cego do realejo, com o seu pássaro,
parou em frente à casa onde nasci (era eu menino)
e aí tocou a sua música mais dolorosa,
mais estridente.
Os transeuntes se aglomeraram em torno.
E logo o pássaro, por um vão da gaiola,
que havia ao lado do instrumento,
canário mágico, que parecia obediente a uma determinação
                                                                                                        [invisível,
me trouxe, preso ao bico,
um pequeno bilhete azul, retangular,
onde se achava escrito o meu futuro.

Hoje eu perguntaria :
a grade da gaiola de onde o pássaro
distribuía o futuro,
não era, ao mesmo tempo, uma outra grade
- a minha, a em que eu é que estou preso ?

II - O PÁSSARO E OS ACONTECIMENTOS

Mas, que dizia o pássaro
quando me fez presente do futuro ?
Que o cometa Halley me derramaria prata
nos olhos ; derramou.
Que eu ficaria louco. (Fiquei.)
Pois ando, só, de lunocípede.
Que eu morreria, ao todo, sete vezes
(já morri quatro.)
Que eu seria obrigado, por ofício,
a atravessar salões de baile (atravessei)
como um besouro rútilo a se debater numa floresta
de espelhos;
a ser exatamente (e eu fui)
o que menos quisesse ser, a parecer
o que menos fosse,
no mundo, onde é proibido ser sincero.
Que eu seria parente dos pássaros
(e eu sou mesmo)
por causa da asa, irmã do meu pensamento.
Que o santo de minha predileção
seria S. Francisco de Assis.
Realmente, S. Francisco é o meu santo.
(Aquele com quem aprendo a ser simples,
simples como a água, e irmão do pirilampo.)
Que os meus maiores inimigos
seriam a complicação, o ornato,
o colarinho duro, o parnasianismo
e a gravata.,
e - de fato - a minha luta
é a da humildade
contra a complicação, o ornamental,
o excesso.
(Sou um bicho de concha
sem nenhuma fosforescência).
Que eu não seria presidente da República.
(Não fui.)

Mas eu não fui, também,
outras coisas, obscuras ou brilhantes,
que poderia ter sido no baralho humano
do espelho,
ou no cruzamento de uma rua com outra.

III - MONÓLOGO, SOB UMA ÁRVORE NA PRAÇA ONZE

Ainda menino, eu vi passar o homicida.
Ia levado pelos policiais, seguido
pela multidão, que lhe queria ver o rosto,
pálido, transfigurado.
Imaginei-me em seu lugar e, através desse pensamento
“poderia ter sido eu”,
me vi arrastado, preso, esbofeteado
por meus irmãos, de rua em rua.

Meteram-me na prisão, queriam que eu falasse
o que não sabia. Amarraram-me as mãos,
uma à outra, as duas para o lado das costas,
e o escrivão - sem que eu dissesse nada -
bateu à máquina, os monossílabos - que arrancou ao meu corpo,
como se arrancam folhas de uma árvore.
Voltei do pesadelo, examinei a minha roupa,
não havia sinal de sangue, não havia sido
eu.
O que havia era o tráfego, os sinais luminosos,
os títulos dos jornais,
as cruzes, as encruzilhadas, que dançavam
em torno do meu ser, a dança mágica
do eu não ter sido.

O cego do realejo e o pássaro fizeram,
muitas vezes a volta ao mundo.
As estrelas passaram voando em caminho do oeste.
A esperança moveu a roda verde.

E agora
estou embaixo desta árvore em flor,
mas ainda tenho o coração batendo:
poderia ter sido eu.

E agora,
a paisagem caminha pra um lado, a lua
pra outro, dividindo a noite pelo meio.
Só as árvores é que ficam sentadas. Só eu
estou sentado sob esta árvore. Mas ...
(ainda tenho o coração batendo)
poderia ter sido eu.


IV - A ROSA DAS TRÊS GRAÇAS

Mas não o que matou, somente,
poderia ter sido eu.
O que roubou, o que cobiçou o bem do próximo,
o que falsificou a assinatura do gerente do banco,
o que assaltou na rua o transeunte,
o que embarcou por um navio o corpo em sangue e ouro
                                                                             [da mulher assassinada,
qualquer deles, enfim, no signo da balança,
poderia ter sido eu.
Por um minuto a menos - entre a rosa e o luto -,
ou a mais, no punhal da hora exata,
na corola dos números de prata.
A quem agradecer o eu não ter sido ?
A mim mesmo ? Tanto egoísmo fluorescente,
não caberia num vidro assim tão frágil.
A Deus ? Devo reconhecer que Deus
é que escolhe - Ele próprio - os que devem ser maus,
entre as cabeças louras da inocência.

Não será a Deus, indiferente a este jogo,
em que os culpados é que fazem os inocentes ?
Em que uns tem que fazer o mal
para que os outros não o façam. Entre doze,
um está escrito.

Será ao próprio ladrão, ao falsificador,
ao que roubou ao próximo o seu único amor,
que devo agradecer o terem feito
o que não fiz ?

(Os inocentes deverão beijar, como um pássaro às flores,
as mãos dos culpados.)
E saio entre a multidão, e corro a procurá-los,
aqui e ali, na floresta andarilha.
Entre ângulos faciais, cada qual mais obscuro.
(Que eles estarão, sempre, no desencontro de uma rua com outra.)

No afã de lhes levar meu agradecimento.

Mas eles compreenderão meu agradecimento ?

Compreenderão que lhes agradeço é a graça
de terem feito o que não fiz ? ou de haverem cumprido,
em meu lugar, uma sentença bíblica ?

Rua cheia de rostos glabros nas janelas
da noite mais vertical que universal.
Anúncios que ora acendem, ora apagam (não havia)
as sílabas verdes do (sido eu) dicionário
noturno.

(Não pensarão que sou um louco, um cúmplice,
um detetive, um oficial de justiça ?)

As palavras caídas na água das calçadas.
Sido. Havia. Não. Eu.
A cruz móvel das ruas, cruz do povo,
e as quatro asas : o oeste, o leste, o norte, o sul,
já inúteis em meu corpo
à hora do desastre, um grito, a interrupção do trânsito.

(Poderia ter sido eu !)

V - O IRMÃO INGLÓRIO

Mas, como agradecer ao assassino,
ao ladrão. ao falsário - o que fizeram,
sem me pungir, além do que fizeram ?
Se a dor dos outros nunca foi tão minha ?
no caminho que vai entre as estrelas

e o número de uma porta de casa ?
no jogo das fatalidades, rosa e luto ?
Se não encontro a rosa das três graças ?

Se nunca fui tão responsável
pelo que os outros fazem, como nesta hora
simbólica e putativa ?

Se sou eu, entre os bichos e as flores,
irmão inglório mas obrigatório
dos que - como eu - nasceram homens,
o coração batendo entre Abel e Caim ?
Se escorre, por meus olhos,
o sangue do transeunte ?

VI - AGRADECIMENTO POR UM VÃO DE GRADE

Ah, eu quero agradecer - agora o sei - é ao pássaro inocente
por não ter incluído
esses terríveis acontecimentos,
essas sílabas verdes no destino
que me entregou pelo vão da gaiola
enquanto o cego (para isso ele era cego)
tocava o seu realejo.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Luís Miguel Nava, "Basalto"

Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Clarice Lispector, "Por não estarem distraídos"

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

domingo, 4 de setembro de 2011

Jorge de Lima, "Cantigas"

As cantigas lavam a roupa das lavadeiras.
As cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras
ficam tão tristes, tão pensativas!

As cantigas tangem os bois dos boiadeiros!
Os bois são morosos, a carga é tão grande!
O caminho é tão comprido que não tem fim.
As cantigas são leves...
E as cantigas levam os bois, batem a roupa
das lavadeiras.

As almas negras pesam tanto, são
tão sujas como a roupa, tão pesadas
como os bois...
As cantigas são tão boas...
Lavam as almas dos pecadores!
Levam as almas dos pecadores!

sábado, 3 de setembro de 2011

Miguel Torga, "Relato"

Foi longo o meu caminho de poeta,
Com versos de agonia demorada:
A vida imaginada
Paralela
à outra, acontecida.
E ambas a enfunar a mesma vela
Já sem rumo à partida.

Os áugures previam,
Os mapas ensinavam,
A bússola apontava...
Mas faltava-me a fé das almas confiadas.
Teimoso, repetia
A pergunta inquieta que fazia
Ao vazio das horas navegadas.

Que certa direcçäo
Dar ao timão
Numa viagem sem qualquer sentido?
O mar diariamente enfurecido,
O céu diariamente enevoado,
E o barco fatalmente conduzido
A um cais de morte sempre adivinhado...


quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Jorge de Lima,"Poema VI do Canto VI - Canto da Desaparição - da Invenção do Orfeu.

Nem as boninas e outras flores nem
a mais humilde relva, nem os ventos,
nada participava da quietude
absoluta, absoluta, eternamente

absoluta daquela pedra de
tumba, compacta, lisa, desprezada.
Nem ninguém se lembrava da criatura
e de seus sofrimentos e de sua

atormentada vida ali deixada.
Nem tristeza talvez nem alegria,
não mais perpassam sobre a sua face

Parada, indiferente mesmo à morte
que ela encerrou em treva, e esquecimento,
e o próprio esquecimento abandonou.