quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Murilo Mendes










"Choro do poeta atual"

Deram-me um corpo, só um!
Para suportar calado
Tantas almas desunidas
Que esbarram umas nas outras,
De tantas idades diversas;
Uma nasceu muito antes
De eu aparecer no mundo,
Outra nasceu com este corpo,
Outra está nascendo agora,
Há outras, nem sei direito,
São minhas filhas naturais,
Deliram dentro de mim,
Querem mudar de lugar,
Cada uma quer uma coisa,
Nunca mais tenho sossego.
Ó Deus, se existis, juntai
Minhas almas desencontradas.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

José Régio, "Exortação ao meu anjo"

Quando eu me deixar cair
No sonho de adoecer para poder dormir,
Fere-me com a tua lança!
Reaviva em mim a dor, fonte de esperança.

Quando a verdade, que é nua,
Me cegar como um sol, e eu me voltar para onde há lua,
E procurar jardins convencionais e plácidos,
Queima-me com os teus olhos ácidos!

Quando me for mais fácil a verdade do que ter
Um papel de actor qualquer,
Como aos que assim se recreiam,
Faz-me exibir-me bobo ante os que aplaudem ou pateiam.

Quando eu julgar, falando, dizer tudo,
Faz ante mim sorrir teu lábio mudo!
Quando eu me poupe a falar,
Aperta-me a garganta e obriga-me a gritar!

Quando eu tiver medo do Medo
E acender fósforos nos cantos rumorosos de segredo,
Arrasta-me pelos cabelos
Para entre os pesadelos!

Quando, a meio da noite e da ansiedade,
Eu me rojar por terra e te pedir piedade
Não me apareças nem me fales!
Deixa-me só com o meu cálix.

Quando eu te falsificar,
E alugar anjos de serrim para em seus braços me embalar,
Derrete o chumbo das casas:
Leva-me no tufão das tuas asas!

Quando eu, enfim, não puder mais,
Por tuas próprias mãos belíssimas e leais,
E sem caixões nem mortalhas,
Enterra-me na terra das batalhas.

Quando, depois de morto, a glória
Me levantar o seu jazigo e celebrar minha vitória,
Desvenda os alçapões dos meus escritos
E arranca à terra que me esconde os mais secretos
                                                                                [dos meus gritos!

domingo, 28 de agosto de 2011

Ivan Junqueira









"Quando solene e agudo"

Quando solene e agudo eu te penetro,
mais agudo que o gume de uma adaga,
e à tua ilharga, que de suor se alaga,
me enlaço como quem abraça um cetro,
e lambo a tua espádua que naufraga
sob o sêmen fugaz com que perpetro
em ti o que não falo ou mal soletro
tal o peso do pasmo que me esmaga,
sou como um rei na cripta de uma vaga
cuja espuma engalana cada imagem
ou palavra que ruge na voragem
das páginas sagradas desta saga.
Quando me afundo em ti, útero adentro,
como Deus, numa esfera, estou no centro.


sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Luís Miguel Nava, "O real"

Levado e revolvido pelas vagas
do real, estou como numa mesa posto até aos ossos,
empresto à página os meus ossos e ao escrever
é como se tivesse a mão dentro dum espelho.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Eucanaã Ferraz, "Extremo"

Rompeste do amor
o ramo
com a facilidade que

e, quanto a mim, não pude
a brevidade, o vento, o susto,
a dúvida,

nenhum espanto no teu rosto reto e sem olhos
frente às palavras que te trazia
quando,

apodrecem ao pé de mim,
faz frio, são horas, o chão
coalhado de insetos, versos,

o amor, o ramo,
teus dedos nenhuns,
é tarde, abertos

e vazios, até mais ver,
uma nuvem, um nó,
e cai.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Lya Luft, "Canção do amor sereno"

Vem sem receio: eu te recebo
Como um dom dos deuses do deserto
Que decretaram minha trégua, e permitiram
Que o mel de teus olhos me invadisse.

Quero que o meu amor te faça livre,
Que meus dedos não te prendam
Mas contornem teu raro perfil
Como lábios tocam um anel sagrado.

Quero que o meu amor te seja enfeite
E conforto, porto de partida para a fundação
Do teu reino, em que a sombra
Seja abrigo e ilha.

Quero que o meu amor te seja leve
Como se dançasse numa praia uma menina.



segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Federico García Lorca













"E depois"

Os labirintos
que cria o tempo
se desvanecem.

(Só fica
o deserto.)

O coração,
fonte do desejo,
se desvanece.

(Só fica
o deserto.)

A ilusão da aurora
e os beijos
se desvanecem.

Só fica
o deserto.
Um ondulado
deserto.

Tradução de William Agel de Mello

domingo, 21 de agosto de 2011

sábado, 20 de agosto de 2011

Sergiu Celibidache, o Réquiem de Mozart (após o ensaio) - Parte III

Sergiu Celibidache ensaiando o Réquien de Mozart - Parte I




Sergiu Celibidache ensaiando o Réquiem de Mozart - Parte II



Rainer Maria Rilke
























"Morgue"

Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

Tradução de Augusto de Campos



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Hilda Hilst, "Toma para teu gozo ..."

Toma para teu gozo
Este rio de saudade.
Nenhum recobrirá teu corpo
Com tamanha leveza
E tal gosto.

Ainda que sejam muitos
Os largos rios da Terra.

Toma para teu gozo
Minha dor e insanidade
De nunca voltar a ver
Meu próprio rosto.
E aguarda uma tarde sem tempo
Quando serei apenas retalhada

Um espelho molhado de umas águas.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Mario Quintana

















"Poema em três movimentos"

                                            I

Nossos gestos eram simples e transcendentais.
Não dissemos nada
nada de mais...
Mas a tarde ficou transfigurada
- como se Deus houvesse mudado
imperceptivelmente
um invisível cenário.

                                            II

Eu te amo tanto que
sou capaz de nos atirarmos os dois na cratera do Fuji-Yama!
Mas, aqui,
o amor é um barato romance pornô esquecido em cima da cama
depois que cada um partiu - sem saionara nem nada -
por uma porta diferente.

                                            III

E em que mundo? Em que outro mundo vim parar,
que nada reconheço?
Agora, a tua voz nas minhas veias corre...
o teu olhar imensamente verde ilumina o meu quarto.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Vinícius de Moraes, "O mergulhador"

                                            “E il naufragar m’è dolce in questo mare”.
                                                                                        LEOPARDI

Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos
No líquido luar tateiam a coisa a vir,
Assim, dentro do ar, meus lentos dedos loucos
Passeiam no teu corpo a te buscar-te a ti.

És a princípio doce plasma submarino
Flutuando ao sabor de súbitas correntes
Frias e quentes, substância estranha e íntima
De teor irreal e tato transparente.

Depois, teu seio é a infância, duna mansa
Cheia de alísios, marco espectral do istmo
Onde, a nudez vestida só de lua branca
Eu ia mergulhar minha face já triste.

Nele soterro a mão como a cravei criança
Noutro seio de que me lembro, também pleno…
Mas não sei… o ímpeto deste é doido e espanta,
O outro me dava vida, este me mete medo.

Toco uma a uma as doces glândulas em feixes
Com a sensação que tinha ao mergulhar os dedos
Na massa cintilante e convulsa de peixes
Retiradas ao mar nas grandes redes pensas.

E ponho-me a cismar… – mulher, como te expandes!
Que imensa és tu! maior que o mar, maior que a infância!
De coordenadas tais e horizontes tão grandes
Que assim imersa em amor és uma Atlântida!

Vem-me a vontade de matar em ti toda a poesia.
Tenho-te em garra; olhas-me apenas; e ouço
No tato acelerar-se-me o sangue, na arritmia
Que faz meu corpo vil querer teu corpo moço.

E te amo, e te amo, e te amo, e te amo
Como o bicho feroz ama, a morder, a fêmea,
Como o mar ao penhasco onde se atira insano
E onde a bramir se aplaca e a que retorna sempre.

Tenho-te e dou-me a ti válido e indissolúvel,
Buscando a cada vez, entre tudo o que enerva
O imo do teu ser, o vórtice absoluto
Onde possa colher a grande flor da treva.

Amo-te os longos pés, ainda infantis e lentos
Na tua criação; amo-te as hastes tenras
Que sobem em suaves espirais adolescentes
E infinitas, de toque exato e frêmito.

Amo-te os braços juvenis que abraçam
Confiantes meu criminoso desvario
E as desveladas mãos, as mãos multiplicantes
Que em cardume acompanham o meu nadar sombrio.

Amo-te o colo pleno, onda de pluma e âmbar,
Onda lenta e sozinha onde se exaure o mar
E onde é bom mergulhar até romper-me o sangue
E me afogar de amor e chorar e chorar.

Amo-te os grandes olhos sobre-humanos
Nos quais, mergulhador, sondo a escura voragem
Na ânsia de descobrir, nos mais fundos arcanos
Sob o oceano, oceanos; e além, a minha imagem.

Por isso — isso e ainda mais que a poesia não ousa
Quando depois de muito mar, de muito amor
Emergindo de ti, ah, que silêncio pousa…
Ah, que tristeza cai sobre o mergulhador!


domingo, 14 de agosto de 2011

Cecília Meireles, "Humildade"

Tanto que fazer !
livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis ...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redomas de cânfora.

(E uma canção tão bela).

Tanto que fazer !
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

sábado, 13 de agosto de 2011

José Régio





















"Improviso corrigido"

Se minto? Quantas vezes!
Mas em palavras. Não
Nos meus olhos castanhos portugueses,
Nestas linhas atávicas da mão...
Se minto? ... Minto, pois!
Mas nas orais palavras que vos digo,
Não nas que entôo a sós comigo,
E em que enfim deixo de ser dois.
Não nas que entrego a músicas, miragens,
Alegorias, fábulas, mentiras,
Cadências, símbolos, imagens.
Ecos da minha e mil milhões de liras.
Se minto?...Minto! É regra de viver.
Mas não quando, poeta, me desnudo,
E a mim me visto de inocência, e a tudo.
Venha quem saiba ver!
Venha quem saiba ler!

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Augusto dos Anjos, "À mesa"

Cedo à sofreguidão do estômago. É a hora
De comer. Coisa hedionda! Corro. E agora,
Antegozando a ensangüentada presa,
Rodeado pelas moscas repugnantes,
Para comer meus próprios semelhantes
              Eis-me sentado à mesa!

Como porções de carne morta... Ai! Como
Os que, como eu, têm carne; com este assomo
Que a espécie humana em comer carne tem!...
Como! E pois que a Razão não me reprime,
Possa a terra vingar-se do meu crime
              Comendo-me também.


quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Poema de Judith Teixeira e desenho de Carlos Leão.























"A minha amante"

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
há quem me tenha ouvido gritar
pelo teu nome…

Dizem - e eu não protesto -
que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
para te esquecer…
E que de noite pelos corredores,
quando vou passando para te ir buscar,
levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo -
Não entendem deste luar de beijos…
- Há quem lhe chame a tara perversa,
dum ser destrambelhado e sensual !
Chamam-te o génio do mal -
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és tu que doiras ainda
o meu castelo em ruína…
Que fazes da hora má, a hora linda
dos meus sonhos voluptuosos -
Não faltes aos meus apelos dolorosos
- Adormenta esta dor que me domina!

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Cecília Meireles, "Vigilia"

Como o companheiro é morto,
todos juntos morreremos
um pouco.

O valor de nossas lágrimas
sobre quem perdeu a vida
não é nada.

Amá-lo, nesta tristeza,
é suspiro numa selva
imensa.

Por fidelidade reta
ao companheiro perdido,
que nos resta ?

Deixar-nos morrer um pouco
por aquele que hoje vemos
todo morto.



domingo, 7 de agosto de 2011

Jorge de Lima, "Poema XVIII, do Canto V, da Invenção de Orfeu".

Poema tão amargo que parece
ser apenas palavras despenhadas
sobre cactos e espinhos semeadas
onde uma liana turva se entretece.

Ó vagos olhos cuja luz parece
um segredo de trevo não amado.
Pelos climas da luz expira um fado
roto e ferido como extrema prece.

Quem morre aceso na tartárea chama ?
Que é que há pouco em cinza se carpia
e do passado vem agora, e clama ?

Que coisa é que anoitece nesse dia ?
Que poeta morimbundo a essa vil cama
tombou despedaçado de onde se ia ?

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

João Cabral de Melo Neto, "O sol em Pernambuco"

(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o primeiro dos dois, o fuzil de fogo,
incendeia a terra: tiro de inimigo).
O sol ao aterrissar em Pernambuco,
acaba de voar dormindo o mar deserto;
dormiu porque deserto; mas ao dormir
se refaz, e pode decolar mais aceso;
assim, mais do que acender incendeia,
para rasar mais desertos no caminho;
ou rasá-los mais, até um vazio de mar
por onde ele continue a voar dormindo.

Pinzón diz que o cabo Rostro Hermoso
(que se diz hoje de Santo Agostinho)
cai pela terra de mais luz da terra
(mudou o nome, sobrou a luz a pino);
dá-se que hoje dói na vida tanta luz:
ela revela real o real, impõe filtros:
as lentes negras, lentes de diminuir,
as lentes de distanciar, ou do exílio.
(O sol em Pernambuco leva dois sóis,
sol de dois canos, de tiro repetido;
o segundo dos dois, o fuzil de luz,
revela real a terra: tiro de inimigo).

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Eugénio de Andrade















"Entre os teus lábios ..."

Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.

No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.

Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.

Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.

Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Cassiano Ricardo, "A rua"

Bem sei que, muitas vezes,
o único remédio
é adiar tudo. É adiar a sede, a fome, a viagem,
a dívida, o divertimento,
o pedido de emprego, ou a própria alegria.
A esperança é também uma forma
de contínuo adiamento.
Sei que é preciso prestigiar a esperança,
numa sala de espera.
Mas sei também que espera significa luta e não, apenas,
esperança sentada.
Não abdicação diante da vida.

A esperança
nunca é a forma burguesa, sentada e tranquila da espera.

Nunca é a figura de mulher
do quadro antigo.
Sentada, dando milho aos pombos.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Eucanaã Ferraz, "Vinheta"

Ame-se o que é, como nós,
efêmero. Todo o universo
podia chamar-se: gérbera*.
Tudo, como a flor, pulsa

e arde e apodrece. Sei,
repito ensinamento já sabido
e toda lição não diz mais
que margaridas e junquilhos.

Lições, há quem diga,
são inúteis, por mais belas.
Melhor, porém acrescento,
se azuis, vermelha, amarelas.


*Gérbera é uma flôr: