quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Luís Antonio Cajazeira Ramos, "Mausoléu"


Minha sala de ícones sagrados
mantém-se aberta para os visitantes.
O pó dos corpos, trajos e calçados
não toca nas redomas cintilantes.

O taumaturgo Deus reluz no centro,
para que todos vejam seu fulgor.
Em cada jarro circundante, dentro,
um venerável ídolo do amor.

Em um, meus pais, sorrindo meigo e terno.
Em outros, cada amigo acena a mão.
Num cálice especial, meu par eterno.

Num canto escuro, a poeira toma assento
junto aos cacos de um velho vaso vão,
de onde escapei, por pouco, há muito tempo.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Ruy Castro, "Poesia na Spaghettilândia"


RIO DE JANEIRO - Há pouco, pela Folha, os poetas Augusto de Campos e Ferreira Gullar protagonizaram um tiroteio verbal sobre os rumos da poesia de vanguarda no Brasil. É uma briga que começou em 1954, com um almoço na Spaghettilândia, restaurante popular da Cinelândia, tendo como pivô Oswald de Andrade, de quem Gullar era entusiasta, e, Augusto, mais ou menos. Desde então, os dois nunca mais se falaram — ponha 60 anos nisto —, exceto nas escaramuças que, anos depois, dariam origem ao concretismo e ao neoconcretismo, os movimentos rivais que eles simbolizaram.

Fã de ambos, meti-me na briga sugerindo que a Spaghettilândia, de pé até hoje, afixasse uma placa em seu salão, imortalizando o fato histórico. Augusto não gostou e, numa carta, fuzilou o colunista. Bem, não apenas reforço a sugestão como vou propor à Spaghettilândia que batize seus pratos com os nomes dos principais poetas das duas correntes.

O filé de peixe, por exemplo, poderia se chamar "à Eugen Gomringer", em homenagem ao suíço-boliviano que, em 1953, antes de todo mundo, já fazia poesia concreta na Europa, só que com o nome de "constelações". Gomringer, 91 anos, vive na Alemanha e gostará de saber que alguém ainda se lembra dele por aqui.

O bacalhau à portuguesa eu dedicaria a Cassiano Ricardo, o "representante do espírito vivo de 1922", segundo os próprios concretistas. A lasanha ficaria com Edgard Braga; o caneloni, com Pedro Xisto; e o talharim, com Ronaldo Azeredo, esquecidos hoje, mas, todos, concretistas de primeira hora. E meu amigo José Lino Grünewald adoraria batizar o frango à carioca.

Para Gullar, a feijoada. Para o querido Reynaldo Jardim, o espetinho misto. E deixo a Augusto a tarefa de escolher os pratos que levarão o seu nome e os de Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Ele não gosta de ser contrariado.

Crônica publicada no jornal "Folha de São Paulo" em 24/09/2016.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Victor Loureiro, "Elizabeth"


Dobrar tão bem
tua carne faz do escultor

um ás
no jogo de curvas,

capaz de esculpir
teu corpo como se

calçasse  a pelica
nas luvas,

comesse o pão
nas espigas,

bebesse o vinho
nas uvas.

domingo, 25 de setembro de 2016

Adriano Espínola, "Lamas - bar e restaurante"


                                                       A   Horácio  Dídimo

À noite,
todos os lépidos
são
larápios,

todos os otários
são
notórios,

todas as lânguidas
são
lésbicas,

todas as cópulas
são
cédulas,

todos os lúcidos
são
trágicos,

todos os bêbados
são
sábios.

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Luís Antonio Cajazeira Ramos










"Apelação"

                                                    Dar a volta por cima que eu dei
                                                                     quero ver quem dava.
                                                               Paulo Vanzolini

Melancia amarrada no pescoço,
pintei a bunda de vermelho e fui...
Embora quem me visse risse um pouco,
faltaram palma e vaia a que fiz jus.

Essa gente insensível nem me nota!
Sou como um zero à esquerda, sem valor.
Mas deixe estar, ingratidão! Não dou
bola ao azar, que o mundo dá mil voltas.

Meu sucesso fugiu por entre os dedos,
a derrota sorriu meio amarelo,
mas a vida seguiu seu rumo em frente.

Não dou ponto sem nó: depois da queda,
sacudo o pó e mando tudo à merda,
inconstitucionalissimamente.

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Miguel Sanches Neto, "Matrimônio"


Casei com minha mulher
quando ela tinha dezoito anos.

Mas casei principalmente
com sua velhice,
com sua morte,
com seus pânicos,
com suas pequenas incompreensões.

Casei também com a mãe de minha filha
e com a avó de possíveis netos.
casei ainda com sua infância
cujos traumas conheço.

Só não casei mesmo
com sua adolescência.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Ferreira Gullar












"Passeio em Lima"

Debaixo desta árvore
sinto no rosto o calor
de suas flores vermelhas (como
se dentro de um relâmpago)
        Podiam ser de trapo
essas flores, podia
ser de pano esse
                          clarão vegetal -
que é a mesma a matéria da flor
         da palavra
e da alegria no coração do homem.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Leis estranhas no Iowa (EUA)


-- Beijos de mais de cinco minutos são proibidos.
-- Um homem com bigode nunca pode beijar uma mulher em público.
-- É ilegal para o homem beber três goles de cerveja, quando na cama com a mulher.
-- É contra a lei vender ou distribuir drogas ou narcóticos sem a obtenção anterior do selo de impostos sobre a droga.
-- Médicos que tratam uma pessoa com gonorreia devem relatar o fato ao conselho de saúde local e incluir a “origem provável” da doença.
-- Em Bettendorf: Lojas de bebidas alcoólicas não podem colocar cartazes de cerveja do lado de fora.
-- Em Cedar Rapids: A leitura de mãos dentro da cidade é ilegal.
-- Em Dubuque: Todos os hotéis dentro da cidade devem ter um balde cheio de água e um poste para amarrar cavalos em frente do prédio.
-- Em Marshalltown, cavalos são proibidos de comer hidrantes de incêndio.
-- Em Ottumwa: Dentro dos limites da cidade, um homem não pode piscar para uma mulher que ele não conhece.

domingo, 18 de setembro de 2016

sábado, 17 de setembro de 2016

José Saramago, "Caminho"


Há mentiras de mais e compromissos
(Poemas são palavras recompostas)
E por tantas perguntas sem respostas
Mascara-se a verdade com postiços.

Não é vida, nem sombra, nem razão,
É jaula de doidice furiosa,
Eriçada de gritos, angulosa,
Com estilhaços de vidro pelo chão.

É carrego de mais esta jornada
E protestos não servem, nem suores,
Já mordidos os membros de tremores,
Já vencida a bandeira e arrastada.

Depois se me apagaram os amores
Que a viagem fizeram desejada.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Florbela Espanca, "Perdi os meus fantásticos castelos..."


Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma...
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los:
Quebrei as minhas lanças uma a uma!

Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma...
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? –
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!

Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias...

Sobem-me aos lábios súplicas estranhas...
Sobre o meu coração pesam montanhas...
Olho assombrada as minhas mãos vazias...

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Carlos Nejar, "Luiz Vaz de Camões"


Não sou um tempo
ou uma cidade extinta.
Civilizei a língua
e foi resposta em cada verso.
E à fome, condenaram-me
os perversos e alguns
dos poderosos. Amei
a pátria injustamente
cega, como eu, num
dos olhos. E não pôde
ver-me enquanto vivo.
Regressarei a ela
com os ossos de meu sonho
precavido? E o idioma
não passa de um poema
salvo da espuma
e igual a mim, bebido
pelo sol de um país
que me desterra. E agora
me ergue no Convento
dos Jerônimos o túmulo,
quando não morri.
Não morrerei, não
quero mais morrer.
Nem sou cativo ou mendigo
de uma pátria. Mas da língua
que me conhece e espera.
E a razão que não me dais,
eu crio. Jamais pensei
ser pai de tantos filhos.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Alexei Bueno














"Sapiência"

Os móveis, as cartas,
A roupa engomada,
As estantes fartas,
Não arrumes nada.

As obras de arte,
A imagem fanada,
Tudo, tudo parte.
Não arrumes nada.

Como nos obriga
A ordeira morada,
Quanta dor mitiga.
Não arrumes nada.

Vais e tudo fica
Um mundo, uma estrada.
Quem o identifica?
Não arrumes nada.

Que pó, fungo, insetos,
Musgo e água parada
Tratem teus objetos.
Não arrumes nada.

domingo, 11 de setembro de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Soneto das mesas"


Convido os irmãos mortos para a mesa.
E mais o pai. E a mãe. E amigos tantos.
Não para reviver coisas de prantos,
pois horas dolorosas nesta mesa

não podem ter lugar. Tem a certeza
do amor com que bordamos nossos mantos
de dias já cumpridos e outros tantos
que são dos reunidos nesta mesa.

Os que se foram, eis que não se foram
de vez. E sempre vêm, quando os convido
ou não convido - jovens, sem tristeza.

Pai, mãe, irmãos, grandes amigos... Douram-me
a alma – enquanto aguardo, comovido,
minha vez de sentar-me à sua mesa.

sábado, 10 de setembro de 2016

Dante Milano, "Monólogo"


Estar atento diante do ignorado,
Reconhecer-se no desconhecido,
Olhar o mundo, o espaço iluminado,
E compreender o que não tem sentido.
Guardar o que não pode ser guardado,
Perder o que não pode ser perdido.
- É preciso ser puro, mas cuidado!
É preciso ser livre, mas sentido!
É preciso paciência, e que impaciência!
É preciso pensar, ou esquecer,
E conter a violência, com prudência,
Qual desarmada vítima ao querer
Vingar-se, sim, vingar-se da existência,
E, misteriosamente, não poder.

sexta-feira, 9 de setembro de 2016

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Gomes Leal, "Na rua"


Vejo-a sempre passar séria, constante,
- Ás vezes, inclinada na janela,-
Tranquila, fria, e pálido o semblante,
Como uma santa triste de capela.

Seu riso sem calor como o brilhante
No nosso lábio o próprio riso gela,
E ela nasceu para chorar diante
D'um Cristo numa estreita e escura cela.

Seu olhar virginal como as crianças
Jamais disse do amor as cousas mansas;
Jamais vergou da Força ao choque rude.

Abrasa-a um fogo divinal secreto! -
eu sinto, mal a avisto, ao seu aspecto,
O brio intenso e negro da Virtude.

quarta-feira, 7 de setembro de 2016

Alexei Bueno, "Limite"


Onde acaba o dizível,
Onde as palavras falham
Ouve-se o mar terrível.

Barcos cheios que encalham,
Elas, com o surdo impulso
Das ondas se estraçalham.

E, além, além, convulso,
Retorce-se o horizonte,
Ondeante como um pulso.

Mas não há quem o afronte,
Se um o intenta, o mar vence-o...
Para além, fim e fonte.

Tudo menos o silêncio.


segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Henriqueta Lisboa, "Os lírios"


Certa madrugada fria
irei de cabelos soltos
ver como crescem os lírios.

Quero saber como crescem
simples e belos – perfeitos! –
ao abandono dos campos.

Antes que o sol apareça,
neblina rompe neblina
com vestes brancas, irei.

Irei no maior sigilo
para que ninguém perceba
contendo a respiração.

Sobre a terra muito fria
dobrando meus frios joelhos
farei perguntas à terra.

Depois de ouvir-lhe o segredo
deitada por entre os lírios
adormecerei tranquila.

domingo, 4 de setembro de 2016

Mauro Mota, "Elegia nº 1"


Vejo-te morta. As brancas mãos pendentes.
Delas agora, sem querer, libertas
a alma dos gestos e, dos lábios quentes
ainda, as frases pensadas só em certas

tardes perdidas. Sob as entreabertas
pálpebras, sinto, em teu olhar presentes,
mundos de imagens que, às regiões desertas
da morte, levarás, que a morte sentes

fria diante de todos os apelos.
Vejo-te morta. Viva, a cabeleira,
teus cabelos voando! ah! teus cabelos!

Gesto de desespero e despedida,
para ficares de qualquer maneira
pelos fios castanhos presa à vida.

sexta-feira, 2 de setembro de 2016

Jorge de Lima, "Canto 1, A Fundação da Ilha, da Invenção de Orfeu"


Tu queres ilha: despe-te das coisas,
das excrecências, tira de teus olhos
as vidraças e os véus, sapatos de
teus pés, e roupas, calos, botões e

também as faces que se colam à
tua, e os braços alheios que te abraçam
e os pés que querem ir por ti, e as moças
que querem te esposar, e os ais (não ouças!)

que querem te carpir, e os campos que
querem te consolar, e os tantos guias
que querem te perder, e as ventanias

que não dormem, que batem alta noite,
tristes, em tua porta, se ressonas
pois nem o vento, nada te abandona.

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Roberto Piva















abandonar tudo, conhecer praias, amores novos.
                   poesia em cascatas floridas com aranhas
                         azuladas nas samambaias,
         todo trabalhador é escravo, toda autoridade
                   é cômica, fazer da anarquia um
                         método & modo de vida, estradas,
                             bocas perfumadas, cervejas tomadas
                                   nos acampamentos. Sonhar Alto.