quinta-feira, 31 de agosto de 2017

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Konstantinos Kaváfis, "Melancolia de Jasão, filho de Cleandro; poeta em Comagena; 595 D.C."


O envelhecimento de meu corpo e de meu rosto
é uma ferida de terrível punhal.
Não tenho resignação alguma.
A ti recorro, Arte da Poesia,
que entendes um pouco de remédios:
tentativas de entorpecimento da dor, na Imaginação e no Verbo.

É uma ferida de terrível punhal . –
Traze, Arte da Poesia, teus remédios,
que fazem – por algum tempo – que não se sinta a ferida.

Tradução de Ísis Borges da Fonseca.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Fernando Pinto do Amaral, "Mais uma noite, amor..."


Mais uma noite, amor. Ao recordar-te
retomo os fins do mundo, a cinza, os dias
manchados de outras lágrimas. Sabias
como eu a cor das sombras, essa arte

que nos engana agora e se reparte
por esquinas e cafés. Já não me guias
os muitos passos vãos, as fantasias
da minha falsa vida. Vou deixar-te

fugindo-me. Na chuva, sem ninguém,
apenas alguns vultos, o que vem
«e dói não sei porquê» - este deserto

onde te vejo, imagem outra vez,
até de madrugada. O que me fez
sentir o muito longe aqui tão perto?

domingo, 27 de agosto de 2017

Eucanaã Ferraz, "Dor"


Amor desfeito.
Do vento mais suave

(arrastamos nosso corpo
para fora, para a hora

de partir) o movimento mínimo
fere nosso rosto

e o silêncio semelha o dente de um ácido
sombrio sobre nosso ferimento,

ainda tão recente,
cintilante.

sábado, 26 de agosto de 2017

Khatia Buniatishvili interpreta a transcrição para piano da ária "Schafe können sicher weiden" (As ovelhas podem pastar seguras), da Cantata BWV 208, de Johann Sebastian Bach.

José Saramago, "Tenho um irmão siamês"


Tenho um irmão siamês
(Há quem tenha, mas o meu,
Ligado à sola dos pés,
Anda espalhado no chão,
Todo mordido da raiva
De ser mais raso do que eu.)

Tenho um irmão siamês
(É a sombra, cão rafeiro,
Vai à frente ou de viés
Conforme a luz e a feição,
De modo que sempre caiba
Nos limites do ponteiro.)

Tenho um irmão siamês
(Minha morte antecipada,
Já deitada,
À espera da minha vez.)

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Vasco Graça Moura, "presente do indicativo"


entro na cozinha. ela está no meio dos legumes,
lava e enxuga folhas tenras de alface, endívias
de oblonga contextura, corta a cebola às
rodelas, pica um ramo de coentros,
hesita um pouco sobre o roquefort, é certeira no vinagre e no sal,

e prudente no azeite. o ovo cozido espera a sua vez e a
saladeira aguarda na mesa junto aos azulejos brancos.
ela procura os talheres de madeira na gaveta,
pede-me qualquer coisa, a lâmina reluz sobre a tábua, perto do pão.
a preparação da salada requer vários gestos precisos

e uma poética discreta nos brilhos frisados, nos
paladares, pela janela chegam os ruídos da rua,
campainhas de bicicleta, ressaltos de uma bola.
o cão dormita no sofá. uns versos populares comparam
os olhos dela a azeitonas pretas.

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Cassiano Ricardo, "Testamento"


Deixo os meus olhos ao cego
que mora nesta rua.
Deixo a minha esperança
ao primeiro suicida.
Deixo à polícia o meu rasto,
a Deus o meu último eco.
Deixo o meu fogo-fátuo
ao mais triste viandante
que se perder se lanterna
numa noite sem chuva.
Deixo o meu suor ao fisco
que me cobriu de impostos;
e a tíbia da perna esquerda
a um tocador de flauta
para, com o seu chilreio,
encantar a mulher e a cobra.
Às coisas belas do mundo
deixo o olhar cerúleo e brando
com que, nas fotografias,
as estarei, sempre, olhando...
Aos noturnos assistentes
de última hora – aos que ficam,
o sorriso interior e sábio
que nunca me veio ao lábio.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Tomás António Gonzaga e Eucanaã Ferraz

Tomás Antônio Gonzaga














Lira XVIII

Não vês aquele velho respeitável
Que à muleta encostado
Apenas mal se move, e mal se arrasta?
Oh! quanto estrago não lhe fez o tempo!
O tempo arrebatado,
Que o mesmo bronze gasta.

Enrugaram-se as faces, e perderam
Seus olhos a viveza;
Voltou-se o seu cabelo em branca neve:
Já lhe treme a cabeça, a mão, o queixo,
Não tem uma beleza
Das belezas, que teve.

Assim também serei, minha Marília,
Daqui a poucos anos;
Que o impio tempo para todos corre.
Os dentes cairão, e os meus cabelos,
Ah! sentirei os danos,
Que evita só quem morre.

Mas sempre passarei uma velhice
Muito menos penosa.
Não trarei a muleta carregada:
Descansarei o já vergado corpo
Na tua mão piedosa,
Na tua mão nevada.

Nas frias tardes, em que negra nuvem
Os chuveiros não lance,
Irei contigo ao prado florescente:
Aqui me buscarás um sítio ameno;
Onde os membros descanse,
E o brando sol me aquente.

Apenas me sentar, então movendo
Os olhos por aquela
Vistosa parte, que ficar fronteira;
Apontando direi: "Ali falamos,
"Ali, ó minha bela,
"Te vi a vez primeira."

Verterão os meus olhos duas fontes,
Nascidas de alegria:
Farão teus olhos ternos outro tanto:
Então darei, Marília, frios beijos
Na mão formosa, e pia,
Que me limpar o pranto.

Assim irá, Marília, docemente
Meu corpo suportando
Do tempo desumano a dura guerra.
Contente morrerei, por ser Marília
Quem sentida chorando
Meus braços olhos cerra.


Eucanaã Ferraz














Aquele Velho

Assim também serei, minha Marília?
Quanto estrago não lhe fez o tempo:

fria frouxidão nos braços,
na boca. o rio reduzido a um fio,

a memória, aluvião confuso,
números, amores, nomes

de antigos presidentes da República,
uma casa, outra casa, outra, uns livros, remédios,

um filme, a praia, uma canção, outra, a mão
estendida, uma viagem. amigos,

a procura ávida por uma prateleira
onde repousar todas as vontades,

o coração, os intestinos, a pele
áspera do vazio. Deus. Quer crer.

Tão lentamente até aí e, no entanto,
é como se de repente: os olhos

já não aleiam o avesso no que veem,
tudo está feito. Ponto.

Não há refazer a marcha. Restolho,
murcha o mundo, sem hipóteses.

domingo, 20 de agosto de 2017

Cyro de Mattos, "Embarque"


O que deixo:
verde solidão
da raiz ao cabelo.

O que deixo:
vértebras do tempo,
desigual fermento.

O que deixo:
bala no verão,
cobra no inverno.

O que deixo:
gemido e agulha
ensacando ventos.

O que levo:
frutos de ouro
romaria e desterro.

O que levo:
sonhos e erros
do horizonte maciço.

Da árvore e seu resumo
os vícios do mundo
medos e sonhos

no velho pensamento.

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Álvares de Azevedo, "Meu sonho"


EU

Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sanguenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? — O remorso?
Do corcel te debruças no dorso…
E galopas do vale através…
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?…
Tu escutas… Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? que mistério…
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O FANTASMA

Sou o sonho de tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!…

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Leis estranhas em Montana (EUA)


-- Mulher que abre correspondência do marido comete crime.
-- A prostituição é um “crime contra a família”.
-- Ninguém pode fingir que abusa de um animal na frente de um menor.
-- Mulher casada não pode pescar sozinha aos domingos; mulher solteira não pode pescar de forma alguma sozinha.
-- É ilegal para um homem e uma mulher fazer sexo em qualquer posição que não a “missionária”.
-- Sete ou mais índios juntos deve ser considerado um bando guerreiro ou um ataque e, portanto, é permitido atirar neles.
-- É ilegal transportar um carneiro na cabine da camionete, sem um acompanhante.
-- É ilegal rasgar uma lista telefônica no meio.
-- Em Billings: É ilegal levar uma bomba ou foguete para uma reunião do Conselho da Cidade. Também: É proibido criar ratos de estimação. Ainda: É proibido usar discagem rápida no sistema telefônico da cidade.
-- Em Bozeman: A lei proíbe atividade sexual no jardim de uma casa depois do pôr do sol.
-- Em Helena: É proibido importunar os transeuntes nas calçadas com borrifadores de água rotativos.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Lúcio Cardoso, "Verão"


Aquieta-se em verde
a paz e o morango
à beira d'água,
enquanto dorme -
uma abelha esvoaça.
Sobre o corpo.
O minuto, enorme,
cintila- e a luz é ouro.


segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Paulo Henriques Britto, "Vº Soneto Noturno"


As coisas sempre podem piorar.
Não há limite para o abismo estreito
que se abre justamente no lugar
onde a relação entre causa e efeito
parece indicar que a crosta é mais dura
e é mais remoto o risco da ruptura.

E no entanto, aberta a fenda, uma vez
desmascarada a aparência enganosa
de integridade e estrita solidez,
a mente busca uma saída honrosa
e com algo assim por fim se contenta:
Agora sei onde a corda arrebenta.

Refeita, pois, do golpe, e sem temer mais nada,
expõe um novo flanco à próxima porrada.

sábado, 12 de agosto de 2017

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Não! Só quero a liberdade!"


Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes — ser o grande entendimento —
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fatos
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos — outro céu — revelam o grande ser subjectivo.
Não quero! Dêem-me a liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!
Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "Amanhã vou buscá-la"...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
"Amanhã vou buscá-la ao quintal"
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
ao lado...

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

José Saramago





















"Retrato do poeta quando jovem"

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brancas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Mário Faustino, "Viagem"


Apago a vela, enfuno as velas: planto
Um fruto verde no futuro, e parto
De escuna virgem navegante, e canto
Um mar de peixe e febre e estirpe farto -
E ardendo em festas fogo-embalsamadas
Amo em tropel, corcel, centauramente,
Entre sudários queimo as enfaixadas
Fêmeas que me atormentam, musamente -
E espuma desta vaga danço e sonho
Com címbalos e símbolos, harmônico
Onde executo a flor que em mim se embebe,
Centro e cetro, curvando-se ante a sebe
Divina — a própria morte hoje defloro
E vida eterna engendro: gero, adoro.

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Odylo Costa, filho












"Um só amor"

Amores? Não. Cantei um só amor.
Não me arrependo da monotonia
nem de cantar a posse e o possuidor.
Se abelhas mansas dentro em mim havia

por que negar o voo para a flor?
Até na momentânea nostalgia
nossa pátria era a mesma.  A própria dor
uniu mais do que junta uma alegria.

Chegou a noite e seu silêncio mas
para aclarar o mundo a luz secreta
em teu cabelo pôs manchas de prata.

E teço versos como que refaz
a vida.  Todo o meu mister de poeta
é de amor: madrigal e serenata.

domingo, 6 de agosto de 2017

Eucanaã Ferraz, "De ti"


Já não recorro às fotografias
- perfil, pose, paisagem -

como o cego ao cão
que fia o caminho.

Deixei que os dias
-outro cão, todo dentes -

te devorassem
os arames nítidos do foco.

Fiquei com o que sei
de cor

- outro cão, em mim,
garra e faro -

no extremo
dos meus dedos.

sábado, 5 de agosto de 2017

Manuel Maria Barbosa Du Bocage










"Já Bocage não sou!... À cova escura..."

Já Bocage não sou!... À cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento...
Eu aos céus ultrajei! O meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa!... Tivera algum merecimento,
Se um raio da razão seguisse, pura!

Eu me arrependo; a língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade,
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino* fui... A santidade
Manchei!... Oh! Se  me creste, gente ímpia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

* Aretino - O poeta se compara ao poeta e dramaturgo italiano Pietro Aretino (1492 - 1556), autor do "Diálogo das Prostitutas" e dos "Sonetos Luxuriosos". 
Protegido e respeitado pelos nobres, temerosos da mordacidade dos seus escritos, Aretino foi um panfletário licencioso, vivendo em Roma e em Veneza.
Adquiriu uma liberdade incomum na sua época, pois, de forma ousada e pouco convencional para os padrões literários do período, atacou nobres e clérigos.
Era conhecido como o "Flagelo dos Príncipes".

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Cecília Meireles














"Discurso"

E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?

Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Fernando Pessoa, "Por mais que tente, não me desembrulho..."


Por mais que tente, não me desembrulho.
Há qualquer cousa de confuso em mim.
Lá pela confusão não dar barulho,
Não quer dizer que lhe não seja afim.

Na noite informe ao luar brilha o jardim.
O mar ao longe dorme o seu marulho.
Que quieto é tudo! Como até o orgulho
De poder ser alguém aqui tem fim!

Como nesta nocturna quietação
Tudo se acalma e até se desconhece
No fundo ignoto do ermo coração.

Ah, com que quantidade tudo esquece!
Como tudo é silêncio e confusão
Onde só o som das árvores estremece!