sábado, 30 de agosto de 2014

Eugénio de Andrade, "Coração habitado"


Aqui estão as mãos.
São os mais belos sinais da terra.
Os anjos nascem aqui:
frescos, matinais, quase de orvalho,
decoração alegre e povoado.

Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
- eu sei que são as mãos de um homem,
trêmulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Janice Caiafa, "Antologia dos poetas ocidentais"


Lembras quando tu me lias
os pequenos livros de cores
poesia brasileira
poesia portuguesa e estrangeira
portuguesa não era estrangeira
eu nem sabia ler
pequena muito pequena
no balcão da portaria
altíssimo na minha lembrança
as pernas pendiam de cima
sapatinho de criança
te escutava atenta admirativa
de tanta coisa já escrita
eram histórias pra mim
só que em ritmo,
eu sentia que o poema
respirava e mais
me embalava a palavra
assim escandida e levemente
cantada. Sentia
enquanto tu lias
que havia sonâncias
pousos, rodopios
e a leitura me embalava
mas para ficar acordada
olhos abertos
ereta sentada
em grande curiosidade
que seria afinal a vida
onde se abrigava tanta
palavra? que belo
assunto, que leitora
sabida e boa
para a criança que escutava.
Que bonita mãe que bom ouvi-la
para a menina que não lia
e que viria então
um dia a escrever poemas.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Roberval Pereyr, "Ofício"


A minha luta é banir-me
a partir dos ossos
da ossatura dos sonhos
com seus remorsos, rebanhos
de feras subtonadas.

Banir-me a partir do corpo
onde o ego se ampara
com o porte de um porco
obeso, de banha farta.

Pois havia um destino cego
e uma carta lacrada: o ego
com que me fiz e me nego
porque não rasguei a carta.

Rasgo-a. E quanto mais rasgo
mais ela mesma se escreve.

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Glauco Mattoso











"Soneto confessional"

Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.

Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.

Se serve de consolo, seja assim:
Amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que ninguém reze por mim...

domingo, 24 de agosto de 2014

Archibald Mcleish, "Chartres"


Pedras, o que me espanta
Não é que tenhais resistido
Por tanto tempo a tanto vento e a neve tanta:
Pois não vos tinham construído
Para arrostar nesta colina
O inverno e o vento desabrido?

Meu espanto é que suportais,
Sem vos gastardes, nossos olhos,
Nossos olhos mortais.


O poema refere-se à Catedral de Nossa Senhora de Chartres, na França, cujo prédio (com a forma atual) existe desde o século XIII.

Tradução de Manuel Bandeira.

sábado, 23 de agosto de 2014

Francisco Rodrigues Lobo, "Formoso Tejo..."


Formoso Tejo meu, quão diferente
Te vejo e vi, me vês agora e viste:
Turvo te vejo a ti, tu a mim triste,
Claro te vi eu já, tu a mim contente.

A ti foi-te trocando a grossa enchente
A quem teu largo campo não resiste;
A mim trocou-me a vista que consiste
O meu viver contente ou descontente.

Já que somos no mal participantes,
Sejamo-lo no bem. Oh ! Quem me dera
Que fôramos em tudo semelhantes!

Mas lá virá a fresca primavera:
Tu tornaras a ser quem eras dantes,
Eu não sei se serei quem dantes era.

quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Eucanaã Ferraz, "Vida e obra"


Repare, Cícero, que os copos se tornam
mais leves quando cheios de vinho.

E, você há de concordar comigo, a cada copo
essa impressão cresce. Deuses, vazio,

canções, vinhos: este é um poema sobre poemas
e amizade.

Repare que o mesmo se dá conosco; o peso
faz-se leve em nós se um verso nos acontece.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Ferreira Gullar, "Falar"


A poesia é, de fato, o fruto
de um silêncio que sou eu, sois vós,
por isso tenho que baixar a voz
porque, se falo alto, não me escuto.

 

A poesia é, na verdade, uma
fala ao revés da fala,
como um silêncio que o poeta exuma
do pó, a voz que jaz embaixo
do falar e no falar se cala.
Por isso o poeta tem que falar baixo
baixo quase sem fala em suma
mesmo que não se ouça coisa alguma.

terça-feira, 19 de agosto de 2014

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Fernando Pessoa



















"A criança que fui..."

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim ser quem sou.
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei de encontrá-lo ? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-os relembrar;

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.

domingo, 17 de agosto de 2014

Paulo Henriques Britto, "Também o mundo não cabe..."


Também o mundo não cabe
no espaço estreito entre as beiras
que lhe foram concedidas.

Todas as coisas extravasam as bordas.
(Daí a angústia tensa das poltronas.
o choro envergonhado das torneiras.)

Nem só você, poeta, se ressente
da mesquinhez dos demiurgos todos.
Também os deuses escrevem linhas tortas.

No entanto, há que tentar. Exemplo:
"A noite é um alforje negro".
Alforje, não. Talvez Alfanje?

Também não. Sobra sempre. Isso cansa.
E a noite, definitivamente,
não é mais uma criança.

sábado, 16 de agosto de 2014

Gabriela Mistral, "O pensador de Rodin"


Apoiando na mão rugosa o queijo fino,
O pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne de cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.

E tremeu de amor, toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O "haveremos de morrer" passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.

E na angústia seus músculos se fendem sofredores,
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte

Que o reclama nos bronzes. Não há árvore torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte.

Tradução de Manuel Bandeira


quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Jeferson Corrêa, "Artista com alzheimer desenha a si mesmo por 5 anos para se lembrar de seu rosto"


Em 1995, o artista do Reino Unido William Utermohlen foi diagnosticado com Alzheimer. Este é um diagnóstico difícil para todos, uma terrível doença degenerativa, mas antes de sua morte em 2007, Utermohlen criou uma série final  de autorretratos de cortar o coração ao longo de um período de aproximadamente 5 anos, documentando a deterioração gradual da sua mente devido a esta doença incapacitante. Um ensaio feito pela viúva do artista, Patricia, explica como a arte mostrou perfeitamente a situação que ocorreu com William.

É exatamente por isso que essas imagens são tão poderosas. "Nestas fotos, vemos como é de partir o coração de todos a intensidade dos esforços de William para explicar em seus autoretrados seus medos e sua tristeza."  É difícil dizer se as mudanças em seus retratos surgiram devido a perda de suas habilidades artísticas ou devido as alterações na sua psique, mas, em qualquer caso, eles documentam o tumulto emocional de um artista assistindo sua mente escapar dele pouco a pouco. Uma reflexão e um contemplar do que a capacidade de que arte tem não só de nos alegrar mas de nos fazer sentir todo o tipo de sentimentos.


1967



















1996




















1996




















1997




















1997




















1998





















1999





















2000










 


Copiado do site    http://obviousmag.org/

 http://lounge.obviousmag.org/manifesto_da_artes/2014/08/arista-com-alzheimer-desenha-a-si-mesmo-por-5-anos-para-se-lembrar-de-seu-rosto.html



Cruz e Souza, "Vida obscura"


Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
O ser humilde entre os humildes seres,
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de alto saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.

Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Donizete Galvão, "Solitude"


Juntos, em solitude.
Cada qual com sua chaga.
Cada qual com sua cruz.
Dois corpos antes tão próximos,
separados pela geografia
que a mágoa desenha.
Entre os braços,
interpõe-se
desertos, salinas e dunas.
O amor morreu?
Não. Condensou-se.
Soterrou-se em veios
de duro e negro minério.
Duas árvores cujas raízes
trançaram-se rumo ao fundo.
Que frutos falhos e ásperos
nessas mãos antes tão íntimas,
que, mesmo durante o sono,
permanecem bem fechadas.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Francisco Antônio de Carvalho Júnior, "Profissão de fé"


Odeio as virgens pálidas, cloróticas,
Beleza de missal que o romantismo
Hidrófobo apregoa em peças góticas,
Escritas nuns acessos de histerismo.

Sofismas de mulher, ilusões óticas,
Raquíticos abortos de lirismo,
Sonhos de carne, compleições exóticas,
Desfazem-se perante o realismo.

Não servem-me esses vagos ideais
Da fina transparência dos cristais,
Almas de santa e corpo de alfenim*.

Prefiro a exuberância dos contornos,
As belezas da forma, seus adornos,
A saúde, a matéria, a vida enfim.


*alfenim: Massa de açúcar branca e dura, indivíduo delicado, efeminado.


Francisco Antônio de Carvalho Júnior (1855-1879) foi um  poeta, político e historiador baiano.
Alguns críticos o classificam como romântico tardio, outros como parnasiano, e há também quem considere um dos precursores do simbolismo no Brasil.

O soneto é uma avaliação debochada das musas dos poetas românticos.

domingo, 10 de agosto de 2014

Nicolas Behr, "a última coisa..."


a última coisa
que quero fazer em brasília
é morrer

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

António Gomes Leal, "Nevrose Nocturna"


Bela! dizia eu, como um navio à vela,
Para um país polar, por um silêncio amigo.
- Bela! como uma estátua e gélida como ela.
- Bela! dizia eu, como um sepulcro antigo.   

- Bela! dizia eu, ágil como um jaguar,
Assim me inspire o Fado e Satanás me deixe!
Bela! dizia eu, fria como o luar
Sobre o dorso luzente e excepcional dum peixe.  

Bela! dizia eu, como uma mesa lauta
Para um festim pagão: a Forma, o Som, e a Cor.
Bela! dizia eu, como nocturna flauta,
Desafiando, no mar, a ladainha - Dor.  

- Bela! dizia eu, fria como o marfim.
Bela como um calado e longo cemitério,
Em que se vê vagar, como no seu jardim,
O coveiro, ao luar, vegetativo e sério.  

Bela! como um perdão ao pé do cadafalso,
Bela como o luzir do orvalho nas searas,
Nevada como um pé, curto, branco, descalço,
Fugitivo através das grandes ervas claras.  

Bela! como o sentir as espirais do gozo
Num fundo sensual de sombras perfumadas.
Bela! como os clarões de um céu calamitoso
As plantas tropicais, diretas como espadas.  

Bela ! como os portais e as torres ao abandono
Saxônias, que entreviu Ana Radcliffe.
Bela ! e solene, sim, como um tranquilo sono
De um perfil virginal, na sombra de um esquife.  

Bela! como um espelho esférico, polido,
Aonde colos nus luzem palidamente.
Bela! como o sentir a seda dum vestido
Arrastar, como arrasta a cauda da serpente.   

Bela! como o sorrir vermelho dum rainúnculo.
Bela! como uma flor aquática do Mar.
Bela! como na treva o brilho dum carbúnculo.
Bela! dizia eu, como um azul polar.   

Bela! como a expressão das notas de Méhul.
Bela! como uma flor num muro de cadeia.
Bela! como a sonhar, sobre um divã azul,
Fumando, perseguir a nebulosa Ideia.  

Bela! dizia eu, como uma Feiticeira
Da Tessália, evocando a ensanguentada lua.
Bela! como, no outono, a luminosa esteira
Azulada e sem fim duma comprida rua.   

Bela! como arrendado e flamejante altar,
Onde se vão unir os corações dos noivos.
Bela! como o silêncio algente e tumular,
Em que se escuta, ao fundo, o germinar dos goivos. 

Bela! dizia eu... Mas nisto, sobre o leito,
Em que cismava assim, voltou-se, levemente,
A invencível mulher que me inflamava o peito.
E os meus olhos no quarto erraram novamente.  

E foram se cravar num pente de metal,
E as várias coisas mil que, ao baço candeeiro,
Vinham-se reflectir sobre um espelho oval
Destacado da cor branca do travesseiro.  

E então a minha nevrose armou um largo cinto
De monstros colossais, fatídicos de ver!
À hora em que o burguês profunda o labirinto
Das mil complicações do deve e do há de haver  

Desfilava-me em torno um batalhão medonho
De monstros anormais, de escamas reluzentes,
Tomavam Som e Cor as proporções do Sonho.
Olhavam-me animais de olhos surpreendentes.  

- Bela! dizia eu, por todas as potências
Celestes, infernais, terrestres e de horror!
- Bela! concordo eu, cheia de transparências;
Mas sem um grande quid ... a crispação da Dor!  

Sim, a Dor, sem a qual a argila humana passa
Sem um rasto deixar na vasta natureza.
A Dor, gama final da música da graça.
A Dor, último tom na escala da beleza.  

A Dor, foco onde vão reencontrar-se as cores
Do vivo sol do Amor despótico e cruel.
O perfume subtil que nos completa as flores,
A voluta ideal que beija o capitel.  

Por isso eu quero ver como o seu belo rosto
Se crispa à sensação estranha do meu braço.
E quero, na tenaz sinistra do desgosto,
Fazê-la ressaltar como uma mola de aço!  

Quero vê-la quebrar essa monotonia
De linhas ideais, divinas, impassíveis;
Coagi-la a sair da gélida apatia
Que é como a estagnação das Cousas Insensíveis.  

Quero vê-la tremer, os lábios roxeados,
Fazendo exclamações eufônicas na sala;
E em várias gradações, seus olhos injectados
Terem a fulva cor quimérica da opala.  

Quero, sim! Quero ver! ... Mas nisto, rudemente,
Prostrou-me o plúmbeo sono, invicto, pesado,
E a cabeça caiu-me, ah, invencivelmente
No seu negro cabelo esplêndido e azulado.
 
 

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Wu Zetian, "Minha solidão"


Por minhas lágrimas de amor,
o vermelho fica verde.
De tanto pensar em ti,
meu corpo vira um esqueleto.
Não canso de chorar minha solidão,
abrir a mala e admirar sozinha
a saia* que costurei para te agradar.
  


*Na China antiga, a mulher apaixonada tinha sempre uma saia para vestir exclusivamente na presença do amado. Na sua ausência, a saia ficava guardada, e só saía do armário para festejar a chegada do amante.  

Wu Zetian foi uma poeta chinesa que viveu entre 624 e 705.

O poema foi traduzido do chinês para o francês por Shi Bo, e dai para o português por Sérgio Caparelli.





terça-feira, 5 de agosto de 2014

Miguel Torga, "Bartolomeu Dias"














Eu não cheguei ao fim.
Dobrei o Cabo, mas havia em mim
Um herói sem remate.
Quando os loiros da fama me sorriam,
Aceitei o debate
Do meu destino predestinado
Com singelos destinos que teriam
Um futuro apagado,
Fosse qual fosse a glória prometida.
E sempre que uma nau enfrenta o mar e o teme,
E regressa vencida,
Sou eu que venho ao leme
Com a Índia perdida.


Em 1488, tentando descobrir o caminho marítimo para a Índia, o português Bartolomeu Dias foi o primeiro navegador europeu a cruzar o Cabo da Boa Esperança, na ponta da África, o local onde o oceano Atlântico se junta ao Pacífico. No entanto, a tripulação revoltada o obrigou a regressar à Portugal, e a sua façanha não foi reconhecida ou recompensada pela coroa portuguesa. 

Mais tarde, em 1497, acompanhou a esquadra de Vasco da Gama como capitão de um dos navios. Mas ficou em São Jorge da Mina, em Gana, e quando Vasco chegou à Índia Bartolomeu Dias não estava com ele.

Em 1500, acompanhou Pedro Álvares Cabral na viagem de descoberta do Brasil. Quando a frota de Cabral partiu do Brasil e seguiu para a Índia, o navio que Bartolomeu Dias comandava naufragou quando chegavam ao Cabo da Boa Esperança.

Bartolomeu Dias morreu sem nunca conseguir chegar à Índia.






















segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Alphonsus de Guimaraens, "A cabeça de corvo"


Na mesa, quando em meio à noite lenta
Escrevo antes que o sono me adormeça,
Tenho o negro tinteiro que a cabeça
De um corvo representa.

A contemplá-lo mudamente fico
E numa dor atroz mais me concentro:
E entreabrindo-lhe o grande e fino bico,
Meto-lhe a pena pela goela adentro.

E solitariamente, pouco a pouco,
De bojo tiro a pena, rasa em tinta…
E a minha mão, que treme toda, pinta
Versos próprios de um louco.

E o aberto olhar vidrado da funesta
Ave que representa o meu tinteiro,
Vai-me seguindo a mão, que corre lesta,
Toda a tremer pelo papel inteiro.

Dizem-me todos que atirar eu devo
Trevas em fora este agoirento corvo,
Pois dele sangra o desespero torvo
Destes versos que escrevo.
.

sábado, 2 de agosto de 2014

Vinícius de Moraes















"O falso mendigo"


Minha mãe, manda comprar um quilo de papel almaço na venda
Quero fazer uma poesia.
Diz a Amélia para preparar um refresco bem gelado
E me trazer muito devagarinho.
Não corram, não falem, fechem todas as portas a chave
Quero fazer uma poesia.
Se me telefonarem, só estou para Maria
Se for o Ministro, só recebo amanhã
Se for um trote, me chama depressa
Tenho um tédio enorme da vida.
Diz a Amélia para procurar a “Patética” no rádio
Se houver um grande desastre vem logo contar
Se o aneurisma de dona Ângela arrebentar, me avisa
Tenho um tédio enorme da vida.
Liga para vovó Neném, pede a ela uma ideia bem inocente
Quero fazer uma grande poesia.
Quando meu pai chegar tragam-me logo os jornais da tarde
Se eu dormir, pelo amor de Deus, me acordem
Não quero perder nada na vida.
Fizeram bicos de rouxinol para o meu jantar?
Puseram no lugar meu cachimbo e meus poetas?
Tenho um tédio enorme da vida.
Minha mãe estou com vontade de chorar
Estou com taquicardia, me dá um remédio
Não, antes me deixa morrer, quero morrer, a vida
Já não me diz mais nada
Tenho horror da vida, quero fazer a maior poesia do mundo
Quero morrer imediatamente.
Fala com o Presidente para fecharem todos os cinemas
Não aguento mais ser censor.
Ah, pensa uma coisa, minha mãe, para distrair teu filho
Teu falso, teu miserável, teu sórdido filho
Que estala em força, sacrifício, violência, devotamento
Que podia britar pedra alegremente
Ser negociante cantando
Fazer advocacia com o sorriso exato
Se com isso não perdesse o que por fatalidade de amor
Sabe ser o melhor, o mais doce e o mais eterno da tua puríssima carícia.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Florbela Espanca, "Este livro..."


Este livro é de mágoas. Desgraçados
Que no mundo passais, chorai ao lê-lo!
Somente a vossa dor de Torturados
Pode, talvez, senti-lo... e compreendê-lo.

Este livro é para vós. Abençoados
Os que o sentirem, sem ser bom nem belo!
Bíblia dos tristes... Ó desventurados,
Que a vossa imensa dor se acalme ao vê-lo!

Livro de Mágoas... Dores... Ansiedades!
Livro de Sombras... Névoas e Saudades!
Vai pelo mundo...(Trouxe-o no meu seio...)

Irmão na Dor, os olhos rasos de água,
Chorai comigo a minha imensa mágoa,
Lendo o meu livro só de mágoas cheio!...