terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Vasco Graça Moura, "o melro de visita"


o amor não é uma saga cruel:
vejo-a cuidar das plantas no jardim,
brincam as filhas com lápis e papel
e eu escrevo sossegado, é bom assim.

na relva, um melro a saltitar, vilão
pretíssimo, esfuzia à cata de algum resto,
ou da mosca azarada: passa lesto
entre duas roseiras. já é verão.

mas o melro demanda outro quintal
e do poema, sem jeito e sem disfarce,
sai de bico amarelo em diagonal

desajeitada: esvoaça sem maneiras
como um pingo de tinta a escapar-se.
de verde prateado, as oliveiras.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Teixeira de Pascoaes, "Junto dele"


Que terrível tragédia ver a gente,
No seu exíguo e doloroso leito,
Uma criança morta, um Inocente,
Um pequenino Amor inda perfeito!

Oh que mimosa palidez tremente
A do gélido rosto contrafeito!
As mãozinhas de cera, docemente,
Ó dor, ó dor, cruzadas sobre o peito!

Ó Deus cruel que matas as Crianças!
Auroras para o nosso coração,
Alegrias, alívios, esperanças!

Não sei quem és; eu não te entendo, Deus!
E penso, com terror, na escuridão
Desse teu Reino trágico dos Céus...

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Leis estranhas em Maryland (EUA)


-- É proibido dar ou receber sexo oral em qualquer lugar.
-- Não pode haver espinhos em qualquer jardim.
-- Em Baltimore: Levar um leão ao cinema é ilegal. Também: Jogar faros de feno por janela no segundo andar, dentro dos limites da cidade, é ilegal. Ainda: Mendigos e vagabundos não podem passar tempo em qualquer parte da cidade.
-- Em Baltimore City: É proibido xingar, cuspir na rua ou na calçada, dentro dos limites da cidade.
-- Em Cumberland: Usar linguagem profana em um parque infantil é ilegal.
-- Em Rockville: É proibido xingar em uma rodovia. Também: habitantes não podem nadar em fontes   públicas dentro dos limites da cidade.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Eucanaã Ferraz












"Romântica"

Quantos de nós quereriam viver não a vida
mas o filme, quando a vida não é vida
e não se morre na morte e o que finda
não apodrece porque logo é outro set;

vida em que se passa a solvo de um dia
a outro sem que se viva a semana entre
eles; viver sob as ordens de um destino
por escrito que sabemos previamente

e o vivemos sem vivê-lo. A força dos fortes
que voam; bandos que matam sem matar;
fracos que não desistem; bravos que no fim
se vigam. Tantos de nós desejaríamos

ter vivido e ter amado amores desgraçados,
cuja beleza, tão bela, era mais bela que
a dor e a dor era mais a beleza que o doer.
Queríamos que fosse não a vida, mas

a cena e a canção crescendo no momento
certo da alegria, no instante do beijo,
no clímax. Close: quando errássemos,
bem na hora, a voz de um Deus dizendo

corta!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Gomes Leal, "Remorso tardio"


Quando na avara pátria, abandonado,
morreu um gênio, um sol d'infindo brilho,
a Pátria diz: - "Morreu um desvairado,
um poeta, um ninguém, um maltrapilho!"

Tempos depois, se o luminoso trilho
desse astro já assombra o mundo, alado,
a Pátria diz: - "Ó pranto inconsolado!
nas faces me correi! Morreu meu filho!"

Porém, mais tarde, quando passam eras,
quando a açoita o remorso ante o infinito,
e um horror noutro horror solene cai...

cheia d'angústia e lágrimas sinceras,
trágica, olhando a sombra, e dando um grito,
a Pátria ulula: - "Assassinei-te ó pai!"

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

António Franco Alexandre














"é no meu corpo que morreste. agora..."

é no meu corpo que morreste. agora
temos o tempo todo
ao nosso lado, como
um lodo onde dormitam as

conhecidas maneiras.
algumas nuvens se aproximam, e depois
se afastam, numa duvidosa
manifestação de imperícia;

os animais falantes
atravessam corredores iluminados,
embarcam na

sossegada lembrança dos sonetos,
o leve sono que pesou no dia.
é no meu corpo que morreste, agora.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Manuel Alegre, "País em inho"


Não é possível suportar tanta água benta
Tantos infernos, tantos paraísos
Tanta alma a salvar-se. Não é possível
Tanto salvador vestido de absoluto.
Neste país do pouco. Neste país do muito.

Não é possível suportar tanta sebenta
Tanta batina tanto sebo tanta cela.
Até Marx vestiram de sotaina
Ó Antero: há um jesuíta, um fanático um beato.
Neste país abstracto. Neste país abstracto.

Não é possível suportar tanta ideia cinzenta
Tanto bolor de caserna e de convento
Lajes lírios lágrimas. E os círios.
Tanto 1º de Novembro e tanto Império.
Neste país tão sério. Neste país tão sério.

Não haverá por aí outra ferramenta?
Não haverá ideias armas que não sejam
Bentas? Um grande ponto de interrogação?
Um amor laico? Um revolucionário ateu
Nas tintas para o inferno e para o céu?

Não é possível suportar tanta agonia
Tanta nódoa de certa macha de sangue
Tanto xaile a cheirar a sacristia.
(que eu vi lá de longe um homem crucificado
Por este país fardado. Por este país fardado.)

E já não posso suportar tanta doença
Tanta cebola a fazer de flor tanta mezinha
Tanta Zita Santa Zita tanto rito
Tanto guisado e catecismo. Tantas coisas em inho.
Neste país quietinho ó Pascoais. Neste país quietinho.

É preciso (como diz o Torga) correntes de ar
Pois falta ó Cesariny é verdade que falta
Por aqui uma grande razão.
(que não seja só uma palavra). Falta uma fúria.
Neste país de lamúria. Neste país de lamúria.

Um pouco mais de brasa. Ou se preferem
(como diria Mário de Sá-Carneiro)
Um pouco mais de golpe de asa. Pois falta ó Breton
Um amor louco (laico e louco).
Neste país do pouco. Neste país do pouco.

Falta o porquê de António Sérgio. Falta o porquê.
Faltam concelhos realmente municipais.
Que não é possível suportar tanta gordura
Tanta tristeza magra tanta rodilha tantos cestos.
Neste país de restos. Neste país de restos.

Não é possível suportar tanto chicharro
Tanta espinha na alma tanta côdea
Tanta azeitona miudinha tanta malha
Tanta mágoa apanhada uma a uma. (Que é tudo
O que se apanha. Neste país tão mudo. Neste país tão mudo).

Um pouco um pouco de ternura.
(Que não seja só uma canja de galinha).
Um pouco um pouco de clareza.
(Que não seja só o sol. Que não seja só o sul).
Neste país azul. Neste país azul.

Que não é possível suportar tanta mentira
Tanta gente de esquerda a viver à direita
Tanta apagada e vil baixeza tanta reza
Tanto cochicho onde é preciso falar alto.
Neste país a salto. Neste país a salto.

Não é possível suportar tanto cotim
Tanta manga de alpaca tanta canga
Tanta ganga suada tanta lexívia
Tanta lezíria tanto corno tanto chouriço.
Neste país castiço. Neste país castiço.

Não é possível tanto macho tanta fêmea
Tanta faca tanto alguidar tanto magala
Tanta santa tanta puta tanta infanta
Tanta saca tanta faca tanto fraque.
Neste país a saque. Neste país a saque.

Pois falta aqui o verbo ser. E sobra o ter.
Falta a sobra e sobra a falta. Ó proletários da tristeza
Falta a ciência mais exacta: a poesia
E há muito já que um poeta disse: É a Hora.
Neste país de aqui. Neste país de agora.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

Ruy Belo, "Figura jacente"


Meu rosto nasce desta condição horizontal
de quem tem a cobri-lo todo o seu cansaço
Deus teve para mim morte mais rasa
do que a morte que o sol encontra entre as águas
Desfez-se a curva última da estrada
nada ficou após meus gastos passos

Ninguém morrera ainda tanto como eu
só tive de estender um pouco mais o corpo
Sobre o meu rosto passam uma a uma as gerações
e vem lavar-me a água os velhos pés
E diz-me Deus, tão acessível como o mar nas praias:
– Tu és cada vez mais aquilo que tu és

Há entre as oliveiras sítio para o sol
e a brisa da infância canta rindo nos ramos
entre o cheiro do giz e as canções da escola

Deus é perto de mim como uma árvore

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

Maria Alberta Menéres, "Se entrando no retrato a sobrancelha..."


Se entrando no retrato a sobrancelha
destoa da harmonia de um passado
e o brinco pendente de uma orelha
dorme tranquilo em estojo acolchoado,

se a cadeira ali nova agora é velha
e a névoa do peitilho foi bordado
nesse tempo que em pouco se assemelha
ao tempo que hoje em dia nos é dado,

não quer dizer que a vida tenha sido
inútil e perversa ou desfocada
do retrato só visto e nunca lido

por quem da vida saiba a senha errada.
Terei apenas eu sobrevivido
para ler tal silêncio em voz calada.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Lúcio Cardoso, "Sinto em ti um deserto imenso que flameja"


Sinto em ti um deserto imenso que flameja,
cactus, ilhas, palmeiras estranhas que farfalham,
línguas de fogo que ondulam como flâmulas
no terrível segredo dos teus olhos.

Mil anos, mil vozes negras e insepultas,
fermentam ao longo destas terras solitárias.
Mil vozes de desejo, mil gritos de angústia,
mil beijos de revolta e de tormenta.

E neles rolam grandes vagas arenosas,
castelos, montanhas líquidas de ouro,
astros, o frêmito selvagem do verão.

E quando, às vezes, riem as tuas pupilas,
sinto passar no fundo hostil deste horizonte
a sombra enorme de um pássaro da morte.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

domingo, 12 de fevereiro de 2017

Teixeira de Pascoaes











"Tristeza"

O sol do outono, as folhas a cair,
A minha voz baixinho soluçando,
Os meus olhos, em lagrimas, beijando
A terra, e o meu espirito a sorrir...

Eis como a minha vida vai passando
Em frente ao seu Fantasma... E fico a ouvir
Silêncios da minh'alma e o ressurgir
De mortos que me foram sepultando...

E fico mudo, extático, parado
E quase sem sentidos, mergulhando
Na minha viva e funda intimidade...

Só a longínqua estrela em mim actua...
Sou rocha harmoniosa á luz da lua,
Petrificada esfinge de saudade...

sábado, 11 de fevereiro de 2017

Alberto de Lacerda, "To nigth"


Esta noite vou embebedar os meus navios
Rasgar os meus poemas
E as minhas raras (raríssimas)
Cartas de amor

Esta noite vou ser horrível
Pior do que o costume
Vou desabobadar os céus da minha esperança
Viga por viga estrela por estrela

Esta noite vou embebedar os meus navios
Vou deixar de falar a imensa gente
Vou encontrar um sábio chinês
Que me recitará poemas muito simples
Insuportáveis de tão belos

Esta noite vou destruir mapas antigos
Abrir certas janelas e quebrar
A possibilidade de alguém mais entrar na minha vida

Esta noite vou pedir perdão aos meus amigos
E escrever uma última carta sem a mínima sombra de
                                                           [sentimentalismo

Esta noite vou embebedar os meus navios

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Eugénio de Andrade, "Não sei"


Não sei porque diabo escolheste
janeiro para morrer: a terra
está tão fria.
É muito tarde para as lentas
narrativas do coração,
o vento continua
a tarefa das folhas:
cobre o chão de esquecimento.
Eu sei: tu querias durar.
Pelo menos durar tanto como o tronco
da oliveira que teu avô
tinha no quintal. Paciência,
querido, também Mozart morreu.
Só a morte é imortal.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Eucanaã Ferraz, "Vida e obra"


Repare, Cícero, que os copos se tornam
mais leves quando cheios de vinho.

E, você há de concordar comigo, a cada copo
essa impressão cresce. Deuses, vazio,

canções. vinho: este é um poema sobre poemas
e amizade.

Repare que o mesmo se dá conosco: o peso
faz-se leve em nós se um verso nos acontece.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Alexei Bueno, "Esses herdarão"


O vento e as ervas que não sonhem nunca,
Que há anos se encontram, mas não se conhecem;
O vento e as ervas que jamais se esquecem
Pois nem se recordam do que o chão se junca*;

O vento e as ervas que há um milênio tecem
Em se enfrentando uma imutável voz
Sem nunca ouvi-la, e que dão medo aos pós
Com gestos vãos que nem lhes obedecem,

A eles pertence a glória e o reino eterno
Pois não são nada, e nada dói ao nada,
Nem vão longe as maldições do inferno.

Rindo entre os gritos,se enforcando ao chão
Como bufões cuja alma foi roubada...
O vento e as ervas permanecerão.



*Junca - (v.t.) - cobrir, espalhar ou se alastrar pelo chão.

domingo, 5 de fevereiro de 2017

José Saramago
























Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha, avós maternos de Saramago.


"Carta para Josefa, minha avó"

Tens noventa anos. És velha, dolorida. Dizes-me que foste a mais bela rapariga do teu tempo — e eu acredito. Não sabes ler. Tens as mãos grossas e deformadas, os pés encortiçados. Carregaste à cabeça toneladas de restolho e lenha, albufeiras de água.

Viste nascer o sol todos os dias. De todo o pão que amassaste se faria um banquete universal. Criaste pessoas e gado, meteste os bácoros* na tua própria cama quando o frio ameaçava gelá-los. Contaste-me histórias de aparições e lobisomens, velhas questões de família, um crime de morte. Trave da tua casa, lume da tua lareira — sete vezes engravidaste, sete vezes deste à luz.

Não sabes nada do mundo. Não entendes de política, nem de economia, nem de literatura, nem de filosofia, nem de religião. Herdaste umas centenas de palavras práticas, um vocabulário elementar. Com  isto viveste e vais vivendo. És sensível às catástrofes e também aos casos de rua, aos casamentos de princesas e ao roubo dos coelhos da vizinha. Tens grandes ódios por motivos de que já perdeste lembrança, grandes dedicações que assentam em coisa nenhuma. Vives. Para ti, a palavra Vietname é apenas um som bárbaro que não condiz com o teu círculo de légua e meia de raio. Da fome sabes alguma coisa: já viste uma bandeira negra içada na torre da igreja.(Contaste-mo tu, ou terei sonhado que o contavas?)

Transportas contigo o teu pequeno casulo de interesses. E, no entanto, tens os olhos claros e és alegre. O teu riso é como um foguete de cores. Como tu, não vi rir ninguém. Estou diante de ti, e não entendo. Sou da tua carne e do teu sangue, mas não entendo. Vieste a este mundo e não curaste de saber o que é o mundo. Chegas ao fim da vida, e o mundo ainda é, para ti, o que era quando nasceste: uma interrogação, um mistério inacessível, uma coisa que não faz parte da tua herança: quinhentas palavras, um quintal a que em cinco minutos se dá a volta, uma casa de telha-vã e chão de barro.
Aperto a tua mão calosa, passo a minha mão pela tua face enrugada e pelos teus cabelos brancos, partidos pelo peso dos carregos** — e continuo a não entender. Foste bela, dizes, e bem vejo que és inteligente. Por que foi então que te roubaram o mundo? Quem to roubou? Mas disto talvez entenda eu, e dir-te-ia o como, o porquê e o quando se soubesse escolher das minhas palavras as que tu pudesses compreender. Já não vale a pena. O mundo continuará sem ti — e sem mim. Não teremos dito um ao outro o que mais importava. Não teremos, realmente? Eu não te terei dado, porque as minhas palavras não são as tuas, o mundo que te era devido. Fico com esta culpa de que me não acusas — e isso ainda é pior. Mas por que, avó, por que te sentas tu na soleira da tua porta, aberta para a noite estrelada e imensa, para o céu de que nada sabes e por onde nunca viajarás, para o silêncio dos campos e das árvores assombradas, e dizes, com a tranquila serenidade dos teus noventa anos e o fogo da tua adolescência nunca perdida: «O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de
morrer!»

É isto que eu não entendo — mas a culpa não é tua.


*Bácoro  (s.m.) - Porco de pouca idade, leitão.
**Carrego - (s.m.) - Fardo que uma pessoa transporta.

sábado, 4 de fevereiro de 2017

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Leis estranhas no Maine (EUA)


-- É obrigatório levar armas de fogo para a igreja, para prevenir possíveis ataques de índios.
-- Laços de sapatos devem estar bem amarrados ao se andar nas ruas.
-- É proibido sair de um avião em pleno voo.
-- Decorações de Natal não desmontadas até 14 de janeiro geram multas.
-- Em Augusta: Caminhar pela rua, tocando violino, é contra a lei.
-- Em Biddeford: Jogos de aposta no aeroporto são proibidos.
-- Em Freeport: É proibida a venda de termômetros de mercúrio. Também: É proibido cuspir de qualquer janela no segundo andar.
-- Em Waterboro: Coleiras de cachorro não podem ser maiores que 2,5 metros.
-- Em Wells: É proibido colocar anúncios em cemitérios.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Paulo Henriques Britto, "2º poema do 'Tríptico com hotel e sirene""


Esta é a hora inaugural da noite.
Toda a energia esbaldada do dia
agora se recolhe compungida
por trás de persianas. Seis e oito.

Escurece. Os prédios olham de esguelha
pro trânsito feroz domesticado
a custo. Uma sirene desgrenhada
se esvai, desafinando. Seis e meia.

Alguém no quarto ao lado liga o rádio.
No corredor, uma risada breve
responde a um inaudível comentário.

Mais risos soltos: a noite promete.
Lá fora está escuro - estamos em maio,
o inverno se aproxima. Quase sete.