quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Ferreira Gullar




















"Um pouco antes"

Quando já não for possível encontrar-me
em nenhum ponto da cidade
ou do planeta
                      pensa
                            ao veres no horizonte
                            sobre o mar de Copacabana
                                                               uma nesga azul de céu
                      pensa que resta alguma coisa de mim
                      por aqui
                                   Não te custará nada imaginar
                                   que estou sorrindo ainda naquela nesga
                                   azul celeste
                                   pouco antes de dissipar-me para sempre

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Fernando Pessoa - Álvaro de Campos


 

 

 

 

 

 

 


"E eu que estou bêbado de toda a injustiça do mundo…"


- O dilúvio de Deus e o bebé loirinho boiando morto à tona d’água,
Eu, em cujo coração a angústia dos outros é raiva.
E a vasta humilhação de existir um amor taciturno -
Eu, o lírico que faz frases porque não pode fazer sorte,
Eu, o fantasma do meu desejo redentor, névoa fria -


Eu não sei se devo fazer poemas, escrever palavras, porque a alma
A alma inúmera dos outros sofre sempre fora de mim.


Meus versos são a minha impotência.
O que não consigo, escrevo-o;
E os ritmos diversos que faço aliviam a minha cobardia.


A costureira estúpida violada por sedução,
O marçano rato preso sempre pelo rabo,
O comerciante próspero escravo da sua prosperidade
- Não distingo, não louvo, não (…) -
São todos bichos humanos, estupidamente sofrentes.


Ao sentir isto tudo, ao pensar isto tudo, ao raivar isto tudo,
Quebro o meu coração fatidicamente como um espelho,
E toda a injustiça do mundo é um mundo dentro de mim.


Meu coração esquife, meu coração (…), meu coração cadafalso -
Todos os crimes se deram e se pagaram dentro de mim.


Lacrimejância inútil, pieguice humana dos nervos,
Bebedeira da servilidade altruísta,
Voz com papelotes chorando no deserto de um quarto andar esquerdo…


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Alice Ruiz, "Sim"


Sim.
Todos os poemas
São de amor
Pela rima,
Pelo ritmo,
Pelo brilho
Ou por alguém,
Alguma coisa
Que passava
Na hora
Em que a vida
Virava palavra.


 


domingo, 26 de agosto de 2012

Wladimir Maiakóvski, "Adultos"


Os adultos fazem negócios.
Têm rublos nos bolsos.
Quer amor? Pois não!
Ei-lo por cem rublos!
E eu, sem casa e sem teto,
com as mãos metidas nos bolsos rasgados,
vagava assombrado.
À noite
vestis os melhores trajes
e ides descansar sobre viúvas ou casadas.
A mim
Moscou me sufocava de abraços
com seus infinitos anéis de praças.
Nos corações, nos relógios
bate o pêndulo dos amantes.
Como se exaltam as duplas no leito de amor!
Eu, que sou a Praça da Paixão,
surpreendo o pulsar selvagem
do coração das capitais.
Desabotoado, o coração quase de fora,
abria-me ao sol e aos jatos d'água.
Entrai com vossas paixões!
Galgai-me com vossos amores!
Doravante não sou mais dono do meu coração!
Nos demais - eu sei,
qualquer um o sabe -
o coração tem domicílio no peito.
Comigo
a anatomia ficou louca.
Sou todo coração -
em todas as partes palpita.
Oh! quantas são as primaveras
em vinte anos acesas nesta fornalha!
Uma tal carga acumulada
torna-se simplesmente insuportável.
Insuportável
não para o verso
de veras.


Tradução de Emílio Carrera Guerra



sábado, 25 de agosto de 2012

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Mario Quintana


 
"Viagem antiga"
 

Aqui e ali
reses pastando imóveis
como num presépio

a mata ocultando o xixi das fontes

uma cidadezinha de nariz pontudo
furava o céu

depois sumia-se lentamente numa curva

e a gente olhava olhava
sem nenhuma pressa
porque o destino daquelas nossas primeiras viagens
                                                      era sempre o horizonte

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Lya Luft, "O rio do tempo"


O tempo não existe,
nem dentro nem fora.
Esses peixes de opala
são nomes que nadam na memória:
são rostos. são risos, são prantos,
são as horas felizes.

O tempo não existe,
pois tudo continua aqui, e cresce
como se arredonda uma árvore
pesada de frutos que são peixes,
que são nomes, são rostos
com máscaras.

O tempo não existe. Sou apenas
o aqui e o presente, e o atrás disso,
como um rio que corre mas não passa
- pois ele é sempre, em mim, agora.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Luís Miguel Nava, "As sombras"


O sol declina-me no espírito, do meu mundo interior
vêm-me as sombras ocupando aos poucos o lugar da pele.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Eugène Guillevic, "Variações sobre um dia de verão".


Acariciar o verão,
Saber dele.

O peso de alegria
Que suporta a mão.

             *

Caminhar na luz
Quase como se
Estivesses em casa.

             *

Ela vem de longe
Esta bebedeira

Que tem por dever
Abrir as fronteiras.


Tradução de Eugénio de Andrade.



sábado, 18 de agosto de 2012

Bertold Brecht, "Quem se defende"


Quem se defende porque lhe tiram o ar
Ao lhe apertar a garganta, para este há um parágrafo
Que diz: ele agiu em legítima defesa. Mas
O mesmo parágrafo silencia
Quando você se defende porque lhe tiram o pão.
E no entanto morre quem não come, e quem não come o suficiente
Morre lentamente. Durante os anos todos em que morre
Não lhe é permitido se defender.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Eugénio de Andrade, "Canção de Laga"


Era em Laga, setembro e as suas águas
ardiam na nossa boca. Passou
tanto tempo que para morrer
só me faltou voltar àquela praia.
Tu tinhas vinte anos, roías
as unhas, sujavas a camisa
com o molho das ameijoas, eu pouco
mais tinha, nenhum de nós sabia
como é monstruoso amar assim
com os dias contados pelos dedos.
Hoje o verão entrou de rompante
pela casa dentro, vinha do mar,
trazia a luz molhada do teu corpo,
o difícil amor que dói ainda.


quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Paulo Henriques Britto, "Para um Monumento ao antidepressivo".



Um pequeno sol de bolso
que não propriamente ilumina
mas durante seu percurso
dissipa a espessa neblina

que impede o outro sol, importátil,
de revelar sem distorção
dura, doída, suportável,
a humana condição.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Camilo Pessanha, "Imagens que passais ..."


Imagens que passais pela retina
Dos meus olhos, porque não vos fixais?
Que passais como a água cristalina
Por uma fonte para nunca mais!...

Ou para o lago escuro onde termina
Vosso curso, silente de juncais,
E o vago medo angustioso domina,
Porque ides sem mim, não me levais?

Sem vós o que são os meus olhos abertos?
O espelho inútil, meus olhos pagãos!
Aridez de sucessivos desertos...

Fica sequer, sombra das minhas mãos,
Flexão casual de meus dedos incertos,
Estranha sombra em movimentos vãos.

domingo, 12 de agosto de 2012

Miguel Torga, "Conselho"


Salta, discretamente, a página do amor
No Livro das Horas.
Não leias mal o que já leste bem.
Emocionado, choras
A cada passo,
E tornas baço
O brilho que ela tem.

Deixa o texto arquivado na lembrança.
Passa adiante e cobre-o de pudor.
No jardim resta ainda tanta flor
Que podes desfolhar
Sem lágrimas na voz!...
Quem soube ter, sabe renunciar...
Há laudas de silêncio em todos nós.

sábado, 11 de agosto de 2012

Lêdo Ivo



"A Armadilha"

Muda o tempo e o diamante
cresce num pudor de alba.
Antigamente meus amigos
jogavam pôquer à tarde.

O que é vida, esvoaça. A erva hesita
diante das covas abertas.
De tempo me fala o postal
onde te ergues, Cidade.

Responde-me, ó chuva que seca
o duro encanto das calçadas.
A bicicleta na praia
é a morte ou é a viagem?



quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Jorge de Lima, "Agora os girassóis entardecidos ..."


Agora os girassóis entardecidos,
e esse lírio e essa rosa tão exangue
e essa mancha de símbolos sombrios
quase como um desmaio ou leve sangue.

Sobre os bosques caiu a tarde cinza
e a estrela temporária se augurou;
pendem das hastes cálices noviços,
e a cansada corola se esboroou.

E os cílios baixam gotejando chuvas
sobre os vidros das horas enterradas
com os momentos dos crimes e virtudes.

Algum arroio corre com essas lágrimas
mas tão ligeiro pela escarpa aguda
que os olhos de quem vê nunca vêem nada.

Foto, "Mulher"



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Antonio Cicero, "O poeta marginal"


Em meio às ondas da hora
e as tempestades urbanas
conectarei as palavras
que trovarão novas trovas.
Lerei poemas na esquina.
darei presentes de grego;
a cochilar com Homero,
farei negócios da China.
Exporei tudo na rede
sem ganhar nem um vintém:
a vaidade, a fome a sede,
certo truque, rara mágica.
Que não se engane ninguém:
ser um poeta é uma África.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

João Cabral de Melo Neto, "A lição de pintura"


Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além do quadro

que, feito a partir de tal forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá a um corredor
que leva à outra e a muitas outras.

domingo, 5 de agosto de 2012

Horácio













"Não indaques, Leucónoe"

Não indagues, Leucónoe, ímpio é saber,
          a duração da vida
que os deuses decidiram conceder-nos,
nem consultes os astros babilônicos:
          melhor é suportar
          tudo o que acontecer.

Quer Júpiter te dê muitos invernos,
          quer seja o derradeiro
este que vem fazendo o mar Tirreno
          cansar-se contra as rochas,
mostra-te sábia, clarifica os vinhos,
          corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.

          Enquanto conversamos,
          foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no amanhã.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

É a ode mais conhecidas de Horácio.
O original em latim do penúltimo verso "Desfruta o dia de hoje" é  "Carpe Diem".


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Italo Moriconi, "Copacabana"


Meu novo amor é gente simples do povo.
Tem 19 anos, negro rutilante.
Entre a ultima vez que nos vimos (tempos atrás)
e hoje cedo
já trocou o nome para Rick.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Antonio Cicero, "Onze e meia"


Quando a noite vem
um verão assim
abrem-se cortinas varandas
janelas prazeres jardins

Onze e meia alguém
concentrado em mim
no espelho castanho dos olhos
vê finalidades sem fim

Não lhe mostro todos os bichos que tenho de uma vez
Armo o circo com não mais do que uns cinco ou seis
leão camelo garoto acrobata
e não há luar
e os deuses gostam de disfarçar