sábado, 5 de dezembro de 2009

Tarsila, "Paisagem"


João Cabral de Melo Neto, "A educação pela pedra".

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, freqüentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua residência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta:
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

*

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra: lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

Nuno Júdice, "Até ao fim".

Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

Djanira, "Paisagem"

Alexandre O'Neill














"Auto Retrato"

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada…)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) das maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer.
Mas sofre de ternura, bebe de mais e ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse…

Eucanaã Ferraz, "Pai"

No chão tenro do Rio,
misto de areia e restos de alagadiços,

pus teu corpo
triturado,

limalha da velha Minas, ímã
que já não prendia nenhuma alma.

Pus ao pé de uma árvore,
perto do mar,

teu corpo moído, pesado, que
parecia um punhado de conchas

que se macerou insistente,
violentamente.

O chão do Rio ganhou mais peso,
outra geologia.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Durval Pereira, "Paisagem de Minas Gerais"

Miguel Torga, "Identidade"

Matei a lua e o luar difuso.
Quero os versos de ferro e de cimento.
E em vez de rimas, uso
As consonâncias que há no sofrimento.

Universal e aberto, o meu instinto acode
A todo o coração que se debate aflito.
E luta como sabe e como pode:
Dá beleza e sentido a cada grito.

Mas como as inscrições nas penedias
Tem maior duração,
Gasto as horas e os dias
A endurecer a forma da emoção.

Eugénio de Andrade, "Durou muitos anos ..."

Durou muitos anos, aquele verão.
Crescíamos sem pressa com o trigo
e as abelhas. Com o sol
corríamos para a àgua, à noite
num verso de Shakespeare ou
na nossa boca uma estrela dançava.
Aprendíamos a amar, aprendíamos
a morrer. A todos os sentidos
pedíamos para escutar o rumor,
não do mundo, que ninguém abarca,
apenas da brancura de uma folha
e outra folha ainda de papel.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Takaoka, "Ouro Preto"

Carlos Drummond de Andrade

"Indicações"

Talvez uma sensibilidade maior ao frio,
desejo de voltar mais cedo para casa.
Certa demora em abrir o pacote de livros
esperado, que trouxe o correio.
Indecisão: Irei ao cinema ?
Dos três empregos de tua noite escolherás: nenhum.
Talvez certo olhar, mais sério, não ardente,
que posas nas coisas, e elas compreendem.

Ou pelo menos supões que sim. São fiéis as coisas
de teu escritório. A caneta velha. Recusas-te a troca-la
pela que encerra o último segredo químico, a tinta imortal.
Certas manchas na mesa, que não sabes se o tempo,
se a madeira, se o pó trouxeram consigo.
Bem a conheces, tua mesa. Cartas, artigos, poemas
saíram dela, de ti. Da dura substância,
do calmo da floresta partida elas vieram,
as palavras que achaste e juntaste, distribuindo-as.

A mão passa
na aspereza. O verniz que se foi. Não a árvore
que regressa. a estrada voltando. Minas que espreita,
e espera, longamente espera a tua volta sem som.
A mesa se torna leve, e nela viajas
em ares de paciência, acordo, resignação.
Olhai a mesa que foge, não a toqueis. É a mesa volante,
de suas gavetas saltam papeias escuros, enfim os libertados
                                                                                        [segredos
sobre a terra metálica se espalham, se amortalham e calam-se.

De novo aqui, miúdo território
civil, sem sonhos. Como pressentindo
que um dia se esvaziam os quartos, se limpam as paredes,
e pára um caminhão e descem carregadores,
e no livro municipal se cancela um registro,
olhas fundamente o risco de cada
coisa, a cor,
de cada face dos objetos familiares.
A família é pois uma arrumação de móveis, soma
de linhas, volumes, superfícies. E são portas,
chaves, pratos, camas, embrulhos esquecidos,
também um corredor, e o espaço
entre o armário e a parede
onde se deposita certa porção de silêncio, traças e poeira
que de longe em longe se remove ... e insiste.

Certamente faltam muitas explicações, seria difícil
compreender, mesmo ao cabo de longo tempo, porque um gesto
se abriu, outro se frustrou, tantos esboçados,
como seria impossível guardar todas as vozes
ouvidas ao almoço, ao jantar, na pausa da noite,
um ano, depois outro, e outros e outros,
todas as vozes ouvidas na casa durante quinze anos.
Entretanto, devem estar em alguma parte: acumularam-se,
embeberam degraus, invadiram canos,
enformaram velhos papéis,perderam a força,o calor,
existem hoje em subterrâneos, umas na memória, outras na argila
                                                                                        [do sono.

Como saber ? A princípio parece deserto,
como se nada ficasse, e um rio corresse
por tua casa, tudo absorvendo.
Lençóis amarelecem, gravatas puem,
a barba cresce, cai, os dentes caem,
os braços caem,
caem partículas de comida de um garfo hesitante,
as coisas caem, caem, caem,
e o chão está liso, é liso.
Pessoas deitam-se, são transportadas, desaparecem,
e tudo é liso, salvo teu rosto
sobre a mesa curvado; e tudo imóvel.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Sou Eu"

Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.

E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que
                                                                          [se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.

Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.

Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.

Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Xilogravura de Toraji Ishikawa, "Mulher no Banho".


Felisberto Ranzini, "Paquetá"

Manuel Bandeira, "Plenitude"

Vai alto o dia. O sol a pino ofusca e vibra.
O ar é como de forja. A força nova e pura
Da vida embriaga e exalta. E eu sinto, fibra a fibra,
Avassalar-me o ser a vontade da cura.

A energia vital que no ventre profundo
Da Terra estuante ofega e penetra as raízes,
Sobe no caule, faz todo galho fecundo
E estala na amplidão das ramadas felizes,

Entra-me como um vinho acre pelas narinas...
Arde-me na garganta... E nas artérias sinto
O bálsamo aromado e quente das resinas
Que vem na exalação de cada terebinto.

O furor de criação dionisíaco estua
No fundo das rechãs, no flanco das montanhas,
E eu observo-o nos sons, na glória da luz crua
E ouço-o ardente bater dentro de minhas entranhas.

Tenho êxtase de santo... Ânsias para a virtude...
Canta em minh'alma absorta um mundo de harmonias.
Vêm-me audácias de herói... Sonho o que jamais pude
- Belo como Davi, forte como Golias...

E neste curto instante em que me exalto
de tudo o que não sou, gozo o que invejo,
E nunca o sonho humano assim subiu tão alto
Nem flamejou mais bela a chama do desejo.

E tudo isso me vem em vós, Mãe Natureza!
Vós que cicatrizais minha velha ferida ...
Vós que me dais o grande exemplo de beleza
E me dais o divino apetite da vida.

Clavadel, 1914

Mário Quintana, "Poema".

O grilo procura
no escuro
o mais puro diamante perdido.

O grilo
com as suas frágeis britadeiras de vidro
perfura

as implacáveis solidões noturnas.

E se o que tanto busca só existe
em tua limpida loucura
- que importa? -

isso
exatamente isso
é o teu diamante mais puro!

João Batista da Costa, "Litoral"

Antonio Cicero, "Como não te perderia ..."

Como não te perderia
se te amei perdidamente
se em teus lábios eu sorvia
néctar quando sorrias
se quando estavas presente
era eu que não me achava
e quando tu não estavas
eu também ficava ausente
se eras minha fantasia
elevada a poesia
se nasceste em meu poente
como não te perderia

Darcy Ribeiro






















"Pressago"

O presságio aí está, negro presságio.
A falar-me, silente, de dores por doer
Mais doídas que todas as dores já doídas.
A dor, talvez, de nunca mais doer.

Não são dores da carne. Não só.
Nem serão dores maiores, estertórias.
São dores da alma minha, balindo, trêmula.
Dores que, antes de doer, já me doem aqui, agora.

Que resta nesta vida por doer-me?
Já não doí minhas dores todas?
E a roda da dor, acaso, pára um dia?
Em que homem vivo, cansada, ela parou?

Esse temor pressago que me assalta
É o de perder o último, derradeiro, bem que tenho:
A vida aninhada no meu corpo,
Com o prodígio de gozar e de sofrer.

Que é o que temo, eu que nada temo?
A solidão, talvez, de uma eternidade fútil, inútil?
Qual! O que me arrasa é o terror pânico
De não mais ser, nem estar, jamais aí.

Vocês todos vivendo, seus f.d.p., só eu não.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Bach, Erbarme Dich, Ária da Paixão Segundo São Matheus, com Julia Hamari



Erbarme dich, (Tem piedade,)


Mein Gott, um meiner Zähren willen! (meu Deus, das minhas lágrimas)

Schaue hier, (Olha aqui)

Herz und Auge weint vor dir (Coração e olhos choram por ti)

Bitterlich (Amargamente)

Xilogravura de Axel Leskoschek, "Mulher"


Nelson Ascher











"Elegiazinha"
                                                [i. m. nikita (gata da Inês)]

Gatos não morrem de verdade:
eles apenas se reintegram
no ronronar da eternidade.

Gatos jamais morrem de fato:
suas almas saem de fininho
atrás de alguma alma de rato.

Gatos não morrem: sua fictícia
morte não passa de uma forma
mais refinada de preguiça.

Gatos não morrem: rumo a um nível
mais alto é que eles, galho a galho,
sobem numa árvore invisível.

Gatos não morrem: mais preciso
- se somem - é dizer que foram
rasgar sofás no paraíso

e dormirão lá, depois do ônus
de sete bem vividas vidas,
seus sete merecidos sonos.

domingo, 8 de novembro de 2009

Mario Zanini, "Casario"

Egito Gonçalves, "Com Palavras".

Com palavras me ergo em cada dia!
Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto
e saio para a rua.
Com palavras - inaudíveis - grito
para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.
Possuímos arquivos, sabemo-las de cor
em quatro ou cinco línguas.
Tomamo-las à noite em comprimidos
para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.
As mais puras transformam-se, violáceas,
roxas de silêncio. De que servem
asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;
as que seivam o amor, a liberdade...
Engulo-as perguntando-me se um dia
as poderei navegar; se alguma vez
dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:
Com elas eu me deito, me levanto,
e faltam-me palavras para contar...

Vasco Graça Moura, "Poema".

Silenciosamente aproximo-me do poema
circundo-o duma palavra       faço nela
uma incisão deliberada

e exponho a ferida ao ar sem protegê-la
para que infecte e frutifique

De resina       ainda com gosto a papel húmido
o poema cresce      ramifica-se
comovidamente do cerne para a casca
inteiro       liso      adstringente       sinuoso

Mas
todo poema é perfeitamente impuro

Di Cavalcanti, "Ivete e o Cavalo"

Paulo Henriques Britto, "Trompe l'Oeil"

Os fracassos todos de uma existência,
quando cuidadosamente empilhados,
observada uma certa coerência,
parecem uma espécie de pirâmide
monumental — ainda que truncada,

talvez — desde que olhados à distância
no momento preciso em que os atinge
o sol do entardecer, formando um ângulo
cujo valor exato se obtém
com base no... mas não, é mais esfinge

que pirâmide, sim, pensando bem —
quer dizer, uma esfinge estilizada,
sugerida apenas, como convém
a um monumento, ou cenotáfio*, ao nada.

cenotáfio - memorial fúnebre.

Fernando Grade














"Cotidiano Bichoso"

                                        (Um menino de 18 meses foi encontrado a
                                        vaguear nas ruas da Mouraria - Dos jornais)

Perdeu-se na cidade sua,
onde tinha nascido às sete da manhã
de um dia qualquer da ditadura.

Tinha a rosa dos cabelos por limpar
e talvez por abrir (vamos lá com Deus),
fora a camisa rota no pescoço
e o rabo ao léu.

Pouco se sabe do mais que a vida trouxe
a sua carne, em embrião (coitada !),
apenas a tristeza no olhar
acusava todos nós de uma só vez.

Ah, é verdade,
coisa patriótica:
a criança já falava português.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Manuel Bandeira, "Canção do Suicida"

Não me matarei, meus amigos.
Não o farei, possivelmente.
Mas que tenho vontade, tenho.
Tenho, e, muito curiosamente,

Com um tiro. Um tiro no ouvido,
Vingança contra a condição
Humana, ai de nós! sobre-humana
De ser dotado de razão.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

DASIMAIA

Com corpo
a gente tem fome

Com corpo
a gente mente

Não zombe
não censure

de novo
por eu ter um corpo.

Tenha um corpo
você mesmo
uma vez
como eu
e veja o que acontece.

Ó Senhor.

Poetas-Santos de Xiva (Séculos X - XII)
Tradução Décio Pignatari

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Ismael Nery, "Casal"


Carlos de Oliveira, "Lavoisier"

Na poesia,
natureza variável
das palavras,
nada se perde
ou cria,
tudo se transforma:
cada poema,
no seu perfil
incerto
e caligráfico,
já sonha
outra forma.

domingo, 25 de outubro de 2009

Bastos Tigre, "Argumento de Defesa"

Disse alguém, por maldade ou por intriga,
que eu de Vossa Excelência mal dissera:
que tinha amantes, que era "fácil", que era
da virtude doméstica, inimiga.

Maldito seja o cérebro que gera
infâmias tais que, em cólera, maldigo!
Se eu disser tal, que tenha por castigo
o beijo de uma sogra ou de outra fera!

Ponho a mão espalmada na consciência
e ela, senhora, impávida, protesta
contra essa intriga da maledicência!

Indague a amigos meus: qualquer atesta
que eu acho e sempre achei Vossa Excelência
feia demais para não ser honesta.

domingo, 11 de outubro de 2009

Guignard, "Paisagem Imaginante - Noite de São João"

Safo de Lesbos



"Contemplo ..."
Contemplo como um igual aos próprios deuses
esse homem que sentado à tua frente
escuta assim de perto quando falas com tal doçura

e ris cheia de graça. Mal te vejo
o coração se agita no meu peito,
do fundo da garganta já não sai a minha voz,

a língua como que se parte, corre
um tênue fogo sob a minha pele,
os olhos deixam de enxergar, os meus
ouvidos zumbem,

e banho-me de suor, e tremo toda,
e logo fico verde como as ervas,
e pouco falta para que eu não morra
ou enlouqueça.

Safo de Lesbos viveu na Grécia entre 617 e 560 a.C.

Orides Fontela, "Destruição"

A coisa contra a coisa:
a inútil crueldade
da análise. O cruel
saber que despedaça
o ser sabido.

A vida contra a coisa:
a violentação
da forma, recriando-a
em sínteses humanas
sábias e inúteis.

A vida contra a vida:
a estéril crueldade
da luz que se consome
desintegrando a essência
inutilmente.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Faixa de Gaza, Jardim Zoológico

Zoologico de Marah Land, sem zebras, pinta burros com listras

Da Folha Online - 08/10/2009:
Em janeiro deste ano, os conflitos entre israelenses e palestinos na faixa de Gaza fizeram vítimas também no zoológico local.
Duas zebras morreram de fome devido à escassez de comida e outros itens básicos para a população. Sem animais da espécie para apresentar ao público, o parque Marah Land, na Cidade de Gaza, resolveu então improvisar: um par de burros foi pintado para simular as zebras.

Carlos Scliar, "Natureza Morta"

Nuno Júdice, "Princípios"

Podíamos saber um pouco mais
da morte. Mas não seria isso que nos faria
ter vontade de morrer mais
depressa.

Podíamos saber um pouco mais
da vida. Talvez não precisássemos de viver
tanto, quando só o que é preciso é saber
que temos de viver.

Podíamos saber um pouco mais
do amor. Mas não seria isso que nos faria deixar
de amar ao saber exactamente o que é o amor, ou
amar mais ainda ao descobrir que, mesmo assim, nada
sabemos do amor.

Manuel Bandeira



"Inscrição"

Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava, descuidosa, e hoje não dança mais...

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava,
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava...

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
Tinha os olhos azuis.... Era loura e dançava....
Seu destino foi curto e bom...
                                                                - Não a choreis.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Evandro Carlos Jardim, "Jaraguá"

Adélia Prado, "Canícula"

Ao meio-dia, deságua o amor,
os sonhos mais frescos e intrigantes;
estão onde estão as torrentes.
Ao redor da casa grande espaça um quintal sem cercas,
tomado de bananeiras, só bananeiras,
altas como coqueiros.
Chego e é na beira do mar encrespado de correntezas,
sorvedouros azuis.
Há um perigo sobre a faixa exígua
que é de areia e é branca.
Quero braceletes
e a companhia do macho que escolhi.

Cecília Meireles, "Noções"

Entre mim e mim, há vastidões bastantes
para a navegação dos meus desejos afligidos.

Descem pela água minhas naves revestidas de espelhos.
Cada lâmina arrisca um olhar, e investiga o elemento que a atinge.

Mas, nesta aventura do sonho exposto à correnteza,
só recolho o gosto infinito das respostas que não se encontram.

Virei-me sobre a minha própria experiência, e contemplei-a.
Minha virtude era esta errância por mares contraditórios,
e este abandono para além da felicidade e da beleza.

Ó meu Deus, isto é minha alma:
qualquer coisa que flutua sobre este corpo efêmero e precário,
como o vento largo do oceano sobre a areia passiva e inúmera...

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Foto, Mulher.

Volpi, "As Comadres"

Miguel Torga, "Quase um Poema de Amor"

Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.
E é o que eu sei fazer com mais delicadeza!
A nossa natureza
Lusitana
Tem essa humana
Graça
Feiticeira
De tornar de cristal
A mais sentimental
E baça
Bebedeira.

Mas ou seja que vou envelhecendo
E ninguém me deseje apaixonado,
Ou que a antiga paixão
Me mantenha calado
O coração
Num íntimo pudor,
Há muito tempo já que não escrevo um poema
De amor.

Ana Cristina Cesar, "O Homem Público nº 1"

Tarde aprendi
bom mesmo
é dar a alma como lavada.
Não há razão
para conservar
este fiapo de noite velha.
Que significa isso?
Há uma fita
que vai sendo cortada
deixando uma sombra
no papel.
Discursos detonam.
Não sou eu que estou ali
de roupa escura
sorrindo ou fingindo
ouvir.
No entanto
também escrevi coisas assim,
para pessoas que nem sei mais
quem são,
de uma doçura
venenosa
de tão funda.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Ismael Nery, "Sem Título"

João Cabral de Melo Neto, "O Poema"

A tinta e a lápis
escrevem-se todos
os versos do mundo.

Que monstros existem
nadando no poço
negro e fecundo?

Que outros deslizam
largando o carvão
de seus ossos?

Como o ser vivo
que é um verso,
um organismo

com sangue e sopro,
pode brotar
de germes mortos?

O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.

É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho,

é de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.

Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.

Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?

Carlos Pena Filho, "Para Fazer um Soneto"

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Di Cavalcanti, "Bordel"

Mário Faustino, "Soneto Antigo"

Esse estoque de amor que acumulei
Ninguém veio comprar a preço justo.
Preparei meu castelo para um rei
Que mal me olhou, passando, e a quanto custo.

Meu tesouro amoroso há muito as traças
Comeram, secundadas por ladrões.
A luz abandonou as ondas lassas
De refletir um sol que só se põe

Sozinho. Agora vou por meus infernos
Sem fantasma buscar entre fantasmas.
E marcho contra o vento, sobre eternos

Desertos sem retorno, onde olharás
Mas sem o ver, estrela cega, o rastro
Que até aqui deixei, seguindo um astro.

Lya Luft, "Canção da Mirada Secreta"

Foram-se os amores que tive
ou me tiveram. Partiram
num cortejo silencioso e iluminado.
A solidão me ensina
a não acreditar na morte
nem demais na vida: cultivo
segredos num jardim
onde estamos eu, os sonhos idos,
os velhos amores e os seus recados,
e os olhos deles que ainda brilham
como pedras de cor entre as raízes.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Almeida Júnior, "Caipira Picando Fumo".

Manuel Bandeira, "O Descante do Arlequim"

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade..."

Haroldo de Campos
























"Ex/plicação"

não há um
sentido único
num
poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco

(tente outra
vez)

sem saída

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Almeida Júnior, "Cena Familiar".

Hilda Hilst, "Toma-me ..."

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

Antero de Quental, "Divina Comédia"

Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Xilogravura, Gueixa.

Di Cavalcanti, "Rio de Janeiro Noturno".

Adélia Prado, "O que a Musa Eterna Canta".

Cesse de uma vez meu vão desejo
de que o poema sirva a todas as fomes.
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar:
"Tenho birra de que me chamem de intelectual,
sou um homem como todos os outros".
Ah, que sabedoria, como todos os outros,
a quem bastou descobrir:
letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo.
O mais são as mal-traçadas linhas.

Mário Cesariny, "Sonhei Tanto a sua Figura".

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guignard em Ouro Preto

Pancetti, "Lagoa do Abaeté"

Carlos Drummond de Andrade,"Canto Esponjoso".

Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.

Eugénio de Andrade



"Frente a Frente"

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Anne Sophie von Otter e Stephanie d'Oustrac, La Barcarolle dos "Contos de Hoffmann", condução de Marc Minkowski

Xilogravura de Axel Leskoschek, Ilustração para "Os Irmãos Karamázov"

Mario Quintana, "Aula Inaugural"

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na
                                                                            [guerra do Paraguai...
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança, como Davi diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas...
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.

(Sabem todas as almas perdidas...)
O solene canto é um archote nas trevas.
(sabem todas as almas perdidas...)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa ruir o Caos atônito...

domingo, 20 de setembro de 2009

Antônio Frederico de Castro Alves (14 de março de 1847 — 6 de julho de 1871)

"Considero-me um poeta.
Integrado no meu tempo.
Cantei a natureza, a mulher, o amor
e vivi a causa do meu século:
entreguei-me inteiro à causa dos escravos".



"O Navio Negreiro"
(Tragédia no mar)


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

São Paulo, 18 de abril de 1869.
(O Poeta tinha 22 anos de idade)

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "Pescadores"

Egito Gonçalves, "Que Resgato com o Poema ?"

Que resgato com o poema?

Que amálgama de sóis, sangue,
domínio de cinzas recupero?

Que aniquilo com o poema?

Que sobe em mim ao grito da distância,
ao apelo telefónico dum estribilho,
à gasta, espira dum disco de adeleiro?
Que compro com o poema?

A força de enfrentar a solidão
que ignorava? O desfrute
de abandonar o abismo que me extraiu
o sumo?

Que poema cavalgo?,
ou sento-me no chão?

Paulo Leminski, "Adeus ..."

Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetives, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

sábado, 19 de setembro de 2009

Cícero Dias, "Os Noivos em Recife"

Afonso Henriques Neto, "Momento"

Na sala
mãos muito brancas
passam e repassam páginas
do livro inconsolável.
Na cabeça
o vento enorme
de todos os poemas
cristalizando-se em nada.
No tempo
a percepção da eterna
derrota
sob ressurreições infinitas.
De repente a borboleta seca
voando
voando na sala.
Oh dai-nos ao menos
esse momento úmido
de nossas mãos no vazio.

Olavo Bilac



"Delírio"

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
— Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
— Mais abaixo, meu bem! — num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
— Mais abaixo, meu bem! — disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Miguel Torga


Depoimento

Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante
Do Criador!
É o que eu diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!

Roberto Burle-Marx, "Natureza Morta"

Cesare Pavese, "O Instinto"

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

Simônides, "Instabilidade"


       Homem mortal,
                   não queiras predizer
                              o que o Amanhã trará,
                                                   nem, vendo alguém feliz,
o tempo em que há de assim continuar.
      
É rápida a mudança:
tão rápido nem é o voo instável
                                    da libélula de asas céleres.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

Simônides nasceu em Ceos, na Grécia (556 a.C -468 a.C).

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Djanira, "Natureza Morta"

Ana Cristina Cesar, "Fisionomia"

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.

Jorge de Sena


"Camões Dirige-se a seus Contemporâneos"

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Benedito Calixto, "Porto de Santos"

Manuel Bandeira, "Último Poema"

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Nuno Júdice, "Distância"

Entro no teu quarto como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. "Não te levantes, digo,
e deixe que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada". Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tarsila, "Operários".

José de Almada Negreiros



"A sombra sou eu"

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Drummond, "A Procura da Poesia "

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
                                                                                     [não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
                                                                                     [à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas
                                                                  [ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

sábado, 12 de setembro de 2009

Xilogravura do Poeta Matsuo Basho (1644 - 1694)

Alice Ruiz, "Mosquito Morto"

mosquito morto
sobre poemas
asas e penas

Cecília Meireles, "Plantaremos Estes Arbustos"

Plantaremos estes arbustos
que darão flor apenas
daqui a três anos.
Plantaremos estas árvores
que darão fruto um dia,
mas só depois de dez anos.
Não plantaremos jardins de amor,
porque imediatamente
abrem tristeza e saudade.
Não plantaremos lembranças
porque estão desde já e para sempre
carregadas de lágrimas.

Takaoka, "Ouro Preto"