sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Jair Ferreira dos Santos, "Mando flores"


Jamais em junho haverá outro inverno
em que o amor tenha saciado tanto.
Teu perfil no meu é menos um reflexo
que um caos de beijos numa lei que dança.

Ainda ronda teu riso pelo quarto
e preso dele escrevo nas paredes
palavras mágicas com que viaje armada
minha boca no enigma da tua sede.

Sei quanto nos separa. Nada conta.
Na Pérsia um miniaturista te desenha
como a mulher que ensinou seu nome
ao cego e doce pássaro do desejo.

Mando flores. São joias do instante.
Basta a intensa rosa que se abre
devastando o vazio com sua chama.
Só é perfeita a vida enquanto arde.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Eugénio de Andrade, "Os trabalhos e os dias"


Começo a dar-me conta: a mão
que escreve os versos
envelheceu. Deixou de amar as areias
das dunas, as tardes de chuva
miúda, o orvalho matinal
dos cardos. Prefere agora as sílabas
da sua aflição.
Sempre trabalhou mais que sua irmã,
um pouco mimada, um pouco
preguiçosa, mais bonita.
A si coube sempre
a tarefa mais dura, semear, colher,
coser, esfregar. mas também
acariciar, é certo. A exigência,
o rigor, acabaram por fatiga-la.
O fim não pode tardar. Oxalá
tenha em conta a sua nobreza.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Joaquim Nunes Claro, "Soneto"


És outra sempre! Dentro do meu peito
Tu mudas tanto que eu procuro em vão
Fixar mesmo que seja um só defeito
Da tua fugitiva imperfeição.

Sempre esmagado, todo em pó desfeito,
Continuamente, pela minha mão,
Eu acho assim teu coração perfeito
Por nunca ser o mesmo coração.

Se, no fim de algum beijo, me enfadaste,
Quando eu ia dizê-lo, tu mudaste,
E vi-me em frente doutra mocidade;

Sempre incompleto, o meu coração não cansa:
- Mal acabo de ter-te como esp´rança,
Já te tenho a chorar como saudade!

domingo, 26 de janeiro de 2014

Níkos Eggonópoulos, "Poesia 1948"


este tempo
de discórdia civil
não é tempo
para poesia
e coisas assim:
escrever
algo
é como se
fosse escrito
do outro lado
dos necrológios

é por isso que
os meus poemas
são tão amargos
(e quando - de resto - não o foram?)
por isso
é que são
- sobretudo -
tão
poucos


Tradução de José Paulo Paes


sábado, 25 de janeiro de 2014

Carlos Machado, "Heraclitiano"


na segunda chicotada
você já é outro

- não importa o lado
do chicote

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Fernando Assis Pacheco, "Soneto aos filhos"


Toda epopeia da família cabe aqui
um avô galego chegando a Portugal rapazinho
outro ao pé de Aveiro que se meteu
num barco para S. Tomé a fazer cacau

de filhos seus nasci
com este pouco de inútil fantasia
nutrida em solidões nas que me vejo
nu como um bacorinho na pocilga

e como ele indefeso e porém quis
mesmo assim ser mais que o animal
no tutano dos ossos pressentido

não peço nada usai meu nome
se voz apraz lembrai-me
o que for costume

mas livrai-vos do luxo e da soberba

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Níkos Kavvadías, "Mal du départ"


Eu serei sempre o amante hipotético e afoito
dos mares azulados e das longas travessias,
e morrerei numa noite igual a todas as noites,
sem ter rompido a vaga linha do horizonte um dia.

Enquanto para Madras, Cingapura, Argélia, Sfax,
os orgulhosos navios regularmente partirão,
num escritório, curvado sobre cartas de marear,
ficarei domando grossos livros de escrituração.

Dentro em pouco deixarei de falar nas longas viagens;
os amigos irão pensar que eu as tirei da mente,
e aliviada minha mãe dirá a quem lhe perguntar:
"Era um capricho de rapaz, que passou felizmente."

Mas certa noite diante de mim vai erguer-se o meu eu
para pedir-me contas, como um juiz tenebroso,
e esta minha mão inábil apontará tremendo
o revólver para abater sem medo o criminoso.

E eu que tanto desejei ser um dia sepultado
em algum mas das Índias, de profundezas enormes,
terei essa morte comum, deveras lamentável,
e um enterro igualzinho ao de todos os outros homens.

Tradução de José Paulo Paes

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ana Cristina Cesar, "Cabeceira"


Intratável.
Não quero mais por poemas no papel
nem dar a conhecer minha ternura.
Faço ar de dura,
não pergunto
"da sombra daquele beijo
que farei?"
É inútil
ficar à escuta
ou manobrar a lupa
da adivinhação.
Dito isto
o livro de cabeceira cai no chão.
Tua mão que desliza
distraidamente
sobre a minha mão.


domingo, 19 de janeiro de 2014

Carlos Drummond de Andrade, "A Educação do Ser Poético"

 
Por que motivo as crianças, de modo geral, são poetas e, com o tempo, deixam de sê-lo?
Será a poesia um estado de infância relacionada com a necessidade de jogo, a ausência de conhecimento livresco, a despreocupação com os mandamentos práticos de viver – estado de pureza da mente, em suma?
Acho que é um pouco de tudo isso, se ela encontra expressão cândida na meninice, pode expandir-se pelo tempo afora, conciliada com a experiência, o senso crítico, a consciência estética dos que compõem ou absorvem poesia.
Mas, se o adulto, na maioria dos casos, perde essa comunhão com a poesia, não estará na escola, mais do que em qualquer outra instituição social, o elemento corrosivo do instinto poético da infância, que vai fenecendo, à proporção que o estudo sistemático se desenvolve, ate desaparecer no homem feito e preparado supostamente para a vida?
Receio que sim.
A escola enche o menino de matemática, de geografia, de linguagem, sem, via de regra, fazê-lo através da poesia da matemática, da geografia, da linguagem.
A escola não repara em seu ser poético, não o atende em sua capacidade de viver poeticamente o conhecimento e o mundo.
Sei que se consome poesia nas salas de aula, que se decoram versos e se estimulam pequenas declamadoras, mas será isso cultivar o núcleo poético da pessoa humana?
Oh, afastem, por favor, a suspeita de que estou acalentando a intenção criminosa de formar milhões de poetinhas nos bancos da escola maternal e do curso primário.
Não pretendo nada disto, e acho mesmo que o uso da escrita poética na idade adulta costuma degenerar em abuso que nada tem a ver com a poesia.
Fazem-se demasiados versos vazios daquela centelha que distingue uma linha de poesia, de uma linha de prosa, ambas preenchidas com palavras da mesma língua, da mesma época, do mesmo grupo cultural, mas tão diferentes.
Se há inflação de poetas significantes, faltam amadores de poesia – e amar a poesia é forma de praticá-la, recriando-a.
O que eu pediria à escola, se não me faltassem luzes pedagógicas, era considerar a poesia como primeira visão direta das coisas e, depois, como veículo de informação prática e teórica, preservando em cada aluno o fundo mágico, lúdico, intuitivo e criativo, que se identifica basicamente com a sensibilidade poética.
Não seria talvez despropositado cuidar de uma extensão poética das escolinhas de arte, esta ideia maravilhosa que Augusto Rodrigues tirou de sua formação humana de artista para a realidade brasileira. Longe de ser uma fábrica alarmante de versejadores infantis, essa extensão, curso ou atividade autônoma, ou que nome lhe coubesse, daria à criança condições de expressar sua maneira de ver e curtir a relação poética entre o ser e as coisas. Projeto de educação para a poesia (fala-se hoje em educação artística no ensino médio, quando o mais razoável seria dizer educação pela arte).
A vocação poética teria aí uma largada franca, as experiências criativas gozariam de clima favorável sem que tal importasse na obrigação de alcançar resultados concretos mensuráveis em nível escolar.
Sei de casos em que um engenheiro, por exemplo, aos 30, 40 anos, descobre a existência da poesia…
Não poderia tê-la descoberto mais cedo, encontrando-a em si mesmo, quando ela se manifestava em brinquedos, improvisações aparentemente absurdas, rabiscos, achados verbais, exclamações, gestos gratuitos?
Alguma coisa que se bolasse nesse sentido, no campo da Educação, valeria como corretivo prévio da aridez com que se costuma transcrever os destinos profissionais, murados na especialização, na ignorância do prazer estético, na tristeza de encarar a vida como dever pontilhado de tédio.
E a arte, como a educação e tudo o mais, que fim mais alto pode ter em mira senão este, de contribuir para a educação do ser humano à vida, o que, numa palavra, se chama felicidade?
 
Publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro – em  20 / 07 / 1974.

sábado, 18 de janeiro de 2014

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Alexei Bueno, "Poesia"


Essa se vai
Mas sempre volta,
Nunca nos trai,
Nunca nos solta.

Damos-lhe uns reles
Trapos com prantos
E ela faz deles
Místicos mantos.

Damos-lhe a lama
Da alma, e ela acende
Nisso uma chama
Que a noite entende.

Damos-lhe a finda
Vida, e ela a alça
A outra tão linda
Que a ida faz falta.

Essa não mente,
Essa não passa,
Mira de frente
Glória ou desgraça.

E quando a Morte
Nos pisa, branda,
Essa diz, forte,
Levanta-te e anda.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Luís Miguel Nava, "Uma candeia"


Poisei na margem desta folha uma candeia, para que
se tornassem mais claras as palavras deste texto. Uma
candeia também ela feita de palavras e que, contraria-
mente às aparências, não está na margem mas dispersa
nas palavras, de tal forma que, se eu falar das praias, por
exemplo, o próprio olhar dos leitores torna visíveis os
contornos dos banhistas.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Guilherme de Almeida, "Mormaço"


Calor. E as ventarolas das palmeiras
e os leques das bananeiras
abanam devagar
inutilmente
na luz perpendicular.
Todas as coisas são mais reais, são mais humanas:
não há borboletas azuis nem rolas líricas.
Apenas as taturanas
escorrem quase líquidas
na relva que estala como um esmalte.
E longe uma última romântica
- uma araponga metálica - bate
o bico de bronze na atmosfera timpânica.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Paulo Bonfim, "Transfiguração"


Venho de longe, trago o pensamento
Banhado em velhos sais e maresias;
Arrasto velas rotas pelo vento
E mastros carregados de agonias.
Provenho desses mares esquecidos
Nos roteiros de há muito abandonados
E trago na retina diluídos
Os misteriosos portos não tocados.
Retenho dentro da alma, preso à quilha,
Todo um mar de sargaços e de vozes,
E ainda procuro no horizonte a ilha
Onde sonham morrer os albatrozes...
        Venho de longe a contornar a esmo
        O cabo das tormentas de mim mesmo.

sábado, 11 de janeiro de 2014

P. S. Rege (Purushottam Shivaram Rege), "Sonho"


Penso que devo ter adormecido por algum tempo;
Pois quando acordei tinhas vindo e partido.
Apenas algumas flores permaneciam -
Flores que não podiam sequer dizer quem eram...
E uma fragrância vaga e suave no ar.

Esta noite tenho de sonhar um sonho mais longo
Para que as flores falem
E a sua fragrância estenda um trêmula ponte
Ente nós.

Tradução de Cecília Rego Pinheiro.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

João Cabral de Melo Neto, "Litoral de Pernambuco"

 
O mar se estende pela terra
em ondas ondas que se revezam
e vão se desdobrando até ondas
secas de outras marés:
 

As ondas da areia, que mais adiante
se vão se desdobrando nos mangues,
que se desdobram (quase palha)
num capim lucas, de limalha,
 

que se desdobra em canaviais,
desdobrados sempre em outros mais,
e desdobrando ainda mais longe
o campo raso do horizonte,
 

como se tudo fosse o mar
em mais ondas a desdobrar
a mesma natureza rente
de um verde ácido e higiene:
 
tudo debaixo do alumínio
de um sol de cima nordestino,
sem que nada, ou coisa, interponha
o domingo de alguma sombra,
 
tudo sob um céu mineral
que preside em pedra, imparcial,
e que devassa tudo ali,
mesmo os grotões onde parir.
 

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

David Mourão-Ferreira












"Casa"

Tentei fugir da mancha mais escura
Que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
Era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
De não poder viver longe de ti:
És a sombra da casa onde nasci,
És a noite que a noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
E em quartos interiores o cheiro a fruta
Que veste de frescura a escuridão...

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
O que sem voz me sai do coração.


terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Ruy Cinatti


"Linha de rumo"
 
Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campos de flores
E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado.
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.
 
 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Ruy Castro, "O País da libações"


Somos bons para fabricar bebida – o que o Brasil produz anualmente de cerveja e cachaça daria para fazer do Saara um oceano – e para consumi-la. A todo dia e hora, a TV martela a mensagem de que tomar cerveja nos garante a eterna juventude e uma eufórica vida à beira-mar, rodeados de amigos e mulheres. Nesses comerciais, ninguém fica de porre ou de ressaca e, muito menos, vomita.

Neles, ninguém sai do botequim ou do quiosque com dez garrafas de cerveja no tanque, pega o carro, dribla a blitz da Lei Seca e manda para o céu os incautos que se puseram na rota do bólido. Ninguém volta para casa trocando as pernas e, ao ser repreendido pela mulher, acerta-lhe uma bolacha ou tenta esganá-la para restabelecer a moral no lar. E ninguém é menor, nem conta com garçons que lhe servem bebida na calçada. Ninguém sequer urina na árvore.

Somos bons para fabricar e consumir, mas péssimos para tomar medidas que compensem os efeitos dessa interminável libação. Responsáveis por acidentes de trânsito com mortos e feridos podem ser condenados, mas continuam à solta e ao volante. Somos ineficientes para calcular a incidência do álcool nos casos de violência doméstica, embora se suspeite que chegue a 99%. E quantos de nós sabemos a quem encaminhar um amigo ou parente com um nítido problema alcoólico?

Assim como o poder público conseguiu convencer os fabricantes de cerveja a bancar parte dos gastos com banheiros químicos no Réveillon e no Carnaval, poder-se-ia exigir deles algo semelhante quanto à prevenção.

Digamos: uma taxa –paga por eles– sobre cada garrafa, para a produção de comerciais em que seus clientes viveriam as situações descritas acima: urinando na rua, vomitando os bofes, batendo com o carro, espancando a mulher ou sofrendo com dor de cabeça. O Brasil se reconheceria nesses filmetes.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Giuseppe Gioachino Belli, "A vida do homem"


Nove meses no fedor, depois nas faixas,
por entre crostas, beijocas, lagrimonas,
depois à trela, na andadeira, em camisinha,
para-turras na testa, cueiros por calções.

Depois começa o tormento da escola,
o á-bê-cê, a vergasta e as frieiras,
a rubéola, a caca na cagadeira
e um pouco de escarlatina e de bexigas.

Depois o ofício, o jejum, a trabalhadeira,
a pensão a pagar, as prisões, o governo,
o hospital, as dívidas, a crica,

o sol no verão, a neve no Inverno...
E por último - e que Deus nos abençoe -
vem a morte, e acaba o inferno.

Tradução de Alexandre O'Neill

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Georg Trakl, "Ocaso"


Sobre o lago branco
partiram os pássaros selvagens.
No crepúsculo sopra de nossas estrelas um vento gelado.

Sobre os nossos túmulos
Inclina-se a fronte despedaçada das trevas.
Sob carvalhos, balançamos numa barca prateada.

Sempre ressoam os muros brancos da cidade.
Sob arcos de espinhos
Oh, irmãos, ponteiros cegos, escalamos rumo à meia-noite.

Tradução de Cláudia Cavalcanti

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Bruno Tolentino, "Segundo Movimento"


Mas vem o amor, o amor que faz tão doce
o travo em que circula à flor do instante,
e entre resíduos vai como se fosse
suficiente, plácido e constante...

Mas se é amor é muito mais cortante
e em lâmina tão leve disfarçou-se
que por melhor alar seu golpe pôs
cintilações de ganho em cada instante.

E a alma se insurge, cobra a amor que abrande
seu ginete malsão tonto de posse,
esse peso de corpo que a alma torce

e não doma, esse breve, esse bastante
soluço da vontade no imperfeito -
mas a alma cede, a alma sucumbe ao peito...