quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Juan Ramón Jimenez, "Com tua voz"


Quando eu estiver com as raízes
chama-me com tua voz.
Irá parecer-me que entra
a tremer a luz do sol.

Tradução de José Bento.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

António Ramos Rosa, "A noite chega com todos os seus rebanhos"


A noite chega com todos os seus rebanhos.
Uma cidade amadurece nas vertentes do crepúsculo.
Há um imã que nos atrai para o interior da montanha.
Os navios deslizam nos estuários do vento.
Alguma coisa ascende de uma região negra.
Alguém escreve sobre os espelhos da sombra.
A passageira da noite vacila como um ser silencioso.
O último pássaro calou-se. As estrelas acenderam-se.
As ondas adormeceram com as cores e as imagens.
As portas subterrâneas tem perfumes silvestres.
Que sedosa e fluída é a água esta noite!
Dir-se-ia que as pedras entendem os meus passos.
Alguém me habita como uma árvore ou um planeta.
Estou perto e estou longe no coração do mundo.

domingo, 28 de outubro de 2012

Paulo Henriques Britto, "1º Soneto da Biographia Literaria"


Lembranças pouco nítidas, provavel-
mente falsas. Imagens que se ordenam
segundo uma lógica indecifrável,
talvez inexistente. Mas que acenam,

uma porta entreaberta - não, fechada -
uma criança que não reconheço:
ou seja, muito pouco mais que nada.
É tudo que me resta do começo

disso que agora pensa, fala e sente
que pode ser denominado "eu".
Claro que houve um instante crucial

em que esses cacos mal e porcamente
colaram-se. E pronto: deu no que deu.
Já é alguma coisa. Menos mal.

sábado, 27 de outubro de 2012

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Eucanaã Ferraz. "Preciso"


Meu esforço para que os dias
tenham vinte e quatro horas, ossos,
o sol, a noite, para que ruas, praças
e túneis estejam nos seus lugares.

Meu esforço para que a voz se mova
na fibra exata, para que a cidade,
cada dedo de sua álgebra, não desabe,
para que as fábulas, risos e palavras

estejam no ponto certo, assim como
as pedras, prédios e montanhas
que mantenho quietos a custo.
Amor a quanto obriga.

Meu esforço, faina de todo dia,
para que disso tudo ele nada perceba.
E ele nada percebe. Chove,
e só eu sei.


quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Fernando Pessoa. "Canção"


Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!

Que ao menos a mão tocando
A mão que por ela passe,
Com externo calor brando
O frio da alma disfarce!

Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De a não mostrar a ninguém.


quarta-feira, 24 de outubro de 2012

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Eugénio de Andrade, "O lugar mais perto"


O corpo nunca é triste;
o corpo é o lugar
mais perto onde o lume canta.
Só na alma a morte faz a cama.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Wislawa Szymborska, "A vida na hora"


A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peço
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço a cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira à província.
Meus instintos são amadorismo.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá para retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como o casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que não conheço.
Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias. Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estrela.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar para sempre naquilo que fiz.

Tradução de Regina Przybycien.

sábado, 20 de outubro de 2012

Cesário Verde, "Cinismos"


Eu hei-de lhe falar lugubremente
Do meu amor enorme e massacrado,
Falar-lhe com a luz e a fé dum crente.

Hei-de expor-lhe o meu peito descarnado,
Chamar-lhe minha cruz e meu calvário,
E ser menos que um Judas empalhado.

Hei-de abrir-lhe o meu íntimo sacrário
E desvendar a vida, o mundo, o gozo,
Como um velho filósofo lendário.

Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso,
Os pegos abismais da minha vida,
E hei-de olhá-la dum modo tão nervoso,

Que ela há-de, enfim, sentir-se constrangida,
Cheia de dor, tremente, alucinada,
E há-de chorar, chorar enternecida!

E eu hei-de, então, soltar uma risada.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

António Ramos Rosa,"Os simples"


Acabaram-se talvez os excessos e os impulsos
Dissipámo-nos na luz como uma sombra.
Mas as palavras continuam feridas e comovem-se
em presenças verticais no vento, em obscuras chamas.
Que alianças, que pedidos sem fim, que consentimentos
perduram ainda nas palavras feridas!
É já a música nos flancos e nos ombros 
e a argila leve do desejo e um frêmito de folhas
e o vento e a ausência que quase diz um nome.
Nós aceitámos o ardor e o luto, o deserto das mesas.
Porque quisemos recomeçar na génese das pedras
ao nível do repouso simples das folhas e da cinza.


quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Rainer Maria Rilke, "A pantera"


No Jardim des Plantes, Paris

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,
está fatigado, já nada retém.
E como se existisse uma infinidade
de grades e mundo nenhum mais além.

O seu passo clássico e macio, dentro
do círculo menor, a cada volta urde
como que uma dança de força: no centro
delas, uma vontade maior se aturde.

Certas vezes, a cortina das pupilas
ergue-se em silêncio. - Uma imagem então
penetra, a calma dos membros tensos trilha -
e se apaga quando chega ao coração.

Tradução de José Paulo Paes.


terça-feira, 16 de outubro de 2012

Al Berto, "Mar-De-Leva nº 6"


    é tarde meu amor
    estou longe de ti, com o tempo diluíste-te nas veias das 
marés, na saliva de meu corpo sofrido
    agora, tuas máquinas trituram-me, cospem-me, interrompem o
sono
    habito longe, no coração vivo das areias, no cuspo límpido
dos corais... e no ventre impossível das cidades noturnas
    a solidão tem dias mais cruéis
    tentei ser teu, amar-te e amar o falso ouro...quis ser grande e
morrer contigo
    enfeitar-te com tuas luas brancas, pratear a voz em tuas
águas de seda... cantar-te os gestos com ternura
    mas não

    águas, águas inquinadas* pulsando dentro de meu corpo,
como um um peixe ferido, louco
    em mim a lama... e o visco inocente dos teus náufragos sem
nome-de-rua, nem estátua de jardim-público
    aceito o desafio com desdém

    na boca ficou-me um gosto a salmoura e destruição
    apenas possuo o corpo magoado destas poucas palavras
tristes que te cantam

* inquinadas - sujas, corrompidas.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

domingo, 14 de outubro de 2012

Wang Wei, "Na montanha"


Rochedos brancos
     da torrente emergem.
Folhas vermelhas,
     aqui e ali,
     sob o céu gelado.
Não choveu
     na trilha da montanha,
mas o azul do vazio
     molha nossas roupas.

Wang Wei foi um poeta chinês que viveu entre 701 e 761.

Tradução de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi.

sábado, 13 de outubro de 2012

Mário Sá-Carneiro














"Aquele Outro"

O dúbio mascarado - o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito.
O rei lua postiço, o falso atónito -
Bem no fundo, o cobarde rigoroso.

Em vez de pajem, bobo presunçoso.

Sua alma de neve, asco dum vômito -
Seu ânimo, cantado como indômito,
Um lacaio invertido e presunçoso.

O sem nervos nem Ânsia - o papa-açorda *,

(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal.

O raimoso, o corrido, o desleal,

O balofo arrotando Império astral,
O mago sem condão - o Esfinge gorda...

* Papa-açorda - Pessoa indolente, molangueira, palerma.
** Raimoso - Não encontrei o significado.
Pode ser uma corruptela, caída em desuso, de REIMOSO.
Reimoso - Que tem reima ou reuma, cheio de secreções pegajosas; que faz mal ao sangue; que produz coceiras, de mau gênio.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Eugénio de Andrade, "Os lábios"


Na música que é tua,
meus lábios torrenciais
caem pesados, duros.
E nunca mais.

Despenham-se a prumo
vidros ou punhais.
Arrastam-me ao fundo,
E nunca mais.

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Wisława Szymborska, "Elogio dos sonhos"


Nos sonhos
eu pinto como Vermeer van Delft.

Falo grego fluente
e não só com os vivos.

Dirijo um carro
que me obedece.

Tenho talento,
escrevo grandes poemas.

Escuto vozes
não menos que os mais veneráveis santos.

Vocês se espantariam
com minha performance ao piano.

Flutuo no ar como se deve
isto é, sozinha.

Ao cair do telhado
desço de manso na relva.

Respiro sem problema
debaixo d'água.

Não reclamo:
consegui descobrir a Atlântida.

Fico feliz de sempre poder acordar
pouco antes de morrer.

Assim que começa a guerra
me viro do melhor lado.

Sou, mas não tenho que ser
filha da minha época.

Faz alguns anos
vi dois sóis.

E anteontem um pinguim.
Com toda a clareza.

Tradução de Regina Przybycien

terça-feira, 9 de outubro de 2012

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Cecília Meireles, "Pedido"


Armem a rede entre as estrelas,
para um descanso secular!
Os conhecidos - esquecê-los.
E os outros, sem imaginar.
Armem a rede.

Chamem o vento, um grande vento
aéreo leão, para amarrar
sua juba de esquecimento
a esta rede, entre Deus e o mar.
Chamem o vento!

Não falem nunca mais daquela
que oscila, invisível, pelo ar.
Não digam se foi triste ou bela
sua vocação de cantar!
Não falem nela.

domingo, 7 de outubro de 2012

Miguel Torga, "Memória"


Com que saudades te recordo agora,
Lirismo antigo!
Odes de juventude
Cantadas com saúde
E alegria.
O sol de meio-dia
A pino no poema...
Tão pura cada imagem!
Tão viva a pulsação de cada verso!
Nunca em nenhum momento
O desalento
Deste triste reverso
Da inspiração.
Esta morte acordada
A olhar, calada,
A tampa do caixão.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Eucanaã Ferraz, "Manifesto"


Sim ao prazer sem custo.
Acatar, beber, dividir o bom
que venha feito o sol, gratuito.

Quem sabe se o dom, o sem razão
e o sem-motivos possam mais
do que exigimos. Nem se duvide

do que é capaz a coincidência
entre coisas. Nesse mundo
em que gênios são servos de si mesmo,

pratique-se o descanso, para
que o fogo nunca esteja frio
e o coração passeie seus cavalos.

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Carlos Drummond de Andrade, "Remissão"


Tua memória, pasto de poesia,
tua poesia, pasto dos vulgares,
vão se engastando numa coisa fria
a que tu chamas: vida, e seus pesares.

Mas, pesares de que? perguntaria
se esse travo de angústia nos cantares,
se o que dorme na base da elegia
vai correndo e secando pelos ares,

e nada resta, mesmo, do que escreves
e te forçou ao exílio das palavras,
senão contentamento de escrever,

enquanto o tempo, em suas formas breves
ou longas, que sutil interpretavas,
se evapora no fundo de teu ser?

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Paulo Henriques Britto, "Terceiro soneto noturno"


E durma-se com um barulho desses,
engulam-se os sapos necessários.
Resolução? Final feliz? Esquece.
Por outro lado, tudo está bem claro,

nada é ambíguo, e nas entrelinhas
é só espaço em branco. Noves fora,
não há saída. A coisa não termina.
A hora chega, e ainda não é a hora,

ou já é tarde e Inês é morta. Não,
não adianta mais. E no entanto
há que seguir em frente, sempre. Mãos

à obra, sim. Conforme o combinado.
Igual à outra vez: táticas, planos,
metas. É claro que vai dar errado.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Salvatore Quasimodo, "Anno Domini MCMXLVII"


Haveis parado de rufar os tambores
na cadência da morte aos quatro horizontes
junto aos féretros cobertos de bandeiras,
de semear chagas e lágrimas de piedade
nas cidade destruídas, ruína sobre ruína.
E ninguém mais exclama: "Deus ó Deus
por que me abandonastes?" E não mais corre
nem leite nem sangue no peito furado. E agora
que haveis ocultado os canhões entre as magnólias,
deixai-nos um dia sem armas, sobre a relva,
ao som da água que escorre,
das folhas de caniço frescas no cabelos
enquanto abraçamos a mulher que nos ama.
Que de repente não nos soe antes da noite
o toque de recolher. Um dia, um dia só
para nós, senhores da terra,
antes que outra vez rufle o ar e o ferro
e um estilhaço nos arda em plena fronte.

Tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti