sábado, 31 de maio de 2014

Hosai Ozaki, "Caminhando ..."


caminhando na praia
olho para trás –
nem uma só pegada
.

 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Edwin Morgan, "Na frente da televisão"


Tome cuidado se você me beijar,
você sabe que não morre.
A luz da lâmpada se estende, desenha
suavemente - toda ela - em fixidez,
tropas de sombras azuis como seu maxilar sob a luz
onde você fica assistido, meio assistindo
entre o amarelo e o azul.
Eu só vejo metade, só conheço sua metade.
Tome cuidado se virar agora pra mim
pois mesmo neste quarto nos movemos fora e através das estrelas
e formas que nunca nos deixam voltar, sua mão
que repousa levemente na minha coxa e minha mão no seu ombro
estão transfixadas somente lá, não aqui.

O que você poderia suportar que duraria
como uma pedra através de câncer e cabelo branco?

Ainda assim não é fácil
fazer balanço de misérias
quando a luz macia pisca
sobre nossos braços na quietude
onde decisões são tomadas.
Você tem que olhar pra mim, 
e então é o tempo que cai
numa conversa lenta até dormir.
Tradução de Virna Teixeira.
 

quinta-feira, 29 de maio de 2014

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Murilo Mendes, "A mulher anônima".


Lembra-te daquela mulher
Que um dia te acenou do alto de uma varanda.
Daquela forma admirável mas sem nome
Que uma tarde te disse adeus
Enquanto o automóvel parou um minuto na estrada.

Lembra-te da mulher pouco decorativa, mulher simples
Que não tiveste coragem de arrancar violento ao espaço
E que certamente nunca mais tornarás a ver.
Lembra-te da bela mulher que estremeceu por ti
E sê-lhe fiel até o último dia da tua vida.

 

terça-feira, 27 de maio de 2014

António Gomes Leal












"O Selvagem"        

Eu não amo ninguém. Também no mundo
Ninguém por mim o peito bater sente,
Ninguém entende meu sofrer profundo,
E rio quando chora a demais gente.

Vivo alheio de todos e de tudo,
Mais calado que o esquife, a Morte e as lousas,
Selvagem, solitário, inerte e mudo,
- Passividade estupida das Cousas.

Fechei, de há muito, o livro do Passado
Sinto em mim o desprezo do Futuro,
E vivo só comigo, amortalhado
Num egoísmo bárbaro e escuro.

Rasguei tudo o que li. Vivo nas duras
Regiões dos cruéis indiferentes,
Meu peito é um covil onde, às escuras,
Minhas penas calquei, como as serpentes.

E não vejo ninguém. Saio somente
Depois de pôr-se o sol, deserta a rua,
Quando ninguém me espreita, nem me sente,
E, em lamentos, os cães ladram à lua...


 

domingo, 25 de maio de 2014

Wislawa Szymborska,














"Agradecimento"

Devo muito
aos que não amo.

O alívio de aceitar
que sejam mais próximos de outrem.

A alegria de não ser eu
o lobo de suas ovelhas.

A paz que tenho com eles
e a liberdade com eles,
isso o amor não pode dar
nem consegue tirar.

Não espero por eles
andando da janela à porta.
Paciente
quase como um relógio de sol,
entendo o que o amor não entende,
perdoo
o que o amor nunca perdoaria.

Do encontro à carta
não se passa uma eternidade,
mas apenas alguns dias ou semanas.

Aas viagens com eles são sempre um sucesso,
os concertos assistidos,
as catedrais visitadas,
as paisagens claras.

E quando nos separam,
sete colinas e rios
são colinas e rios
bem conhecidos dos mapas.

É mérito deles
eu viver em três dimensões,
num espaço sem lírica e sem retórica,
com um horizonte real porque imóvel.

Eles próprios não veem
quanto carregam nas mãos vazias.

"Não lhe devo nada" -
diria o amor
sobre essa questão aberta.

Tradução de Regina Przybycien.

sábado, 24 de maio de 2014

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Eugénio de Andrade













"O que sobrou do verão ..."

O que sobrou do verão, alguns
cabelos, a luz da pele, esses gritos
anunciando a migração
das andorinhas do mar, o que sobrou

não o procures na minha boca;
nunca o deserto floriu nos lábios; nunca
o silêncio, essa flor rara, foi cristal
na madrugada;

o que sobrou do verão ilumina outro céu,
caminha e caminha
sobre águas mais limpas,
não voltará tão cedo, não voltará

a estes leitos, estas palavras.

quarta-feira, 21 de maio de 2014

Ana Hatherly











"Aquele que procurou ..."

Aquele que procurou
E não encontrou
é o homem desiludido.
Aquele que procura
E tudo encontra
E nada pode fazer do que achou
É mais que infeliz:
Sabe a verdade.

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Du Fu, "O rio sinuoso"


Todo dia, ao voltar da audiência imperial,
        empenho minha roupa de primavera.
Vou para a margem do rio,
        e só depois de bêbado
        retorno à casa.
Dívidas de vinho,
        deixo penduradas em qualquer cabide.
Nessa vida, chegar aos setenta,
        é muito raro,
        desde os tempos antigos.
As borboletas esvoaçam
        sobre as flores.
e de tempos em tempos
        uma de mim se aproxima.
As libélulas roçam a água
        em seus leves voos.
Breve é o tempo
        de estarmos juntos.
Melhor gozá-lo,
        já que não obedece
aos nossos desejos.

Tradução de Sérgio Capparelli e Sun Yuqi

Du Fu foi um poeta chinês que nasceu no ano de 712 e morreu em 770.

É interessante notar o que Horácio, que viveu em Roma entre os anos 65 a.C e 8 a.C, na ode "Carpe Dien" afirmou o mesmo que Du Fu. No entanto, com certeza Du Fu não conhecia a obra de Horácio.

Não indagues, Leucónoe, ímpio é saber,
          a duração da vida
que os deuses decidiram conceder-nos,
nem consultes os astros babilônicos:
          melhor é suportar
          tudo o que acontecer.

Quer Júpiter te dê muitos invernos,
          quer seja o derradeiro
este que vem fazendo o mar Tirreno
          cansar-se contra as rochas,
mostra-te sábia, clarifica os vinhos,
          corta a longa esperança,
que é breve o nosso prazo de existência.

          Enquanto conversamos,
          foge o tempo invejoso.
Desfruta o dia de hoje, acreditando
o mínimo possível no amanhã.

Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

domingo, 18 de maio de 2014

Carlos Heitor Cony, "Assanhamento"

 
       Nas últimas semanas, diariamente, as primeiras páginas dos nossos jornais e as primeiras chamadas dos noticiários da televisão, com certa monotonia e uma incerta crítica às nossas autoridades, revelam dúvidas e lamentações contra a Copa do Mundo.

Nunca antes um evento que tradicionalmente mexe com a alma e o corpo dos brasileiros, mesmo daqueles que detestam o futebol, criou um suspense tão sinistro.

Como reagirá o povo antes e durante a realização dos jogos e diante da massa de torcedores de todo o mundo? Na melhor das hipóteses, haverá euforia desenfreada se o Brasil conseguir o hexa. Digamos que no primeiro jogo, a Croácia vença ou empate com a seleção de Felipão. Pronto. Chegaram os dias anunciados pelo "Apocalipse", por Nostradamus e por uma porrada de profetas do Velho e do Novo Testamento.

Dona Dilma, apesar de não ser profetiza nem do Velho nem do Novo Testamento, apelou para a decantada fama da hospitalidade nacional, para o homem cordial louvado por alguns sociólogos.

Acontece que o brasileiro comum nada tem de cordial. Tem o assanhamento herdado dos nossos índios quando viram no horizonte as caravelas de Pedro Álvares Cabral.

Pulando de Cabral para Charles Dickens (1812-1870), lembro um de seus maiores personagens. Mister Pickwick aconselhava seus discípulos: "Quando encontrarem uma multidão gritando 'viva' ou 'morra', gritem com a multidão".

Um espírito de porco perguntou: "E se encontrarmos duas multidões, uma gritando 'viva', outra gritando 'morra'?" O mestre ensinou: "Então gritem com a multidão que gritar mais alto".

Dona Dilma deve seguir o conselho de Pickwick: esquecer a hospitalidade do homem brasileiro e enfrentar a realidade. E torcer para que Neymar e Fred façam bastantes gols.
 
Crônica publicada no jornal "Folha de São Paulo" em 18/05/2014. 

Roberval Pereyr, "Nudez"


Não quero ser simples.
Uma flor não é simples:
é uma flor. E não cede.

sábado, 17 de maio de 2014

Wisława Szymborska













"Opinião sobre a pornografia"

Não há devassidão maior que o pensamento.
Essa diabrura prolifera como erva daninha
num canteiro para margaridas.

Para aqueles que pensam, nada é sagrado.
O topete de chamar as coisas pelos nomes,
a dissolução da análise, a impudicícia da síntese,
a perseguição selvagem e debochada dos fatos nus,
o tatear indecente de temas delicados,
a desova das ideias - é disso que eles gostam.

À luz do dia ou na escuridão da noite
se juntam aos pares, triângulos e círculos.
Pouco importa ali o sexo e a idade dos parceiros.
Seus olhos brilham, as faces queimam.
Um amigo desvirtua o outro.
Filhas depravadas degeneram o pai.
O irmão leva a irmã mais nova para o mau caminho.

Preferem o sabor de outros frutos
da árvore proibida do conhecimento
do que os traseiros rosados das revistas ilustradas,
toda essa pornografia na verdade simplória.
Os liros que os divertem não têm figuras.
A única variedade são certas frases
marcadas com a unha ou com o lápis.

É chocante em que posições,
com que escandalosa simplicidade
um intelecto emprenha o outro!
Tais posições nem o Kamasutra conhece.

Durante esses encontros só o chá ferve.
As pessoas sentam nas cadeiras, movem os lábios.
Cada qual coloca sua própria perna uma sobre a outra.
Dessa maneira um pé toca o chão,
o outro balança livremente no ar.
Só de vez em quando alguém se levanta,
se aproxima da janela
e pela fresta da cortina
espia a rua.

Tradução de Regina Przybycien.

Tarsila, "Oratório"


sexta-feira, 16 de maio de 2014

Henriqueta Lisboa, "Serena"


Essa ternura grave
que me ensina a sofrer
em silêncio, na suavi-
dade do entardecer,
menos que pluma de ave
pesa sobre meu ser.

E só assim, na levi-
tação da hora alta e fria,
porque a noite me leve,
sorvo, pura, a alegria,
que outrora, por mais breve,
de emoção me feria.
  

quinta-feira, 15 de maio de 2014

Dante Milano, "Poemas de um verso "


Sou Poesia, não sei me traduzir.

O amor é só um, para nós dois.



Chorou nas mãos, chorou nas próprias mãos.

RAIZ
Sinto uma coisa que me prende à terra - a dor.

VIAGEM
Deus disse um dia ao homem: "Vai, mas volta".

ESCRAVA
Quem nunca vendeu sua alma não sabe quanto ela é pura.

terça-feira, 13 de maio de 2014

Carlos de Oliveira












"Canção"

Já escuro e denso o rio da memória
flui e me entristece,
se acaso lembro que chorei
o que nem lágrimas merece.

Se acaso o sono poupa o coração
e o coração vive,
já desalento
meu pensamento é tudo o que não tive.

Gênio do longe, que voltaste a minha casa
quando menos cuidava,
nem eu sei com que versos me perdi
de tudo o que era bom e me cantava.

Foge, inimiga sombra, volve
à sombra antiga de que vens rumorejando:
e lá, pátria do esquecimento,
seja olvidado o que me fores lembrando.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

José Régio


















"Testamento do poeta"

Todo esse vosso esforço é vão, amigos;
Não sou dos que se aceita... a não ser mortos,
Demais, já desisti de quaisquer portos;
Não vos peço a vossa esmola de mendigos.

O mesmo vos direi, sonhos antigos
De amor! olhos nos meus outrora absortos!
Corpos já hoje inchados, velhos, tortos,
Que fostes o melhor dos meus pascigos*!

E o mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo e todos vejo reduzidos,
E ao meu próprio Deus nego, e o ar me foge.

Para reaver, porém, todo o Universo,
E amar! e crer! e achar meus mil sentidos!...,
basta-me o gesto de contar um verso,

* Pascigo. pasto, pastagem.

sábado, 10 de maio de 2014

Mario Quintana














"Ah, sim. a velha poesia"

Poesia, a minha velha amiga...
eu entrego-lhe tudo
a que os outros não dão importância nenhuma...
a saber:
o silêncio dos velhos corredores
uma esquina
uma lua
(porque há muitas, muitas luas...)
o primeiro olhar daquela primeira namorada
que ainda ilumina, ó alma,
como uma tênue luz de lamparina,
a tua câmara de horrores.
E os grilos?
Sim, os grilos...
Os grilos são os poetas mortos.

Entrego-lhe grilos aos milhões, um lápis verde, um retrato
amarelecido, um velho ovo de costura. Os teus pecados, as
reivindicações, as explicações – menos
o dar de ombros e os risos contidos
mas
todas as lágrimas que o orgulho estancou na fonte
as explosões de cólera
o ranger dos dentes
as alegrias agudas até o grito
a dança dos ossos

Pois bem
às vezes
de tudo quanto lhe entrego, a Poesia faz uma coisa que
Parece nada tem a ver com os ingredientes mas que
Tem por isso mesmo um sabor total: eternamente esse
gosto de nunca e de sempre.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

João Ubaldo Ribeiro, "O negro e o macaco"


 Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista.

 Uma das mais clamorosas - e para mim enervantes - manifestações do atraso da espécie humana é esse negócio de raça. A importância que damos à raça, a ponto de odiar-se, matar-se e morrer-se por causa dela, leva inevitavelmente ao lugar-comum: seria ridícula, se não fosse trágica. É difícil encontrar um assunto sobre o qual se digam tantas besteiras quanto este, sempre ignorando não só evidências antropológicas como dados da própria realidade cotidiana. E é também bastante difícil falar sobre ele ou debatê-lo. Muita gente perde o controle, espuma de raiva e afoga o debate em gritos e denúncias.

Começa pela ligação, que aqui sempre se faz, entre escravidão e raça. Falou em escravos, falou em negros. Mas a maior parte dos escravos na história da humanidade não era de negros, o que lá seja isto. A escravidão, para generalizar razoavelmente, era o destino dos vencidos de qualquer raça, que não fossem exterminados. Inclusive, é claro, pois do contrário é que não seriam humanos, os da raça negra vencidos por outros da mesma raça, caso dos escravos vendidos ao Brasil. É comum a noção de que “negro é negro”, como se as incontáveis etnias negras se considerassem iguais. Isso equivale a entender que um alemão é igual a um polonês, um sueco igual a um italiano ou um espanhol igual a um russo. Não pode haver disparate maior - e, se bem olhado, racista  - do que achar que, num continente gigantesco e diversificado como a África, todos os negros são iguais e, mais bobamente ainda, irmãos. Irmãos em Cristo e, assim mesmo, se não forem muçulmanos. Vão perguntar se as minorias negras massacradas por nações também negras se consideram irmãs de seus algozes, ou estes daquelas. Ou aos escravos negros de outros negros, situação até hoje existente na África. Há até quem se escandalize com guerras e genocídios entre nações negras. Ué, e guerra de branco contra branco?

Desculpem se atropelo argumentos, mas é que o assunto me deixa nervoso também e me dá uma certa exasperação. Agora me ocorre interromper o que vinha dizendo para lembrar outra prática enervante: falar em cultura africana. Não existe, nem pode existir, uma cultura africana, em nenhum sentido. Aplica um reducionismo grotesco aquele que - e lembro outra vez o tamanho e a complexidade da África - acha que só existe uma cultura negra ou africana. De novo, é um argumento que, se bem olhado, pode ser considerado racista. Existe a cultura africana dos povos a que pertenciam os que foram trazidos para o Brasil como escravos, o que é muito diferente de dizer que ela é “a cultura africana”. Experimentem convidar um zulu para jantar e servir a ele comida ioruba, como na Bahia. Defender a existência de uma única cultura africana ou negra é insultuoso, ignorante e racista.

Aplicar padrões sociológicos americanos para o problema, no Brasil, é outra prática difícil de aturar. E faço a ressalva sempre exigida de que claro que no Brasil há racismo, patati-patatá. Mas a Bahia não é o Alabama. Já na década de 60, um casal, numa das Virgínias do Sul dos Estados Unidos, foi condenado a dois anos de prisão porque era inter-racial, ou seja, um dos dois era negro. As Forças Armadas só foram integradas na Guerra da Coreia e qualquer um que tenha vivido nos Estados Unidos sabe que lá é diferente e ou criamos nossas próprias categorias para examinar nossa realidade, ou prosseguiremos macaqueando até mesmo o racismo alheio.

Escrevi “macaqueando” aí em cima, sem de início lembrar a alusão a macacos em recentes incidentes de racismo no futebol. Mas ela vem a calhar, nesta salada que estou servindo hoje. É curioso como não paramos para pensar e notar que, quesito por quesito, algum racista negro teria razões para alegar que macaco é o branco e não o negro, o qual pode ser visto como muito mais distante do macaco que o branco. Se é verdade, não sei, nem isto tem importância alguma, mas pensem aqui num par de coisas. Imaginem, por exemplo, um ser inteligente de outro planeta, portanto não sujeito aos nossos condicionamentos, a quem incumbíssemos de esclarecer qual das duas raças é mais próxima do macaco. Para tanto, poríamos diante dele um branco nu, um negro nu e um chimpanzé, nosso primo próximo.

O primeiro impacto talvez fosse a cor e, de fato, o pelo do chimpanzé, assim como a pele do negro, é preto. Mas o bom observador não ia deixar-se levar por essa aparência. Façamos um exame cuidadoso e uma listazinha, junto com ele. O macaco é todo coberto de pelos, o corpo do negro é glabro, o branco pode ser o Tony Ramos; os pelos do macaco são lisos, os cabelos do branco também, os cabelos dos negros são crespos; raspado o pelo, a pele do macaco por baixo se revela branca e não preta; os lábios do macaco são finos, os do branco também, os dos negros são grossos; o macaco não tem bunda, o branco tem bunda chata, o negro tem bunda almofadada; até - perdão, senhoras - os renomados atributos masculinos dos negros são mais distantes do macaco, que é tipo piu-piu. Como se vê, basta escolher o que se quer levar em conta e, pelo menos neste exemplo perfeitamente plausível, o extraterrestre poderia concluir que o branco está bem mais perto do macaco que o negro.

Tudo bobagem, discussão que não leva a nada, somente ao ódio e à intolerância. Vamos parar de procurar modelos, ao menos nisto não sejamos tão colonizados, não permitamos que mais lixo contamine nosso pensamento. Os americanos é que têm obsessão por raça (lá nós, brasileiros, somos “hispânicos”), nós temos é a glória e o privilégio de ser o único país em que homens e mulheres de todas as raças se misturaram e misturam e onde a raça, Deus há de ser servido, ainda terá o lugar que merece, ou seja, nenhum.


(Publicado no jornal "O Globo".)

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Antônio Parreiras, "Marabá"

















Marabá, que no idioma tupi-guarani significa algo como "misturada", é o nome que os indígenas da região do Rio de Janeiro davam às crianças mestiças, nascidas de mãe índia e pai francês, durante o século XVI.
Elas eram discriminadas pelos outros membros na tribo, devido aos traços delicados, à cor dos olhos e da pele.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Roberval Pereyr













"Soneto"

Não me diga nada
que já estou na estrada
que meu tempo é curto.

Pois se a vida é breve
que daqui me leve
na inversão de um susto.

Quando a vida excede
sobre o meu destino
eis que desafino
por - sabê-lo tanto.

Ai este silêncio  
corrosivo, crasso,
seiva do fracasso
que transformo em canto.
 

terça-feira, 6 de maio de 2014

Reinaldo Ferreira, "Quero um cavalo de várias cores..."


Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?

segunda-feira, 5 de maio de 2014

domingo, 4 de maio de 2014

Carlos Drummond de Andrade













"O amor antigo"

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mais pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

sábado, 3 de maio de 2014

2º Movimento da Sinfonia nº 3, de Jean Sibelius, com a Orquestra Sinfônica de Gothenburg, sob regência de Neeme Jarvi.


Ruy Espinheira Filho, "Aniversário"


Metade do tempo consumada
ou ainda mais.
No peito, a mesma fome, a mesma sede
do menino, do rapaz.
O mesmo olhar perplexo
o mesmo sem resposta
gesto crispado interrogando.

(É dezembro
e noite e abro a janela
e vejo outras janelas iluminadas.
Ali há vida, como na rua, como
no campo e no mar e nos velozes
aparelhos que cortam o espaço
e
talvez
noutros planetas e universos.
Como há incontáveis séculos e
provavelmente
amanhã. mas tudo rápido
demais
que nem nos podemos saber
e partimos
no mesmo escuro em que chegamos.)

Perdi colegas, namoradas, cães.
Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.

Isto o que ganhei: essas perdas. isto
o que ficou: esse tesouro
de ausências.

(A noite avança, e as janelas
aos poucos
se apagam. No silêncio
meu coração permanece
iluminado. Eis que trabalha, fiel,
mesmo quando revela
a si mesmo em breve imóvel
ou, depois, a última estrela
sem testemunhas
no céu final.)

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Waly Salomão



 
 
 
 
 
 
 
"Amante da algazarra"
 
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.
É ela! ! !
Todo mundo sabe, sou uma lisa flor de pessoa,
Sem espinho de roseira nem áspera lixa de folha de figueira.
 
Esta amante da balbúrdia cavalga encostada ao meu sóbrio ombro
Vixe! ! !
Enquanto caminho a pé, pedestre — peregrino atônito até a morte.
Sem motivo nenhum de pranto ou angústia rouca ou desalento:
Não sou eu quem dá coices ferradurados no ar.
É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto
E se apossou do estojo de minha figura e dela expeliu o estofo.
 
Quem corre desabrida
Sem ceder a concha do ouvido
A ninguém que dela discorde
É esta
Selvagem sombra acavalada que faz versos como quem morde.