sábado, 29 de novembro de 2014

Eugénio de Andrade












"Com um verso da ceifeira"

Escrevo para fazer da luz
velha dos corvos
o limiar doutro verão.
Nenhuma sombra por mais nefasta
perturba o meu olhar:
tenho quinze anos, ao espaço
quadrado do pátio
regressa o canto das cigarras.
Com o sol à roda da cintura
o corpo deixa de ser hesitação,
corre ao encontro da água
ou doutro corpo, e canta,
canta sem razão.

Eugênio de Andrade refere-se poema "Ela canta, pobre ceifeira" de Fernando Pessoa, postado ontem.

sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Fernando Pessoa




















"Ela canta, pobre ceifeira"        

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anônima viuvez,

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente‘stá pensando.
Derrama no meu coração

a tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro!
Tornai Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!


quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Alexei Bueno, "Suma"


Tudo é mentira, já por ser do mundo,
mentem os livros, mentem os espelhos
Que não nos mostram quanto somos velhos
Nem quanta pedra nos nossos joelhos
Gravou paisagens de um rubor profundo.

Tudo é mentir, todas as histórias,
todas as páginas encadernadas
Com as suas tramas, suas madrugadas,
tais como as nossas, lidas e deixadas
Entre as estantes às traças inglórias.

Um tiro! A morte! Temos que morrer,
Dói-nos não sermos o que nós urdimos,
Doem-nos as dores que vimos e ouvimos,
As dores de antes, e as que pressentimos,
E o tempo chove a raiva de esquecer.

Tudo é mentira, firme-se o decreto!
E após o queimem pois mente também
E queimem isto e aquilo, o mal e o bem,
E a mim não poupem, pra que mais ninguém
Minta escrevendo outro poema abjeto.


terça-feira, 25 de novembro de 2014

Fiama Hasse Pais Brandão, "Epístola para um bandolim sempre em cima de uma mesa"


Não sabes onde está a tua alma eterna hoje
porque te deixei mudo e imóvel, sem os dedos
de alguém ignoto, um dia, que te possuiu
e ao teu etéreo dom. Perguntas-me se estarás
para sempre ali, e eu digo: não estarei para sempre.
Podes sonhar com a melodia antiga ainda,
que trocaste com o demo pelo teu silencio aqui,
pois estas mãos apenas imitam teu som subtil,
por erro e por defeito, nas palavras destes versos.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

José Blanc de Portugal, "Camões"


Passaste fome,
Dizem alguns que de tua vida comem
Vermes parasitas que vivem de inventar as tuas histórias...
Talvez um dia neles a mutação se opere
Quando os bichos mudem de alimentação e
Passem a roer a tua obra
E não a tua morta vida terreal.

Ah Camões! Luís Vaz, se visses
Como os vermes pastam tua glória!
Por um que ame apenas tua obra
Quantos te inventam a vida passada
P'ra explicar versos que não sentem
Ou sentem tão à epiderme
Que precisam de outra história
Que não a das palavras que escreveste!

Também eu li demais a tua inventada vida:
Tudo quero esquecer p'ra mais lembrar
Que poesia é só a tua glória
Eterna vida é só tua Poesia
E a vida que viveste é morta história.


sábado, 22 de novembro de 2014

Abgar Renault, "Reza"

 
Meu Deus, tende pena
do que resta em mim:
nem o mundo é feio,
nem a vida, ruim.
 
Meu Deus, dai-me força
de amar minha sorte:
fazer luz de vida
das trevas da morte.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Ledusha Spinardi, "Cena íntima"


Outubro termina a bordo de um ventinho de cambraias,
perfeito para cílios e lábios. Ainda há borboletas soprando
o véu da primavera. Do  outro lado da rua, através dos
brincos-de-princesa na treliça que contorna a varanda,
posso sentir o coração de um sabiá pulsar ao  compasso
solitário de um assobio. A luz da tarde anuncia
subitamente escuros, abafa-se, e logo a tempestade
cai, despenteando o cenário com raios esplêndidos.
Cai estrondosa e se vai, deixando a tarde fresca
e perfumada. Nos intervalos entre gotas tardias,
pesco um  sentimento ímpar de plenitude. Mosaicos
de folhas e galhos repousam no asfalto
cravejado de granizos.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Alphonsus de Guimaraens Filho, "Louvação"


                         I

Nem sei se blasfemei. Se blasfemei,
Deus passe um pano sobre tanto sujo.
Sinto-me exausto numa torre cujo
vértice tento atingir e não verei.

Nem sei se blasfemei. Apenas sei
que muita vez suponho que em vão rujo,
que me rebelo eu, um caramujo
que nem minha própria casa salvarei.

Nem sei , nem sei se blasfemei. Apenas,
olhando agora para trás, concluo
que eu devia cantar ou ter cantado

não os meus males só, não minhas penas,
mas a Beleza em que já me diluo,
em que me integro, Deus seja louvado.


                     I I

Louvado seja Deus! Seja louvado
pelos que não merecem nem louvá-Lo.
E, de louvado, passe a ser halo
de louvação por sobre o exasperado.

E de louvado passe a ser, e a dá-lo,
um resplendor por sobre o apagado
e cego humano amor alucinado
capaz (tão triste amor!) de desprezá-Lo.

De desprezá-Lo? De esquecê-Lo, digo.
De negá-Lo também. E, sem suporte
qualquer, julga-se pleno e desbordante

de certeza e de paz, seu próprio abrigo.
Louvado seja Deus, tempo adiante.
Louvado em nossa vida. E em nossa morte.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Chacal, "Delírio puro"


quanto mais louco
lúcido estou

no fundo do poço que me banho
tem uma claridade que me namora
toda vez que eu vou ao fundo

me confundo quando boio
me conformo quando nado
me convenço quando afundo

no fim do fundo
eu te amo

domingo, 16 de novembro de 2014

Miguel Torga, "Termo de responsabilidade"


Tudo.
Menos deixar uma incerteza
No caminho.
Quem vier nesta mesma direção,
Veja as passadas dos meus pés,
E siga.
Saiba por elas que não foi traído,
Mesmo se me encontrar adormecido
De morte natural ou de fadiga.

sábado, 15 de novembro de 2014

Bruno Tolentino, "À terra provisória"


   Adeus cimos e vales e veredas,
e bosques e clareiras e campinas
soltas ao vento, sacudindo as crinas
das espigas de sol na luz de seda.
    Adeus troncos e copas e alamedas,
esmeraldas selvagens que as neblinas
salpicavam de prata, adeus colinas
que iam subindo como labaredas.
    de cobalto no ar...Adeus beleza
irrepetível, que me viu nascer
e toca-me deixar: a natureza
também é feita de deixar de ser,
    e eu levo agora a sombra e deixo a presa
à inevitável luz do amanhecer.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Neide Archanjo, "Da poesia"


Esculpo a página a lápis
e um cheiro de bosque
então me aparece.
Que a poesia é feita de romãs
daquilo que é eterno
e de tudo que apodrece.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

Manuel Bandeira, "Na rua do sabão"











"Na Rua do Sabão"

Cai cai balão
Cai cai balão
Na Rua do Sabão!


O que custou arranjar aquele balãozinho de papel!
Quem fez foi o filho da lavadeira.
Um que trabalha na composição do jornal e tosse muito.
Comprou o papel de seda, cortou-o com amor,

                                           [compôs os gomos oblongos...
Depois ajustou o morrão de pez ao bocal de arame.


Ei-lo agora que sobe - pequena coisa tocante na escuridão do céu.
Levou tempo para criar fôlego.
Bambeava, tremia todo e mudava de cor.
A molecada da Rua do Sabão
Gritava com maldade:
Cai cai balão!


Subitamente, porém, entesou, enfunou-se e arrancou das
                                                                   [mãos que o tenteavam.
E foi subindo...
                            para longe...
                                                    serenamente...
Como se o enchesse o soprinho tísico do José.


Cai cai balão!

A molecada salteou-o com atiradeiras
                        assobios
                        apupos
                        pedradas.


Cai cai balão!

Um senhor advertiu que os balões são proibidos pelas posturas
                                                                                     [municipais.
Ele foi subindo...
                                  muito serenamente...
                                                                         para muito longe...


Não caiu na Rua do Sabão.
Caiu muito longe... Caiu no mar - nas águas puras do mar alto.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Olga Savary, "Nome"


Tu, em tudo presença,
vibrar de asa,

eu, que nem nome tenho,
jamais nua de água,

tu, felicidade do corpo
embasado em brasa,

eu, sequer lembrança,
mero eco na sala.

tu, veneno curare
- e eu é que me chamo naja?

domingo, 9 de novembro de 2014

Ruy Castro














"O falso Fla-Flu"

RIO DE JANEIRO - Vários analistas tacharam de "Fla-Flu" a campanha presidencial. Referiam-se à troca de acusações, mentiras, calúnias, rasteiras e golpes baixos, equiparando-a em ferocidade à que supostamente se dá entre as torcidas mais tradicionais do Brasil: as de Flamengo e Fluminense. Como Flamengo que sou, discordo. Em 102 anos de rivalidade, rubro-negros e tricolores nunca se rebaixaram ao nível que observamos nos últimos três meses.

O Fla-Flu não é uma guerra. É uma celebração, uma festa, um Carnaval comum às duas torcidas. É um embate de adversários, não de inimigos. Pela riqueza de suas cores e bandeiras nas arquibas, o Fla-Flu é também o mais belo espetáculo de futebol do mundo –segundo todos os turistas que já levei ao Maracanã para assisti-lo. E essa afinidade não é de hoje.

O Flamengo nasceu em 1895 como um clube de regatas; o Fluminense, em 1902, como um de futebol. O presidente do Flamengo assinou a ata de fundação do Fluminense; pouco depois, um fundador do Fluminense foi presidente do Flamengo. Os clubes eram vizinhos na rua Paissandu. O futebol do Fluminense torcia pelo Flamengo no remo e vice-versa. Em fins de 1911, um grupo de jogadores do Fluminense rebelou-se contra sua diretoria, deixou o clube e levou seu futebol para o Flamengo. A 12 de julho de 1912, os dois se enfrentaram pela primeira vez. Surgia o Fla-Flu.

A maior crônica sobre o Flamengo, "Flamengo sessentão", de 1955, foi escrita por um tricolor: Nelson Rodrigues, cujo segundo clube era o Flamengo. O Fla-Flu de 1963 reuniu 177.020 pagantes no Maracanã, sem uma briga, um bofetão. Eu próprio sou casado há 24 anos com uma tricolor, e também sem uma briga, um bofetão. E por aí vai.

Se disserem que a guerra Dilma x Aécio lembrou um Vasco x Flamengo ou Flamengo x Botafogo, não terei nada a opor.

Crônica publicada no jornal "Folha de S. Paulo" em 09/11/2014.

 

Alejandra Pizarnik, "Revelações"


De noite a teu lado
as palavras são códigos, são chaves,
o desejo reina.

Que teu corpo seja sempre
um amado espaço de revelações.


Tradução amadora minha.
 


"Revelaciones"

En la noche a tu lado
las palabrs son claves, son llaves,
el deseo es rey.
 
Que tu cuerpo sea siempre
un amado espacio de revelaciones.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Ruy Espinheira Filho, "O morto"


O morto vem no sonho
claro e completo.
Com seu jeito próprio
de lidar com crianças.
De beber.
                   Com o rosto
cheio de manhã.

Reconheço a praça
de onde ele me fita.
Mas a noite desce
e tudo se apaga.

Só ele continua
luminosamente
como se viesse da praia.
O ensolarado morto.

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

António Osório









"Mãe que levei à terra"

Mãe que levei á terra
como me trouxeste no ventre,
que farei destas tuas artérias?
Que medula, placenta,
que lágrimas unem aos teus
estes ossos? Em que difere
a minha da tua carne.

Mãe que levei à terra
como me acompanhaste à escola,
o que herdei de ti
além de móveis, pó, detritos
da tua e outras casas extintas?
Porque guardavas o sopro de teus avós?

Mãe que levei á terra
como me trouxeste no ventre,
vejo os teus retratos,
seguro nos teus dezenove anos,
eu não existia, meu pai já te amava.
Que fizeste do teu sangue,
como foi possível, onde estás?

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

John Cage, "Trecho da "Conferência sobre o nada", com Augusto de Campos".





"Eu estou aqui e não há nada a dizer.
Se algum de vocês quiser ir a algum lugar,
pode sair a qualquer momento.
O que nós requeremos é silêncio, 
mas o que o silêncio requer
é que eu continue falando.

Dê ao pensamento de alguém um empurrão;
ele cai logo...
Mas o que empurra e o empurrado
produzem esse entre-tenimento chamado dis-cussão. 

Vamos ter uma daqui a pouco?
Ou podemos decidir não ter uma dis-cussão?   
Como vocês quiserem...

Mas...

                agora     há       silêncios.

E as palavras fazem,

ajudam         
                   a fazer os silêncios...

Eu não tenho nada a dizer 
                                          e estou dizendo.

E isto é Poesia, como eu quero agora".


Pescado na internet:

Em agosto de 2011, no TUCA, em São Paulo, Vanderley Mendonça gravou num celular Augusto de Campos lendo sua tradução de um texto que John Cage leu na sua "Conferência sobre o nada".

Música: "In a Landscape (1948)", de Cage, por Stephen Drury
 

Aquarela de Ismael Nery. "Adalgisa e o artista"



terça-feira, 4 de novembro de 2014

Ivan Junqueira, "Indagações"


Na manhã fria e nevoenta,
inesperada dádiva neste verão que calcina
até mesmo a áspera pele das pedras,
pergunto-me afinal se valeu a pena
a aposta que fiz no infinito e na beleza,
em deus e na eternidade, na poesia
que me abandona agora à própria sorte
na extrema fronteira entre a vida e a morte.
E um pássaro pousado em meu ombro
responde: não há vida nem morte, mas apenas
o sonho de alguém que, numa viagem,
julgou estar em busca do eterno,
sem saber que o que nos cabe
(e o que somos, tão fugazes)
é, se tanto, uma escassa chama que arde
e se apaga ao fim da tarde.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Antônio Carlos Secchin


"No que toca à circulação da poesia,
as noites de autógrafo se transformam
em rituais simultâneos
de batismo e óbito de um livro,
que, fora dali,
não será mais visto
em lugar nenhum."

sábado, 1 de novembro de 2014

Adriano Espínola, "Insônia"


Virá. Terrível e branca.
Não importa o que eu faça.

Toda esperança é vã.
Implacável, sob a porta

e entre as frestas da janela,
ela - a luz da manhã.