sexta-feira, 31 de outubro de 2014

Johannes Brahms, "1º movimento da Sinfonia nº 4, com a Orquestra Filarmônica de Berlim, sob regência do maestro Herbert von Karajan"


Donizete Galvão, "Caros amigos"


Não ter amigos.
Ansiar por tê-los.
E dispensá-los.
Recriá-los, outros,
na imaginação.
Estar com todos
e com nenhum.
Beijá-los agora,
adeus depois,
amá-los sempre,
ateu,
que a solidão
não dura mais
que uma vida.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Mário Faustino














"Auto-retrato"

Oh não passar somente sugerido!
Desespero de nunca ver o anjo
Não conhecer nem mesmo a rosa e o lírio
Ter medo e ter vergonha ajoelhado
Querer ser puro e sempre ver-se impuro
A espera da morte a incerteza
A secreta esperança de ficar
A pétala da rosa sob a cota
O endereço guardado sobre o peito
Ver navios que chegam e vão sozinhos
E depois de tanta dor e tanta angústia
Pensar ter dado a luz a algo vivo
E levantar-se apenas com o poema.
 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Lêdo Ivo












"Recife, poesia"

Amar mulheres, várias.
Amar cidades, só uma - Recife.
E assim mesmo com as suas pontes,
e os seus rios que cantam,
e seus jardins leves como sonâmbulos
e suas esquinas que desdobram os sonhos de Nassau.

Amar senhoras, muitas. Cidade,
só uma, e assim mesmo com o vento amplo do Atlântico
e o sol do Nordeste entre as mãos.

Felizes os jovens poetas que recebem em seus corações
antes do amor e depois da infância
a palavra, a cidade Recife.
Felizes os poetas que podem lembrar-se eternamente
das pontes que separavam: ia-se a noite
no Capibaribe, e as águas do Beberibe
te davam, ó Madalena
o meu primeiro verso.

Corola diante do mar,
bares da arte poética,
bondes, navios, aviões.
Cidade, meus pés transportam as tuas pontes
para margens versáteis.

Igrejas nos postais, namorados nos portais.
Recife de meu pai,
Recife que me deu a poesia sem que eu pedisse nada,
cidade onde se descobre Rimbaud,
a maresia de antigamente em meus olhos abertos.
Mulheres, inúmeras. Cidade, só uma
e assim mesmo diante do mar.


Lêdo Ivo fez este poema homenageando o Recife, embora seja alagoano.
Talvez por isso não o tenha publicado em seus livros.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

domingo, 26 de outubro de 2014

Jorge Luis Borges, "A volta"


Ao fim dos anos de desterro
voltei à casa da minha infância
e ainda estranho seu ambiente.
Minhas mãos tocaram as árvores
como quem acaricia alguém que dorme
e repeti antigos caminhos
como se resgatasse um verso esquecido
e vi ao esparramar-se a tarde
a frágil lua nova
que se apoiou no abrigo soturno
da palmeira de altas folhas,
como ao seu ninho o pássaro.

Que caterva de céus
conterá entre seus muros o pátio,
quantos poentes heroicos
militarão nas profundezas da rua
e quantas luas novas quebradiças
derramarão no jardim sua ternura,
antes que a casa me reconheça
e de novo seja um hábito !

Tradução amadora minha.

sábado, 25 de outubro de 2014

Alejandra Pizarnik





















"Amantes"

Uma flor
              na lonjura da noite
              meu corpo calado
        se abre
à delicada urgência do orvalho


Tradução amadora minha.



Amantes

Una flor
            no lejos de la noche
            mi cuerpo mudo
       se abre
a la delicada urgencia del rocío

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Adriano Espínola, "O coqueiro"


                                                                                          A Waly Salomão

Altivo,
ergue-se frente ao mar.
Com as palmas agitadas,
quer ser um pássaro.
 
Por um momento,
detém-se em pleno voo;
a copa verde
abraçada ao vento largo.
A memória do tronco
se volta,
porém,
longa-
mente,
para a
terra,
sugando
a seiva
salgada
dos sonhos.
 
O coqueiro
é um verso vegetal posto de pé.
 
 

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Lêdo Ivo, "O jumento"


No alto da crestada ribanceira
pasta o jumento. Seus grandes dentes amarelos
trituram o capim seco que restou
de anta primavera.
A terra é escura. No céu inteiramente azul
o sol lança os fulgores que aquecem
tomates, alcachofras e berinjelas.
O jumento contempla o dia trêmulo
de tanta claridade
e emite um relincho, seu tributo
à beleza do universo.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Donizete Galvão, "Diálogo"


-
Imagine o toque da navalha
trilhas abertas na pele da cara.

-
pense no corte da gilete
rompendo o tecido das veias
rastro de sangue
na areia
mar azul tinto de vermelho

-
e a possibilidade do salto
do edifício da Sears
gosto de abismo na boca
no voo reto para o asfalto?

-
e por que não a roleta russa
a bala exata zumbindo no ouvido?

-
e por aí foram
até que se quedaram
                                mortos
de tédio

domingo, 19 de outubro de 2014

Edson Cruz












"Bibliotecas"

A biblioteca do pai de Borges
foi o fato capital de sua vida.
Ele nunca saiu dela, disse.

Em minha casa nunca tive
livros.
O fato capital de minha vida
é não ter tido pai.

Minha mãe foi minha biblioteca.
Ensinou-me tudo.
Nunca saí dela.
Era analfabeta e deveria
ter se chamado Alexandria.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Moacir de Almeida


















"Desesperação de cinzas"

No martírio das minhas esperanças,
Tive raivas, blasfêmias, desvarios...
E ergui meus braços, hirtos como lanças,
Contra os astros sonâmbulos e frios.  

Porque jamais os sóis, em noites mansas,
Rasgassem luz nos meus fatais transvios,
Abri-me em ódios e desesperanças,
Como um vulcão se abre em clarões bravios.  

E - cratera de anátemas e assombros —
Tudo queimei em brasas de tormentos...
E, hoje, que o amor despenha em lama e escombros,

- Contra as constelações, a escurecê-las,
Arrojo as cinzas do meu tédio aos ventos
E a fumaça dos sonhos às estrelas...
 

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Marly de Oliveira, "Retrato"

 
Deixei em vagos espelhos
a face múltipla e vária,
mas a que ninguém conhece
essa é a face necessária.

Escuto quando me falam,
de alma longe e rosto liso,
e os lábios vão sustentando
indiferente sorriso.

A força heróica do sonho
me empurra a distantes mares,
e estou sempre navegando
por caminhos singulares.

Inquiri o mundo, as nuvens
o que existe e não existe,
mas, por detrás das mudanças,
permaneço a mesma, e triste.
 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

Alexei Bueno, "Tróia"


Tudo houve aqui, e aqui era tão pouco...
Nem portais nem palácios, nem muralhas
Viram tais blocos de adobes e palhas,
Nem mesmo Aquiles rouco

De dor, nem um estranho cavalo oco...
Só ele, o Cego, os viu. Tantas batalhas
De após, entre milhões, foram migalhas
Junto a este sonho louco.

Vós, mortos de outras guerras, sois as lendas
Perto desses que nunca guerrearam.
Mortal nunca te prendas

Demais ao que achas que é. Quem faz o mundo
É o sonho. Os olhos do cego fitaram
o humano sol mais fundo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Jorge Wanderley

 

"Poesia"

Nem sempre está disponível
(agora mesmo não está)
mas às vezes diante de muita provocação,
fica: é preciso
estar com a cabeça boa
e cabeça também nem sempre está disponível,
como agora.

É preciso ter bom fígado
bons amigos - ou pelo menos um -
mulheres para lembrar ou praticar
decentemente. Nem sempre estão,
sem sempre. Como agora.
Versos que ecoam, alheios e próprios,
ajudam. Certa nervura que aparece
depois de arranhada, vergão
na pele da asa.

Asa é preciso.
mesmo quando pesa chumbada
ao chão, mortiça e torpe.
Algumas até propiciam, do peso, o sopro.

Sopro é preciso.
Quase sempre vem de fora.
E às vezes não vem ou vem do inferno
como agora.

sábado, 11 de outubro de 2014

Eugénio de Andrade, "Cala-te..."


Cala-te, a luz arde entre os lábios
e o amor não comtempla, sempre
o amor procura, tacteia no escuro,
esta perna é tua?, é teu este braço?,
subo por ti de ramo em ramo,
respiro rente à tua boca,
abre-se a alma à língua, morreria
agora se mo pedisses, dorme,
nunca o amor foi fácil, nunca,
também a terra dorme.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Micheliny Verunschk












"O livro"

Havia de encontrar
alguma velha ferida
e nela, supurando ainda,
teu rosto:
outonos e infinitos
esquecidos
entre páginas amareladas
e a dor,
essa inútil traça.

Antônio Carlos Secchin, "Margem"


Vou andando para a beira desse porto,
entre cheiros de cigarro e de sardinha
e um desejo líquido de partir.
Meu olhar desliza no horizonte, querendo saber
a que distância um nome deixa de doer.
Teu nome, marcado em minha boca
como a polpa de uma pera.
O navio enorme avisa que vai embora.
Escrevo a palav4ra salto,
e paro no sal, e não chego ao alto.
A noite está boiando
num óleo grosso de silêncio e luz.
Molho os pés, penso em teu nome: gozo
de um poço tampado. Perfil de musgos
na beira das águas redondas.
me vejo na ponta do cais,
cacos de luz
abrindo a cara do mar.
Destroços de palavras, pedaços de teu nome,
sílabas que batem contra os cascos.
Estou parado na beira de um porto,
azul e morte no oco do ar.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Angela Melim, "Não sinto..."


Não sinto
(muito mais)
falta
nem saudade.

Estou tomando gosto das coisas.

Figuras e linguagem.

Uma laranja
diminutivo
sopinha quente
um sorriso
uma boa chuveirada.

O verão!
Como é colorido
Super.

O Rio de Janeiro.
Uma viagem.
Contradições. Sinônimos.

Que boa a mão da idade.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Lêdo Ivo, "Primeira lição"


Na escola primária
Ivo viu a uva
e aprendeu a ler.

Ao ficar rapaz
Ivo viu a Eva
e aprendeu a amar.

E sendo homem feito
Ivo viu o mundo
seus comes e bebes.

Um dia num muro
Ivo soletrou
a lição da plebe.

E aprendeu a ver.
Ivo viu a ave?
Ivo viu o ovo?

Na nova cartilha
Ivo viu a greve
Ivo viu o povo.

domingo, 5 de outubro de 2014

Antonio Cicero, "Eco"


A pele salgada daquele surfista
parece doce de leite condensado.
Como seu olhar, o mar é narcisista
e, na vista de um, o outro é espelhado.
E embora, quando ele dança sobre as cristas,
goste de atrair olhares extraviados
de banhistas distraídos ou artistas,
e claro que o mar é seu único amado.
Ei-lo molhado em pé na areia; folgado,
ao pôr-do-sol tem de um lado a prancha em riste
e usa do outro uma gata e um brinco e assiste
serenamente ao horizonte inflamado
e a brisa o alisa e enfim ele não resiste
à beleza e diz "sinistro" e ouve eco ao lado.

sábado, 4 de outubro de 2014

Judith Teixeira, "Volúpia", dito por Luis Gaspar.



Era já tarde e tu continuavas
entre os meus braços trémulos, cansados...
E eu, sonolenta, já de olhos fechados,
bebia ainda os beijos que me davas!

Passaram horas!… Nossas bocas flavas,
Muito unidas, em haustos repousados,
Queimavam os meus sonhos macerados,
Como rescaldos de candentes lavas.

Veio a manhã e o sol, feroz, risonho,
entrou na minha alcova adormecida,
quebrando o lírio roxo do meu sonho...

Mas deslumbrou-se... e em rúbidos* adejos**
Ajoelhou-se... e numa luz vencida,
Sorveu…sorveu o mel dos nossos beijos!


*Rubido - adj. Que tem cor vermelha, rubra.

**Adejos - subst. Voos, voleios,

Ivo Barroso, "Icástico*"


Foi-se o tempo em que eras uma caveira
              e a foice
Vejo-te agora como tubos
              máscara de oxigênio
num quarto de hospital

Mas o horror ainda é o mesmo
nessa passagem para o nada

* icástico - adj. Que representa com clareza, sem artifícios, objetos ou ideias.

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Neide Archanjo












"Do amor"

Não pude ser
o teu amor perfeito
antes esta ferida.
Por isso para ti
não serei a pele
- poro a poro teu alumbramento -
serei apenas cicatriz.

Perfeita.


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Olga Savary












"Outra cena"

Sentada estavas quando ele entrou
seguido de uma princesa ou uma serpente.
Só sabes que teu rosto não mudou
mas em turvo mudou-se o transparente
riso de antes, pesados os gestos.
Viraste uma mulher que acordada
e de frente vê um sonho mau
se sonho e distante já nem sente
e que já não amando é como se amasse
e, perdido o amor, é como se o tecesse.