sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Luisa Deane, "A última voz"


Quando eu morrer
Recolhe por favor os meus sonhos espalhados pelos cantos
E reconstrói meu corpo com infinita paciência.
Junta
Amassa
Modela sem ânsia
Essa massa de lenda em rubra tinta
E o meu oásis de flor
Entre as ruínas.
Faz-me então dessa maneira nova
Faz-me forte! Faz-me eterna!
Dessa matéria etérea dos sonhos e das rainhas.
Então, ama-me!
Ama-me sem pressa
                      Dor
                      Faca
                      Espinho
À rósea flor das cicatrizes.


quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Octavio Paz, XIIº poema dos "Trabalhos do poeta"


Depois de ter cortado todos os braços que se estendiam para mim; depois de ter entaipado todas as janelas e todas as portas; depois de ter inundado os fossos com água envenenada; depois de ter edificado minha casa no rochedo dum Não inacessível aos afagos e ao medo; depois de ter cortado a língua e logo a devorar; depois de ter lançado punhados de silêncio e monossílabos de desprezo a meus amores; depois de ter esquecido meu nome e o nome dos meus amores; depois de me ter julgado e condenado a perpétua espera e a solidão perpétua, ouvi contra as pedras de meu calabouço de silogismos a investida húmida, terna, insistente, da primavera.

Tradução de Luís Pignatelli


terça-feira, 27 de outubro de 2015

Alexei Bueno














"Crença"

Quero os deuses todos,
Menos o deus único.
Sejam persas, godos,
Ou um celta, um púnico.

Que me envolvam de arte
Com faces, com signos,
Shiva, Exu, Melkart,
Zeus, todos são dignos

De encantar-me as íris,
Mitra, Baal, Belenos,
Thor, Apolo, Osíris,
Sempre mais, não menos.

Só não me venha Aquele
Que é o que é, o que há.
Loucos sabem dele.
Ele lá, nós cá.

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Rubens Jardim, "Metamorfose"


Morto e reciclado
O poema está no lixo

Em certos coloridos
Conquistou um lugar

Tornou-se energia

E junto dos ratos

Na réstia de sol

Resiste
Em silêncio

sábado, 24 de outubro de 2015

Lúcio Cardoso, 1º dos "Poemas do Colégio Interno"


Nunca eu soubera o segredo da alegria alheia.
Ouvia os risos que enchiam o pátio de recreio
e sofria dessa dor sem nome de sentir a vida
muito mais cedo do que os outros sentem.

O sol refulgia no dorso branco dos muros
e trazia o desejo como a morte aos caminhantes.
Mas que estranha maldição tinha tombado nos meus ombros
para que só eu sentisse o frio das grandes árvores solitárias?

É certo que lutava para compreender o menino triste,
insensível à agitação em torno.
Sabia que ele tinha medo do ruído que ouvia,
mas também tinha medo do silêncio que devora.

E em breve, vendo o tempo crescer como a noite das águas,
reconheci a meninice que fugia
e senti mais funda a dor de compreender
o terrível e frágil segredo das horas.

Quis deter o menino que morria,
quis falar alguma coisa ainda não dita,
uma palavra, um soluço,
um riso que era como a sombra de um outro ser,
vivendo no meu sangue.
Mas era muito tarde
e eu sentia os anos implacáveis que chegavam.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Hilda Fogaça, "Da minha janela"


São duas figuras mágicas
São duas figuras cênicas
São duas figuras
Se amando
Se odiando
Se matando
Ou são apenas
só duas roupas
comuns dependuradas?

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Alexei Bueno, "Inventário"


Dois dedais, uma mecha de cabelos,
Uma oração para os desesperados,
A metade de uns óculos, três dados,
Uma carta saqueada dos seus selos,

Um pincel calvo, a haste sem os pelos,
Alguns retratos turvos e traçados,
Uma ponte com os dentes arrancados,
Três breviários sem crenças para lê-los,

Algumas fotos tênues de uma loira,
Notas, chaves, tostões, meia tesoura,
Dez apólices virgens de reembolsos,

Um botão, a numeração de um túmulo,
Um bloco de endereços, e eis o acúmulo
Do que o sonho tinha aos morrer nos bolsos.

terça-feira, 20 de outubro de 2015

Brasigóis Felício, "Espelho vomitado"


Essa é a nossa densa verdade:
         o dia tem sido
         só de espelhos
de nossos vômitos e medos.

Este é o nosso denso degredo:
         as vidas, nos humanos
         que enxergamos,
         tem sido tecidas
         só de exílios e ossos.

É esta a tragédia cotidiana
que nos sufoca:
         a de só termos ouvidos
         para ouvir nossos gritos.

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

domingo, 18 de outubro de 2015

Adriano Espínola, "LIXO LIXO LIXO LIXO"


- Sobras que mãos humanas um dia tocaram e largaram;
- Objetos que roçaram a nossa pele,
            lamberam a nossa língua
            cheiraram o nosso sexo
            e depois quedaram-se tristes;

- As catadoras de lixo com a pureza de seus dedos famintos
  e seus grandes sacos cinzentos de mágoa,

           - Salve!
 (Ó universos paralelos curvando suas
espinhas
                 sobre
                 restos amontoados da realidade.)

sábado, 17 de outubro de 2015

Vinícius de Moraes













"Vida e poesia"

A lua projetava o seu perfil azul
Sobre os velhos arabescos das flores calmas
A pequena varanda era como o ninho futuro
E as ramadas escorriam gotas que não havia.
Na rua ignorada anjos brincavam de roda...
— Ninguém sabia, mas nós estávamos ali.
Só os perfumes teciam a renda da tristeza
Porque as corolas eram alegres como frutos
E uma inocente pintura brotava do desenho das cores
Eu me pus a sonhar o poema da hora.
E, talvez ao olhar meu rosto exasperado
Pela ânsia de te ter tão vagamente amiga
Talvez ao pressentir na carne misteriosa
A germinação estranha do meu indizível apelo
Ouvi bruscamente a claridade do teu riso
Num gorjeio de gorgulhos de água enluarada.
E ele era tão belo, tão mais belo do que a noite
Tão mais doce que o mel dourado dos teus olhos
Que ao vê-lo trilar sobre os teus dentes como um címbalo
E se escorrer sobre os teus lábios como um suco
E marulhar entre os teus seios como uma onda
Eu chorei docemente na concha de minhas mãos vazias
De que me tivesses possuído antes do amor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Dante Milano, "Salmo perdido"


Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade.
Um deus moderno, deus de guerra e, não, de paz.

Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.

O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.

Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Carlos Newton Júnior, "Pantera"


Jamais a verdadeira vi
- o hálito quente e o frio olhar -
para além das rijas barras
que mundo nenhum retém:

encontrei-a nas palavras
precisas, que são ferro e pedra,
sangue vivo, força oculta,
veludo quase matéria.

E eram tantas as panteras
nas diversas traduções
do mesmíssimo poema.

Em todas, o vulto negro
num silêncio ditirambo
com seus coturnos de seda.


terça-feira, 13 de outubro de 2015

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Píndaro, "Sabedoria"


           Melhor é desejar do céu
coisas que assentam a um espírito mortal,
        sabendo o que se encontra a nossos pés,
        e qual a sorte para que nascemos

            Ó minh'alma, não aspires
         a uma existência de imortal,
            mas goza plenamente
tudo o que esteja ao teu alcance.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.

Píndaro nasceu em Cinoscéfalas, na Beócia, em 522 a.C e morreu em 448.a.C.

domingo, 11 de outubro de 2015

Emílio Moura, "Súplica"


                                     Por que chamais: Senhor, Senhor... e
                                                       não fazeis o que eu digo?

                                                                             Lucas 6,46

Os inquietos, os loucos, os que ainda não Te descobriram, e os que
                                                                [ nada compreendem,
os que pararam, e os que jamais tentaram a grande jornada,
todos eles, Senhor, estão comigo neste momento.

Comigo estão todos os que perderam a grande partida.
Comigo estão, Senhor, todos os que Te deixaram,
e os que não souberam buscar-Te.
Comigo estão, Senhor, todos os que Te deixaram,
e os que não souberam buscar-Te.
Comigo estão os que não Te amam, nem Te compreendem,
os que Te negam, porque são felizes,
e os que Te negam, porque são infelizes.

Senhor, todos eles estão, agora, em minha insônia e em minha desolação,
         [como a presença da morte está na máscara dos que nada esperam.

Mata-os em mim, Senhor.

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Henriqueta Lisboa, "A face lívida"


Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que coram
aos açoites
da vida.
Porém, a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.

Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas
entranha.

Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Odylo Costa, filho















"Soneto da fidelidade"

Não receies, amor, que nos divida
um dia a treva de outro mundo, pois
somos um só que não se faz em dois
nem pode a morte o que não pode a vida.

A dor não foi em nós terra caída
que de repente afoga mas depois
cede às forças das águas. Deus dispôs
que ela nos encharcasse indissolvida.

Molhamos nosso pão cotidiano
na vontade de Deus, aceita e clara,
que nos fazia para sempre num.

E de tal forma o próprio ser humano
mudou-se em nós que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.

Na foto, Odylo junto com sua mulher e musa, Maria de Nazareth Pereira da Silva Costa, a Nazareth.

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Teógnis de Mégara, "A melhor coisa"


          A melhor coisa
seria não nascer aqui no mundo,
nem contemplar jamais a luz do sol.
Se alguém nasceu, porém, melhor que viaje
para as portas da Morte, a toda pressa,
e estreitamente envolto pela terra
         descanse em paz.

Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Raul Bopp, "Dona Chica"


A negra serviu o café.
- A sua escrava tem uns dentes bonitos, Dona Chica.
- Ah, o senhor acha ?

Ao sair
a negra demorou-se com um sorriso na porta da varanda.

Foi entoando uma cantiga casa a dentro:

Ai do céu caiu um galho
Bateu no chão. Desfolhou.

Dona Chica não disse nada.
Acendeu ódios no olhar.

Foi lá dentro. Pegou a negra.
Mandou metê-la no tronco.
- Iaiá Chica, não me mate!
- Ah! Desta vez tu me pagas.

Meteu um trapo na boca.
Depois
quebrou os dentes dela com um martelo.

- Agora
junte esses cacos numa salva de prata
e leve assim mesmo,
babando sangue,
pr'aquele moço que esta na sala, peste!

sábado, 3 de outubro de 2015

Cecília Meireles











"Com sua agulha sonora ..."

Com sua agulha sonora
borda o pássaro o cipreste:
rosa ruiva da aurora,
filha celeste.

E com sua tesoura sonora
termina o bordado aéreo.
Silêncio. E agora
parte para o mistério.

A ruiva rosa sonora
com sua folha celeste
imperecível mora
no cipreste.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Lila Ripoll














"Poesia"

Toda poesia do poema
não vale a outra - a verdadeira.
A que não consegue transpor
a face fria, que ficou ignorada.
A que não pode ser desprendimento,
mas apenas subir como perfume.

As palavras estão gastas
e sem cor. As palavras
são suspiros ritmados,
benevolentes fantasmas
bem vestidos.

A verdadeira poesia - a invisível,
toca de leve a fímbria
dos meus versos. Mas permanece
intacta no seu mundo.