segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Campo de eros"


Amor: esta palavra acende uma
lua no peito, e tudo mais se esfuma.

E testemunho: eis que Amor deixou
ferida cada coisa que tocou.

E tudo dele fala: a mesa, a cama
(como abrasa este  hálito de chama!),

o bar, cadeiras, livros e paredes
vivem, revivem: de fomes e sedes

a corpos saciados. Tudo fala,
tudo conta. Só a boca é que se cala.

Amor. Do extinto pássaro, o voo
prossegue, inexorável. Mas perdoo,

eu, essa lâmina que me escalavra,
revolve em mim, em sua funda lavra,

amor, restos de amor, gestos quebrados,
enganos, mais amor, olhos magoados,

e fúria, e canto, e riso, e dança, e dor.
E a Quimera. E amor, amor, amor

por toda parte trucidado e em flor.

sábado, 27 de fevereiro de 2016

Ferreira Gullar













"Visita"

no dia de
finados ele foi
ao cemitério
porque era o único
lugar do mundo onde
podia estar
perto do filho mas
diante daquele
bloco negro
de pedra
impenetrável
entendeu
que nunca mais
poderia alcançá-lo.

                 Então
apanhou do chão um
pedaço amarrotado
de papel escreveu
eu te amo filho
pôs em cima do
mármore sob uma
flor
e
saiu
soluçando

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Jorge Elias Neto, "O limite da razão"


Os búzios
já não despejam ondas
e eu me despeço.
 
De resto,
somente uma
          suposição:
 
a questão passará a ser simples
quando dissermos: talvez...


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Jorge Luis Borges, "de que nada se sabe"


A lua ignora que é tranquila e clara
E nem ao menos sabe que é a lua;
A areia, que é areia. Não há uma
Coisa que saiba que sua forma é rara.
Tão alheias são as peças de marfim
Ao abstrato xadrez como a mão
que os rege. Talvez o fado humano
De breves sortes e penas sem fim
Seja instrumento de Outro. Nós o ignoramos;
Dar-lhe nome de Deus não traz defesa.
Vãos também são o temor, a incerteza
E a truncada oração que iniciamos.
Que arco terá lançado esta seta
Que sou? Que cume pode ser a meta?

Tradução de Josely Vianna Baptista.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Leis estranhas na Carolina do Sul (EUA)


-- É um crime capital matar alguém inadvertidamente, ao tentar um suicídio.
-- Mulheres solteiras não podem comprar calcinhas comestíveis.
-- A pessoa tem de ter 18 anos ou mais para brincar em fliperama.
-- Todos os homens adultos devem levar um rifle à igreja no domingo, para repelir ataques indígenas.
-- Ao se aproximar de um cruzamento de quatro vias ou uma interseção cega, o veículo não puxado a cavalo deve parar a 30 metros e disparar tiros para advertir o tráfego de cavalos.
-- É proibido bater na mulher nas escadarias do tribunal no domingo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Lúcio Cardoso, "Há um momento onde um silêncio enorme desce"


Há um momento onde um silêncio enorme desce
e as ilhas cativas submergem - o oceano respira
na lenta convulsão de um mundo em transe,
face a face com o céu que a noite ordena.

Algas, faúlhas, frêmitos de luz vagueiam
em torno a essas colunas que se arqueiam
sob a imensa abóboda das águas
- medonho céu onde  as anêmonas rutilam.

Há um momento de pausa - um iris passa,
glauco, solene, em meio à solidão profunda.
Outros monstros sucedem, olhos que fitam,
astros, dedos de luz, corpos que se desenlaçam,

verdes sereias montando o dorso dos corais,
torres, sinos, mastros, bandeiras que estremecem,
uma cidade inteira que viaja
na insondável penumbra dos abismos...

Há um momento onde qualquer coisa se abre.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

Myriam Fraga, "Esfinge"


Revesti-me de mistério
Por ser frágil,
Pois bem sei que decifrar-me
É destruir-me.

No fundo, não me importa
O enigma que proponho.

Por ser mulher e pássaro
E leoa,
Tendo forjado em aço
As minhas garras,
É que se espantam
E se apavoram.

Não me exalto.
Sei que virá o dia das respostas
E profetizo-me clara e desarmada.

E por saber que a morte
É a última chave,

Adivinho-me nas vítimas que estraçalho.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Odylo Costa, filho, "O Testamento de Dom Sebastião"


Não foi para esquecer minha fraqueza carnal que vim à guerra 
mas para retomar a visão do Imperador: 
a vitória virá com o Sinal da Cruz nos céus. 
Mas, se Deus não me julgar digno, 
quero findar, no campo de batalha, 
comigo mesmo e o grande sonho do Esperado, 
ouvindo ainda, dentro de mim, 
o ressoar do grito de alegria do povo quando nasci, 
homens e mulheres correndo nas ruas de Lisboa, acordadas noite 
                                                                            [ alta, rumo à Sé: 
— O Desejado! O Desejado! 

Sei que os Embaixadores de Espanha murmuram 
porque nunca levantei olhos para dona, 
esqueço-me no jogo de canas todo um dia, 
mas nem por um instante espio as janelas, 
e só me prometem a Infanta por ser muito menina.

Meu corpo não se fez para corpo delicado de mulher, 
nem permito que toquem minhas mãos com suas mãos 
- quando me servem o vinho nas copas de louça -
para não tentar minha castidade cristã, prometida em confissão. 

Nos dedos de minha Mãe, nesses confiaria, 
repousaria, 
me esqueceria, 
mas minha Mãe partiu e não a conheci: 
tinha eu cem dias, de nada me lembro, 
tinha eu cem dias: pela última vez lhe suguei o leite do seio. 
Nunca mais a vi — e era homem feito e rei quando morreu. 
Nem ao menos recordo seus cabelos, seus olhos, seu rosto. 

Fui órfão de mãe viva 
mas sei, por ouvir toda manhã, com o Padre Nosso, 
e à tarde, com a Ave Maria das vésperas, 
que era louçã, perfeita na carne e no espírito. 
Sei também que nunca deixou de pensar em mim 
e mandou médicos de Castela para cuidar desta minha timidez 
                                                                         [ diante das mulheres. 
Sua presença é que me libertaria, pobre de Minha Mãe, 
filha do Imperador, princesa de Espanha — e sempre viúva!
Sozinha até na morte dolorosa.

Quanto a mim, sou belo e forte mas desconforme, 
tenho cabelos louros e olhos azuis, 
a assimetria dos escolhidos, o belfo e os sangues dos Austrias,
e às vezes atravesso as noites sem dormir, 
sonhando sem sono o Mundo e os novos mundos. 
Se me canso na caça não é por sede de sangue 
mas para que o cansaço mate a insônia. 
Não vim para possuir ou ser possuído, 
pois as mulheres enfraquecem o Herói 
e não quero morrer de amar — como meu Pai.

Não me imagino Rei, 
sentado, 
imóvel, 
doméstico, 
brincando como o príncipe francês, 
adoçado por presenças infantis. 
Nem quero gerar filhos 
porque sei que os teria de matar:
meu próprio primo conheço como foi que morreu. 

Sei também 
que é no papel que agora se criam impérios, 
mas detesto o papel e as artes da escrita 
porque distraem as mãos que mudam a História. 

Neto de João Terceiro e Carlos Quinto, 
sou o Capitão de Cristo. 
Somente? Somente. 
Mas haverá missão maior? 
Mando mais alto? 
Sonho África não pelos escravos 
mas pelo areal sem árvores. 
Hei de ajoelhar os mouros 
diante da Cruz de Nosso Senhor.

Mandei a meu tio Filipe, num casco de ouro puro, 
meu desprezo pelas riquezas do mundo, manejadas 
                                                             [dos gabinetes, 
meu amor da glória nos combates. 

Meus soldados trouxeram guitarras na bagagem,
eu, uma coroa cerrada de César 
para quando a vitória me coroar Imperador, 
— só, entre os meus, Eu, puro, diante de Deus!
Espero o sinal de Sua vontade. 
Ele, só Ele, pode o milagre e a conquista do Gral. 
Não sou homem do mar mas da peleja em terra 
e da armadura de prata. 
Confio na mão de Deus! 
Se perder, pelo peso e culpa dos meus pecados, 
não pela pouca fé do meu povo, 
capaz de preferir os cilícios de ferro às roupas de seda, 
se perder, meu Deus!… 
a morte não me reconhecerá de tão mudado que estarei.
Montado em meu cavalo sabedor,
investirei contra os homens e a sorte, 
para mergulhar no desconhecido. 
Sei que nenhum português ficará vivo 
vendo seu Rei morrer.

Caladas as violas do acampamento, 
desaparecerei banhado em sangue que não será somente meu. 

Ressurgirei num touro manso. 
desfeito em areias brancas, 
do outro lado do Oceano.


Dom Sebastião, rei de Portugal, desapareceu em 1578, aos 24 anos, na batalha de Alkacer Quibir, no Marrocos.  Na ilha de Lençóis, no litoral do Maranhão, terra do autor, há uma lenda que ele reaparece de noite, cavalgando nos areais.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Ferreira Gullar













"Fim"

Como não havia ninguém
na casa aquela
terça-feira tudo
é suposição: teria
tomado seu costumeiro
banho
de imersão por volta
de meio-dia e trinta e
de cabelos ainda
úmidos
deitou-se na cama para
descansar não
para morrer
              queria
dormir um pouco
apenas isso e
assim não lhe
terá passado pela
mente - até
aquele último segundo
antes de
se apagar no
silêncio - que
jamais voltaria
ao ruidoso mundo
da vida

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Lúcio Cardoso, "O demônio no terraço"


Às noites, no terraço, plantas ardiam:
begônias crivadas de fulgores,
dálias amedrontadas pelo luxo,
folhas de azul e de carmim:
às noites.
Músicas se armavam nos andantes
onde uma pausa destoava do frêmito
feito de espera e aquiescência:
o violino era de ouro
e vogava em mar de Irlanda:
no terraço, em torno às plantas, noites ardiam.

Menino tecido em açúcar e avelã:
dono do espaço,
em certas horas cintilavam as begônias no terraço.
Noite foi, não é manhã:
sobre as telhas acorda um bocejo de jasmim.
baixo e pequeno, canta
um demônio vestido de morte e cetim.
O luxo se distende e torna-se espaço.

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Aleilton Fonseca, "Moças e garças"


O rio mergulhava em nossas tardes
e nos vinha inundar os olhos,
enquanto olhávamos as garças
que pousavam nas pedras baixas,
com suas asas talhadas:
chegássemos mais perto delas,
voejavam no lençol corrente,
e só as águas sobravam.

O rio se afogava em nossas noites
e nos vinha inundar os sonhos,
enquanto olhávamos as moças
que escoavam nas pedras baixas,
com suas curvas molhadas:
chegássemos mais perto delas,
diluíam-se na água corrente
e só os desejos sobravam.


sábado, 13 de fevereiro de 2016

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Xue Tao, "Peônia"


Deixaste-me no ano passado, no fim da primavera
Minhas lágrimas molham o papel vermelho* só de pensar nessa lembrança
Muitas vezes eu temi que estivéssemos separados para sempre
Porque nos revemos hoje, com uma alegria inesperada?
Tu me cercas de teus carinhos e do teu perfume que embriaga
Não precisamos de palavras, pois nos compreendemos ao menor sinal
Vamos colocar nossas almofadas perto da balaustrada
Cochicharemos nosso amor até altas horas.

* Na China, as cartas de amor são escritas geralmente em papel de cor vermelha.

Peônia, o título do poema, é uma planta que se cultiva pelas suas flores vermelhas. rosadas ou brancas.

Xue Tao (768-834) nasceu numa família rica e recebeu boa educação literária. Depois que a desgraça se abateu sobre seu pai, tornou-se prostituta, mas nunca abandonou a poesia. Alguns poetas e mandarins a ajudaram a sair da prostituição.

O poema foi traduzido do chinês para o francês por Shi Bo, e dai para o português por Sérgio Caparelli.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Leis estranhas na Carolina do Norte (EUA)


Carolina do Norte

-- O casamento é declarado anulado se uma das duas pessoas se tornar fisicamente impotente.
-- Sexo oral é um crime contra a natureza.
-- É ilegal fazer sexo no pátio de uma igreja.
-- Sexo só é permitido na “posição missionária” (papai-mamãe) e sem óculos escuros.
-- Se um homem e uma mulher, solteiros, forem a um hotel ou motel, no momento em que se registrarem serão considerados legalmente casados.
-- Todos os casais que pernoitarem em hotéis são obrigados a ter um quarto com duas camas, a pelo menos 61 centímetros de distância. Fazer amor no espaço entre as duas camas é estritamente proibido.
-- É ilegal cantar desafinado.
-- Pessoas em posse de substâncias ilegais devem pagar impostos sobre elas.
-- Organizações não podem fazer reuniões quando seus membros estão fantasiados.
-- Em Chapel Hill: É um delito urinar ou defecar em público.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

António Nobre













"Soneto"

Meus dias de rapaz, de adolescente,
Abrem a boca a bocejar, sombrios:
Deslizam vagarosos, como os Rios,
Sucedem-se uns aos outros, igualmente.

Nunca desperto de manhã, contente.
Pálido sempre com os lábios frios,
Ora, desfiando os meus rosários pios...
Fora melhor dormir, eternamente!

Mas não ter eu aspirações vivazes,
E não ter como têm os mais rapazes,
Olhos boiados em sol, lábio vermelho!

Quero viver, eu sinto-o, mas não posso:
E não sei, sendo assim enquanto moço,
O que serei, então, depois de velho.


segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Lúcio Cardoso, "O Tempo"


Sentou-se, e já partia olhando a bruma.
Havia copos brilhando na manhã.
Errava um cheiro de incenso.
Quem era, o coração apaziguado?

Levantou-se, e toda luz
arrastou-se aos seus pés. Inerme,
luz vencida, hora transposta,
além do jardim, além.

Havia bruma.

Nem ficou nem partiu. Olhando
continuou a desmantelar-se.
Não era real; viveu o segundo
e floresceu alto como uma rosa.
Desfez-se virgem.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Paulo Henriques Britto, "2ª Epifânia trivial"


As coisas que te cercam, até onde
alcança tua vista, tão passivas
em sua opacidade, que te impedem
de enxergar o (inexistente) horizonte,
que justamente por não serem vivas
se prestam para tudo, e nunca pedem

nem mesmo uma migalha de atenção,
essas coisas que você usa e esquece
assim que larga na primeira mesa —
pois bem: elas vão ficar. Você, não.
Tudo que pensa passa. Permanece
a alvenaria do mundo, o que pesa.

O mais é enchimento, e se consome.
As tais Formas eternas, as Idéias,
e a mente que as inventa, acabam em pó,
e delas ficam, quando muito, os nomes.
Muita louça ainda resta de Pompéia,
mas lábios que a tocaram, nem um só.

As testemunhas cegas da existência,
sempre a te olhar sem que você se importe,
vão assistir sem compaixão nem ânsia,
com a mais absoluta indiferença,
quando chegar a hora, a tua morte.
(Não que isso tenha a mínima importância.)


sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

Luís Antonio Cajazeira Ramos,"Nunca mais serei eu mesmo"


Cada último poema é o último, pois
nada há mais a dizer depois, pra nunca mais,
que sempre, se me entrego ao verso, é totalmente
- mais nada sobra em mim, vazado, mais que sempre.

Toda em cada verso, a poesia (que mistério)
nunca se esgota ou esvai, pois, com seu próprio lastro,
está pra sempre inteira, pronta a um novo verso
- e cada novo poema é o novo! ... e eu sou o resto.

Se me dou por inteiro, o que sobra de mim?
Se me fluí no verso, perdi-me de vez...
- vez que, na alma do verso, só está quem o lê.

Sendo assim (que destino, esse meu!), pra me ter,
devo ler-me a mim mesmo no verso que fiz
- eu, que tenho essa imensa poesia a viver!...


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Maria do Rosário Pedreira, "Mãe, eu quero ir-me embora..."


Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram –
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique –
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-m
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

José Cândido de Carvalho, "Porque Lulu Bergantim não atravessou o Rubicon"


Lulu Bergantim veio de longe, fez dois discursos, explicou por que não atravessou o Rubicon, coisa que ninguém entendeu, expediu dois socos na Tomada da Bastilha, o que também ninguém entendeu, entrou na política e foi eleito na ponta dos votos de Curralzinho Novo. No dia da posse, depois dos dobrados da Banda Carlos Gomes e dos versos atirados no rosto de Lulu Bergantim pela professora Andrelina Tupinambá, o novo prefeito de Curralzinho sacou do paletó na vista de todo mundo, arregaçou as mangas e disse:
 - Já falaram, já comeram biscoitinhos de araruta e licor de jenipapo. Agora é trabalhar!
E sem mais aquela, atravessou a sala da posse, ganhou a porta e caiu de enxada nos matos que infestavam a Rua do Cais. O povo, de boca aberta, não lembrava em cem anos de ter acontecido um prefeito desse porte. Cajuca Viana, presidente da Câmara de Vereadores, para não ficar por baixo, pegou também no instrumento e foi concorrer com Lulu Bergantim nos trabalhos de limpeza. Com pouco mais, toda a cidade de Curralzinho estava no pau da enxada. Era um enxadar de possessos! Até a professora Andrelina Tupinambá, de óculos, entrou no serviço de faxina. E assim, de limpeza em limpeza, as ruas de Curralzinho ficaram novinhas em folha, saltando na ponta das pedras. E uma tarde, de brocha na mão, Lulu caiu em trabalho de caiação. Era assobiando "O teu-cabelo-não-nega, mulata, porque-és-mulata-na-cor" que o ilustre sujeito público comandava as brochas de sua jurisdição. Lambuzada de cal, Curralzinho pulava nos sapatos, branquinha mais que asa de anjo. E de melhoria em melhoria, a cidade foi andando na frente dos safanões de Lulu Bergantim. Às vezes, na sacada do casarão da prefeitura, Lulu ameaçava:
- Ou vai ou racha!
E uma noite, trepado no coreto da Praça das Acácias, gritou:
- Agora a gente vai fazer serviço de tatu!
O povo todo, uma picareta só, começou a esburacar ruas e becos de modo a deixar passar encanamento de água. Em um quarto de ano Curralzinho já gozava, como dizia cheio de vírgulas e crases o Sentinela Municipal do "salutar benefício do chamado precioso líquido". Por força de uma proposta de Cazuza Militão, dentista prático e grão-mestre da Loja Maçônica José Bonifácio, fizeram correr o pires da subscrição de modo a montar Lulu Bergantim em forma de estátua, na Praça das Acácias. E andava o bronze no meio do trabalho de fundição, quando Lulu Bergantim, de repente, resolveu deixar o ofício de prefeito. Correu todo mundo com pedidos e apelações. O promotor público Belinho Santos fez discurso. E discurso fez, com a faixa de provedor-mor da Santa Casa no peito, o Major Penelão de Aguiar. E Lulu firme:
- Não abro mão! Vou embora para Ponte Nova. Já remeti telegrama avisativo de minha chegada.
Em verdade Lulu Bergantim não foi por conta própria. Vieram buscar Lulu em viagem especial, uma vez que era fugido do Hospício Santa Isabel de Inhangapi de Lavras. Na despedida de Lulu Bergantim pingava tristeza dos olhos e dos telhados de Curralzinho Novo. E ao dobrar a última rua da cidade, estendeu o braço e afirmou:
- Por essas e por outras é que não atravessei o Rubicon! 
Lulu foi embora embarcado em nunca-mais. Sua estátua ficou no melhor pedestal da Praça das Acácias. Lulu em mangas de camisa, de enxada na mão. Para sempre, Lulu Bergantim!