quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Odylo Costa, filho, "O Testamento de Dom Sebastião"


Não foi para esquecer minha fraqueza carnal que vim à guerra 
mas para retomar a visão do Imperador: 
a vitória virá com o Sinal da Cruz nos céus. 
Mas, se Deus não me julgar digno, 
quero findar, no campo de batalha, 
comigo mesmo e o grande sonho do Esperado, 
ouvindo ainda, dentro de mim, 
o ressoar do grito de alegria do povo quando nasci, 
homens e mulheres correndo nas ruas de Lisboa, acordadas noite 
                                                                            [ alta, rumo à Sé: 
— O Desejado! O Desejado! 

Sei que os Embaixadores de Espanha murmuram 
porque nunca levantei olhos para dona, 
esqueço-me no jogo de canas todo um dia, 
mas nem por um instante espio as janelas, 
e só me prometem a Infanta por ser muito menina.

Meu corpo não se fez para corpo delicado de mulher, 
nem permito que toquem minhas mãos com suas mãos 
- quando me servem o vinho nas copas de louça -
para não tentar minha castidade cristã, prometida em confissão. 

Nos dedos de minha Mãe, nesses confiaria, 
repousaria, 
me esqueceria, 
mas minha Mãe partiu e não a conheci: 
tinha eu cem dias, de nada me lembro, 
tinha eu cem dias: pela última vez lhe suguei o leite do seio. 
Nunca mais a vi — e era homem feito e rei quando morreu. 
Nem ao menos recordo seus cabelos, seus olhos, seu rosto. 

Fui órfão de mãe viva 
mas sei, por ouvir toda manhã, com o Padre Nosso, 
e à tarde, com a Ave Maria das vésperas, 
que era louçã, perfeita na carne e no espírito. 
Sei também que nunca deixou de pensar em mim 
e mandou médicos de Castela para cuidar desta minha timidez 
                                                                         [ diante das mulheres. 
Sua presença é que me libertaria, pobre de Minha Mãe, 
filha do Imperador, princesa de Espanha — e sempre viúva!
Sozinha até na morte dolorosa.

Quanto a mim, sou belo e forte mas desconforme, 
tenho cabelos louros e olhos azuis, 
a assimetria dos escolhidos, o belfo e os sangues dos Austrias,
e às vezes atravesso as noites sem dormir, 
sonhando sem sono o Mundo e os novos mundos. 
Se me canso na caça não é por sede de sangue 
mas para que o cansaço mate a insônia. 
Não vim para possuir ou ser possuído, 
pois as mulheres enfraquecem o Herói 
e não quero morrer de amar — como meu Pai.

Não me imagino Rei, 
sentado, 
imóvel, 
doméstico, 
brincando como o príncipe francês, 
adoçado por presenças infantis. 
Nem quero gerar filhos 
porque sei que os teria de matar:
meu próprio primo conheço como foi que morreu. 

Sei também 
que é no papel que agora se criam impérios, 
mas detesto o papel e as artes da escrita 
porque distraem as mãos que mudam a História. 

Neto de João Terceiro e Carlos Quinto, 
sou o Capitão de Cristo. 
Somente? Somente. 
Mas haverá missão maior? 
Mando mais alto? 
Sonho África não pelos escravos 
mas pelo areal sem árvores. 
Hei de ajoelhar os mouros 
diante da Cruz de Nosso Senhor.

Mandei a meu tio Filipe, num casco de ouro puro, 
meu desprezo pelas riquezas do mundo, manejadas 
                                                             [dos gabinetes, 
meu amor da glória nos combates. 

Meus soldados trouxeram guitarras na bagagem,
eu, uma coroa cerrada de César 
para quando a vitória me coroar Imperador, 
— só, entre os meus, Eu, puro, diante de Deus!
Espero o sinal de Sua vontade. 
Ele, só Ele, pode o milagre e a conquista do Gral. 
Não sou homem do mar mas da peleja em terra 
e da armadura de prata. 
Confio na mão de Deus! 
Se perder, pelo peso e culpa dos meus pecados, 
não pela pouca fé do meu povo, 
capaz de preferir os cilícios de ferro às roupas de seda, 
se perder, meu Deus!… 
a morte não me reconhecerá de tão mudado que estarei.
Montado em meu cavalo sabedor,
investirei contra os homens e a sorte, 
para mergulhar no desconhecido. 
Sei que nenhum português ficará vivo 
vendo seu Rei morrer.

Caladas as violas do acampamento, 
desaparecerei banhado em sangue que não será somente meu. 

Ressurgirei num touro manso. 
desfeito em areias brancas, 
do outro lado do Oceano.


Dom Sebastião, rei de Portugal, desapareceu em 1578, aos 24 anos, na batalha de Alkacer Quibir, no Marrocos.  Na ilha de Lençóis, no litoral do Maranhão, terra do autor, há uma lenda que ele reaparece de noite, cavalgando nos areais.

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