sábado, 31 de dezembro de 2016

Lúcio Cardoso, "Poema"


Voltarei em busca dos caminhos que se perderam
e todas as coisas estarão silenciosas
e a noite dormirá no berço calmo dos rios
e as moças estarão sorrindo nos jardins cheios de sombra.

Perguntarei onde estarão as tardes de outrora
e os passeios onde soavam tantos risos...
E ninguém me saberá responder. E estarão
parados no meio do caminho e os seus
olhares ansiosos se voltarão para trás:
- Quem é este que procura as visões mortas do passado?
- Quem é este que permanece na curva dos caminhos, ardente
                                                           [ e inquieto?

Eu olharei as terras desoladas e os rios que correm sem rumor.
A grande noite virá como uma névoa escura sobre as cabeças
                                                           [ das árvores.

E sentindo que o meu coração se diminui
e se torna menos humano, ficarei quieto e não saberei nada,
nada o que responder...
Sentir-me-ei então inteiramente inútil e desolado.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Ruy Espinheira Filho, "Soneto dos versos da juventude ou uma aprendizagem"


Ainda bem jovem, escreveu sonetos
em decassílabos e alexandrinos,
relembrando meninas e meninos,
festas juninas, fogo e coretos

com filarmônicas. E nos sonetos
de festas, de meninos e meninas,
já se mostravam sombras assassinas
que assombravam as luzes dos coretos

e que eram de paixões, sonhos, ternuras
incompreendidas - e festas, coretos,
traziam em si também lembranças duras.

Ah, eram feitos da Vida esses sonetos...
Como devem ser, sempre, nas impuras
asas dos seus quartetos e tercetos.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Lúcio Cardoso, "Poema"


Esta vontade de sair gritando,
esta vontade de deter os que passam,
dizer alguma coisa, sondar,
rever na face atônita, gelada,
um pouco da minha inquietação.
do meu delírio - dizer aos que não sabem!

Esta vontade de fugir ao meu destino,
de escapar às visões que me alucinam,
ao ruído dessas asas que não vejo,
à voz desses lábios que não sinto,
à fatalidade dos que possuem duas vidas,
dos que vagam num deserto cheio de fantasmas.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Fernando Pessoa, "O outro amor"


Com que fúria ergo a ideia dos meus braços
Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo,
Os olhos pondo em teus sonhados traços,
Todo o fêmea em teu corpo de mancebo!

Teu hálito sonhado até cansaços
Como em meu vivido hálito recebo!
Ó carne que sonho és tantos laços
Para mim! Deus-deus, Vénus-Efebo!

Ó dolorosamente só sonhado!
Soubesse eu o feitio exterior e o jeito
Em gestos e palavras e perfeito

As palavras a dar a este pecado
De só pensar em ti, de ter o peito
Opresso em pensar-te entrelaçado!

domingo, 25 de dezembro de 2016

Miguel Torga











"Natal Divino"

Natal divino ao rés-do-chão humano,
Sem um anjo a cantar a cada ouvido.
Encolhido
À lareira,
Ao que pergunto
Respondo
Com as achas que vou pondo
Na fogueira.

O mito apenas velado
Como um cadáver
Familiar…
E neve, neve, a caiar
De triste melancolia
Os caminhos onde um dia
Vi os Magos galopar…

sábado, 24 de dezembro de 2016

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Jorge Luis Borges










"Arte Poética"

Mirar o rio, que é de tempo e água,
E recordar que o tempo é outro rio,
Saber que nos perdemos como o rio
E que passam os rostos como a água.

E sentir que a vigília é outro sonho
Que sonha não sonhar, sentir que a morte,
Que a nossa carne teme, é essa morte
De cada noite, que se chama sonho.

E ver no dia ou ver no ano um símbolo
Desses dias do homem, de seus anos,
E converter o ultraje desses anos
Em uma música, um rumor e um símbolo.

E ver na morte o sonho, e ver no ocaso
Um triste ouro, e assim é a poesia,
Que é imortal e pobre. A poesia
Retorna como a aurora e o ocaso.

Às vezes, pelas tardes, uma face
Nos observa do fundo de um espelho;
A arte deve ser como esse espelho
Que nos revela nossa própria face.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
Chorou de amor ao avistar sua Ítaca
Humilde e verde. A arte é essa Ítaca
De um eterno verdor, não de prodígios.

Também é como o rio interminável
Que passa e fica e que é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante que é o mesmo
E é outro, como o rio interminável.

Tradução de Rolando Roque da Silva

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Hilda Hilst, "Honra-me com teus nadas...(da série Sobre a Tua Grande Face)"


Honra-me com teus nadas.
Traduz me passo
De maneira que eu nunca me perceba.
Confunde estas linhas que te escrevo
Como se um brejeiro escoliasta
Resolvesse
Brincar a morte de seu próprio texto.
Dá-me pobreza e fealdade e medo.
E desterro de todas as respostas
Que dariam luz
A meu eterno entendimento cego.
Dá-me tristes joelhos.
Para que eu possa fincá-los num mínimo de terra
E ali permanecer o teu mais esquecido prisioneiro.
Dá-me mudez. E andar desordenado. Nenhum cão.
Tu sabes que amo os animais
Por isso me sentiria aliviado. E de ti, Sem Nome
Não desejo alívio. Apenas estreitez e fardo.
Talvez assim te encantes de tão farta nudez.
Talvez assim me ames: desnudo até o osso
Igual a um morto.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Luís de Camões, "Pede o Desejo, dama, que vos veja..."


Pede o desejo, Dama, que vos veja:
Não entende o que pede; está enganado.
É este amor tão fino e tão delgado,
Que quem o tem não sabe o que deseja.

Não há cousa, a qual natural seja,
Que não queira perpétuo o seu estado.
Não quer logo o desejo o desejado,
Só por que nunca falte onde sobeja.

Mas este puro afecto em mim se dana:
Que, como a grave pedra tem por arte
O centro desejar da natureza,

Assim meu pensamento, pela parte
Que vai tomar de mim, terrestre e humana,
Foi, Senhora, pedir esta baixeza.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Antero de Quental














"Anima Mea"*

Estava a Morte ali, em pé, diante,
Sim, diante de mim, como serpente
Que dormisse na estrada e de repente
Se erguesse sob os pés do caminhante.

Era de ver a fúnebre bachante!
Que torvo olhar! que gesto de demente!
E eu disse-lhe: «Que buscas, impudente,
Loba faminta, pelo mundo errante?»

— Não temas, respondeu (e uma ironia
Sinistramente estranha, atroz e calma,
Lhe torceu cruelmente a boca fria).

Eu não busco o teu corpo... Era um troféu
Glorioso de mais... Busco a tua alma —
Respondi-lhe: «A minha alma já morreu!»


"Anima mea" - em latim, "Alma minha"

sábado, 17 de dezembro de 2016

Alejandra Pizarnik, "Poema"


Tu escolhes o lugar da ferida
onde falamos nosso silêncio.
Tu fazes da minha vida
esta cerimônia demasiado pura.

Tradução amadora minha


Poema

Tu eliges el lugar de la herida
en donde hablamos nuestro silencio.
Tu haces de mi vida
esta cerimonia demasiado pura.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Eugénio de Andrade













"Soneto menor à chegada do verão"

Eis como o verão
Chega de súbito,
Com seus potros fulvos,
Seus dentes miúdos,

Seus múltiplos, longos
Corredores de cal,
As paredes nuas,
A luz de metal,

Seu dardo mais puro
Cravado na terra,
Cobras que despertam
No silêncio duro –

Eis como o verão
Entra no poema.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Cecília Meireles, "Fragilidade"


Teu nome nas águas
tão fundas, tão grandes,

perde-se na espuma,
castelo de instantes.

No aço azul da noite
teu firme retrato

acorda entre nuvens
já desbaratado.

A sorte da pedra
é tornar-se areia.

Mas quem não soluça
pensando em teu rosto

reduzido a poeira...

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Manuel Bandeira














"Inscrição"

Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
Dançava descuidosa, e hoje não dança mais...

Quem não a viu é bem provável que não veja
Outro conjunto igual de partes naturais.
Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

A morte a surpreendeu um dia que sonhava.
Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
À terra, sobre a qual tão de leve pesava...

Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava...
Seu destino foi curto e bom...
                                              — Não a choreis.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

domingo, 11 de dezembro de 2016

Cecília Meireles, "Pranto no mar"


Eu sempre te disse que era grande o oceano
para a nossa pequena barca.
Cantavas, quando eu te dava o desengano
de partir por água tão larga.

Não, tu não devias ter ido.
Mas foi tempo perdido.

Eu sempre te disse que os olhos de um morto
ficavam nas águas suspensos,
procurando os vivos, os mastros, o porto,
na oscilação de águas e ventos.

Não, tu não devias ter ido.
Mas era amor perdido.

Teço velas negras para abarca nova,
redes de prata para as ondas.
ensinai-me, peixes, sua funda cova
nestas escuridões tão longas!

Não, tu não devias ter ido.
E isto é pranto perdido.

sábado, 10 de dezembro de 2016

Leis estranhas na Louisiana (EUA)


-- Quebrar promessa é delito punível com um ano de prisão.
-- Morder alguém com dentes naturais é agressão simples; com dentadura, é agressão qualificada.
-- Urinar no reservatório de água da cidade é punido com até 20 anos de prisão.
-- Prisioneiros que ferirem a si mesmos podem ter um acréscimo de mais dois anos de detenção. 
-- É ilegal roubar um banco e depois atirar no caixa com uma pistola de água.
-- Paga multa de US$ 500 quem mandar a pizzaria entregar a pizza a um amigo, sem avisá-lo.
-- Roncar é proibido, a não ser que todas as janelas do quarto estejam fechadas e trancadas com segurança.
-- Roubo de jacaré é penalizado com até 10 anos de cadeia.
-- Luta livre enganosa é proibida.
-- Expectadores de luta de boxe não podem ridicularizar um dos lutadores.
-- É ilegal gargarejar em espaços públicos.
-- Rituais que envolvem ingestão de sangue, urina e matéria fecal são proibidos.
-- Toda vez que uma pessoa é queimada, ela deve relatar o incidente ao chefe dos bombeiros.
-- É proibido desafiar uma pessoa a ir em uma via férrea de propriedade de outra.
-- É ilegal roubar bens móveis, mesmo que classificados como imóveis.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Cecília Meireles














"A flor e o ar"

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito:
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor.
Pergunto ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

Arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
E nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Augusto dos Anjos, "Saudade"


Hoje que a mágoa me apunhala o seio,
E o coração me rasga atroz, imensa,
Eu a bendigo da descrença, em meio,
Porque eu hoje só vivo da descrença.

À noute quando em funda soledade
Minh'alma se recolhe tristemente,
P'ra iluminar-me a alma descontente,
Se acende o círio triste da Saudade.

E assim afeito às mágoas e ao tormento,
E à dor e ao sofrimento eterno afeito,
Para dar vida à dor e ao sofrimento,

Da saudade na campa enegrecida
Guardo a lembrança que me sangra o peito,
Mas que no entanto me alimenta a vida.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Ferreira Gullar

Republico um poema do poeta Ferreira Gullar, morto ontem, às 10 horas da manhã.










"Despedida"

Eu deixarei o mundo com fúria.
Não importa o que aparentemente aconteça,
se docemente me retiro.

De fato
nesse momento
estarão de mim se arrebentando
raízes tão profundas
quanto estes céus brasileiros.
Num alarido de gente e ventania
olhos que amei
rostos amigos tardes e verões vividos
estarão gritando a meus ouvidos
para que eu fique
para que eu fique.

Não chorarei.
Não há soluço maior que despedir-se da vida.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Alejandra Pizarnik, " A carência"


Eu não sei de pássaros,
não conheço a história do fogo.
Mas creio que minha solidão deveria ter asas.

Tradução amadora minha


"La carencia"

Yo no sé de pájaros,
no conozco la historia del fuego.
Pero creo que mi soledad deberia tener alas.


sábado, 3 de dezembro de 2016

Índia amamentando filhote de porco do mato
























Quando os índios matam uma fêmea com cria, cuidam dos filhotes até que eles cresçam. 
Só então o devolvem à mata.

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Lúcio Cardoso, "O passeante"


Senhor, eu sondo em vão o que é a minha loucura,
esse mundo subscrevo onde só a noite reina
e é inutilmente que lanço a minha sonda.
mares onde jamais a aurora brilha,
fragmentos de sonhos, pressentimentos, visões
de uma infância que a vida não matou...

Será isto apenas, este tumulto, este desejo
de tantas coisas impossíveis, esta ânsia
ante prazeres que odeio? Ó mistério,
ó intangível mistério desta alma enorme,
aberta à natureza como um abismo!

Quem sou eu, que memória é esta,
que fulgor é este que me segue,
rubra ameaça de um inferno que me chama?
Ó astros impossíveis, ó chama eterna,
que amor aplacará esta loucura,
este riso que os homens não escutam,
esta cega volúpia que é o frêmito
da morte?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

António Barbosa Bacelar, "Falando com o Tejo"


Águas do Tejo, que tão mansamente
Entre estas praias discorreis cansadas,
Depois de ter vencidas e rasgadas
As altas serras tão soberbamente.

Aqui correis por modo diferente,
Depois de estar já brandas e domadas,
Que as coisas soberbas começadas
Assim vem a acabar humildemente.

E por cair também neste pecado,
Vos acrescento, e vejo num momento
Castigadas a vós, e eu castigado:

Mas, ai, porque é maior meu sentimento,
Porque vós lá no mar mudais de estado,
E eu na terra não mudo de tormento.