quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Almeida Júnior, "Caipira Picando Fumo".

Manuel Bandeira, "O Descante do Arlequim"

A lua ainda não nasceu.
A escuridão propícia aos furtos,
Propícia aos furtos, como o meu,
De amores frívolos e curtos,

Estende o manto alcoviteiro
À cuja sombra, se quiseres,
A mais ardente das mulheres
Terá o seu único parceiro.

Ei-lo. Sem glória e sem vintém,
Amando os vinhos e os baralhos,
Eu, nesta veste de retalhos,
Sou tudo quanto te convém.

Não se me dá do teu recato.
Antes, pulido pelo vício,
Sou fácil, acomodatício,
Agora beijo, agora bato,

Que importa? Ao menos o teu ser
Ao meu anélito corruto
Esquecerá por um minuto
O pesadelo de viver.

E eu, vagabundo sem idade,
Contra a moral e contra os códigos,
Dar-te-ei entre os meus braços pródigos
Um momento de eternidade..."

Haroldo de Campos
























"Ex/plicação"

não há um
sentido único
num
poema

quando alguém
começa a ex-
plicá-lo e
chega ao fim
en-
tão só fica o
ex
do ponto de
partida

beco

(tente outra
vez)

sem saída

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Almeida Júnior, "Cena Familiar".

Hilda Hilst, "Toma-me ..."

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

Antero de Quental, "Divina Comédia"

Erguendo os braços para o Céu distante
E apostrofando os deuses invisíveis,
Os homens clamam: - «Deuses impassíveis,
A quem serve o destino triunfante,

Porque é que nos criastes?! Incessante
Corre o tempo e só gera, inextinguíveis,
Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis,
Num turbilhão cruel e delirante...

Pois não era melhor na paz clemente
Do nada e do que ainda não existe,
Ter ficado a dormir eternamente?

Porque é que para a dor nos evocastes?»
Mas os deuses, com voz inda mais triste,
Dizem: - «Homens! porque é que nos criastes?!»

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Xilogravura, Gueixa.

Di Cavalcanti, "Rio de Janeiro Noturno".

Adélia Prado, "O que a Musa Eterna Canta".

Cesse de uma vez meu vão desejo
de que o poema sirva a todas as fomes.
Um jogador de futebol chegou mesmo a declarar:
"Tenho birra de que me chamem de intelectual,
sou um homem como todos os outros".
Ah, que sabedoria, como todos os outros,
a quem bastou descobrir:
letras eu quero é pra pedir emprego,
agradecer favores,
escrever meu nome completo.
O mais são as mal-traçadas linhas.

Mário Cesariny, "Sonhei Tanto a sua Figura".

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Guignard em Ouro Preto

Pancetti, "Lagoa do Abaeté"

Carlos Drummond de Andrade,"Canto Esponjoso".

Bela
esta manhã sem carência de mito,
e mel sorvido sem blasfêmia.

Bela
esta manhã ou outra possível,
esta vida ou outra invenção,
sem, na sombra, fantasmas.

Umidade de areia adere ao pé.
Engulo o mar, que me engole.
Valvas, curvos pensamentos, matizes da luz
azul
completa
sobre formas constituídas.

Bela
a passagem do corpo, sua fusão
no corpo geral do mundo.
Vontade de cantar. Mas tão absoluta
que me calo, repleto.

Eugénio de Andrade



"Frente a Frente"

Nada podeis contra o amor,
Contra a cor da folhagem,
contra a carícia da espuma,
contra a luz, nada podeis.

Podeis dar-nos a morte,
a mais vil, isso podeis
- e é tão pouco!

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Anne Sophie von Otter e Stephanie d'Oustrac, La Barcarolle dos "Contos de Hoffmann", condução de Marc Minkowski

Xilogravura de Axel Leskoschek, Ilustração para "Os Irmãos Karamázov"

Mario Quintana, "Aula Inaugural"

É verdade que na Ilíada não havia tantos heróis como na
                                                                            [guerra do Paraguai...
Mas eram bem falantes
E todos os seus gestos eram ritmados como num balé
Pela cadência dos metros homéricos.
Fora do ritmo, só há danação.
Fora da poesia não há salvação.
A poesia é dança e a dança é alegria.
Dança, pois, teu desespero, dança
Tua miséria, teus arrebatamentos,
Teus júbilos
E,
Mesmo que temas imensamente a Deus,
Dança, como Davi diante da Arca da Aliança;
Mesmo que temas imensamente a morte
Dança diante da tua cova.
Tece coroas de rimas...
Enquanto o poema não termina
A rima é como uma esperança
Que eternamente se renova.
A canção, a simples canção, é uma luz dentro da noite.

(Sabem todas as almas perdidas...)
O solene canto é um archote nas trevas.
(sabem todas as almas perdidas...)
Dança, encantado dominador de monstros,
Tirano das esfinges,
Dança, Poeta,
E sob o aéreo, o implacável, o irresistível ritmo de teus pés,
Deixa ruir o Caos atônito...

domingo, 20 de setembro de 2009

Antônio Frederico de Castro Alves (14 de março de 1847 — 6 de julho de 1871)

"Considero-me um poeta.
Integrado no meu tempo.
Cantei a natureza, a mulher, o amor
e vivi a causa do meu século:
entreguei-me inteiro à causa dos escravos".



"O Navio Negreiro"
(Tragédia no mar)


'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar — dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.

'Stamos em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
— Constelações do líquido tesouro...

'Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...

'Stamos em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...

Donde vem? onde vai? Das naus errantes
Quem sabe o rumo se é tão grande o espaço?
Neste saara os corcéis o pó levantam,
Galopam, voam, mas não deixam traço.

Bem feliz quem ali pode nest'hora
Sentir deste painel a majestade!
Embaixo — o mar em cima — o firmamento...
E no mar e no céu — a imensidade!

Oh! que doce harmonia traz-me a brisa!
Que música suave ao longe soa!
Meu Deus! como é sublime um canto ardente
Pelas vagas sem fim boiando à toa!

Homens do mar! ó rudes marinheiros,
Tostados pelo sol dos quatro mundos!
Crianças que a procela acalentara
No berço destes pélagos profundos!

Esperai! esperai! deixai que eu beba
Esta selvagem, livre poesia,
Orquestra — é o mar, que ruge pela proa,
E o vento, que nas cordas assobia...
..........................................................

Por que foges assim, barco ligeiro?
Por que foges do pávido poeta?
Oh! quem me dera acompanhar-te a esteira
Que semelha no mar — doudo cometa!

Albatroz! Albatroz! águia do oceano,
Tu que dormes das nuvens entre as gazas,
Sacode as penas, Leviathan do espaço,
Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas.

II

Que importa do nauta o berço,
Donde é filho, qual seu lar?
Ama a cadência do verso
Que lhe ensina o velho mar!
Cantai! que a morte é divina!
Resvala o brigue à bolina
Como golfinho veloz.
Presa ao mastro da mezena
Saudosa bandeira acena
As vagas que deixa após.

Do Espanhol as cantilenas
Requebradas de langor,
Lembram as moças morenas,
As andaluzas em flor!
Da Itália o filho indolente
Canta Veneza dormente,
— Terra de amor e traição,
Ou do golfo no regaço
Relembra os versos de Tasso,
Junto às lavas do vulcão!

O Inglês — marinheiro frio,
Que ao nascer no mar se achou,
(Porque a Inglaterra é um navio,
Que Deus na Mancha ancorou),
Rijo entoa pátrias glórias,
Lembrando, orgulhoso, histórias
De Nelson e de Aboukir.. .
O Francês — predestinado —
Canta os louros do passado
E os loureiros do porvir!

Os marinheiros Helenos,
Que a vaga jônia criou,
Belos piratas morenos
Do mar que Ulisses cortou,
Homens que Fídias talhara,
Vão cantando em noite clara
Versos que Homero gemeu...
Nautas de todas as plagas,
Vós sabeis achar nas vagas
As melodias do céu!...

III

Desce do espaço imenso, ó águia do oceano!
Desce mais ... inda mais... não pode olhar humano
Como o teu mergulhar no brigue voador!
Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!
É canto funeral! ... Que tétricas figuras! ...
Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

IV

Era um sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!

E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...

Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!

No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

E ri-se a orquestra irônica, estridente. . .
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Qual um sonho dantesco as sombras voam!...
Gritos, ais, maldições, preces ressoam!
E ri-se Satanás!...

V

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!

Quem são estes desgraçados
Que não encontram em vós
Mais que o rir calmo da turba
Que excita a fúria do algoz?
Quem são? Se a estrela se cala,
Se a vaga à pressa resvala
Como um cúmplice fugaz,
Perante a noite confusa...
Dize-o tu, severa Musa,
Musa libérrima, audaz!...

São os filhos do deserto,
Onde a terra esposa a luz.
Onde vive em campo aberto
A tribo dos homens nus...
São os guerreiros ousados
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão.
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão...

São mulheres desgraçadas,
Como Agar o foi também.
Que sedentas, alquebradas,
De longe... bem longe vêm...
Trazendo com tíbios passos,
Filhos e algemas nos braços,
N'alma — lágrimas e fel...
Como Agar sofrendo tanto,
Que nem o leite de pranto
Têm que dar para Ismael.

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...
Passa um dia a caravana,
Quando a virgem na cabana
Cisma da noite nos véus ...
...Adeus, ó choça do monte,
...Adeus, palmeiras da fonte!...
...Adeus, amores... adeus!...

Depois, o areal extenso...
Depois, o oceano de pó.
Depois no horizonte imenso
Desertos... desertos só...
E a fome, o cansaço, a sede...
Ai! quanto infeliz que cede,
E cai p'ra não mais s'erguer!...
Vaga um lugar na cadeia,
Mas o chacal sobre a areia
Acha um corpo que roer.

Ontem a Serra Leoa,
A guerra, a caça ao leão,
O sono dormido à toa
Sob as tendas d'amplidão!
Hoje... o porão negro, fundo,
Infecto, apertado, imundo,
Tendo a peste por jaguar...
E o sono sempre cortado
Pelo arranco de um finado,
E o baque de um corpo ao mar...

Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!...
Ó mar, por que não apagas
Co'a esponja de tuas vagas
Do teu manto este borrão?
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

VI

Existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que, da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!

São Paulo, 18 de abril de 1869.
(O Poeta tinha 22 anos de idade)

Xilogravura de Oswaldo Goeldi, "Pescadores"

Egito Gonçalves, "Que Resgato com o Poema ?"

Que resgato com o poema?

Que amálgama de sóis, sangue,
domínio de cinzas recupero?

Que aniquilo com o poema?

Que sobe em mim ao grito da distância,
ao apelo telefónico dum estribilho,
à gasta, espira dum disco de adeleiro?
Que compro com o poema?

A força de enfrentar a solidão
que ignorava? O desfrute
de abandonar o abismo que me extraiu
o sumo?

Que poema cavalgo?,
ou sento-me no chão?

Paulo Leminski, "Adeus ..."

Adeus, coisas que nunca tive,
dívidas externas, vaidades terrenas,
lupas de detetives, adeus.
Adeus, plenitudes inesperadas,
sustos, ímpetos e espetáculos, adeus.
Adeus, que lá se vão meus ais.
Um dia, quem sabe, sejam seus,
como um dia foram dos meus pais.
Adeus, mamãe, adeus, papai, adeus,
adeus, meus filhos, quem sabe um dia
todos os filhos serão meus.
Adeus, mundo cruel, fábula de papel,
sopro de vento, torre de babel,
adeus, coisas ao léu, adeus.

sábado, 19 de setembro de 2009

Cícero Dias, "Os Noivos em Recife"

Afonso Henriques Neto, "Momento"

Na sala
mãos muito brancas
passam e repassam páginas
do livro inconsolável.
Na cabeça
o vento enorme
de todos os poemas
cristalizando-se em nada.
No tempo
a percepção da eterna
derrota
sob ressurreições infinitas.
De repente a borboleta seca
voando
voando na sala.
Oh dai-nos ao menos
esse momento úmido
de nossas mãos no vazio.

Olavo Bilac



"Delírio"

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
— Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
— Mais abaixo, meu bem! — num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
— Mais abaixo, meu bem! — disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Miguel Torga


Depoimento

Não há céu que me queira depois disto,
Nem deus capaz de ouvir-me.
Um homem firme
É firme até no céu,
E até diante
Do Criador!
É o que eu diria se, ressuscitado,
Fosse chamado
A depor!

Roberto Burle-Marx, "Natureza Morta"

Cesare Pavese, "O Instinto"

O homem velho, desenganado de tudo,
da soleira da porta, sob o sol cálido,
observa o cão e a cadela a satisfazerem o instinto.

Sobre a sua boca desdentada perseguem-se as moscas.
A sua mulher há muito que morreu. Também ela,
como todas as cadelas, não queria saber disso,
mas não lhe faltava o instinto. O homem velho cheirava o ar
- ainda tinha dentes -, a noite vinha,
metiam-se na cama. Era bonito o instinto.

O que agrada no cão é a grande liberdade
De manhã à noite vagueia pela rua;
e ora come, ora dorme, ora monta cadelas:
não espera sequer pela noite. Raciocina
com o faro, e os cheiros que sente são seus.

O homem velho recorda-se de uma vez
em que o fez como os cães, de dia, no meio duma seara.
Já não sabe com que cadela, mas lembra-se do grande sol
e do suor e da vontade de nunca mais acabar.
Era como numa cama. Se os anos voltassem,
gostaria de o fazer sempre no meio duma seara.

Desde a rua uma mulher e pára a olhar;
o padre passa e volta-se. Na praça pública
pode-se fazer tudo. E até a mulher,
que tem pudor em voltar-se para o homem, pára.
Só um rapaz não tolera o jogo
e faz chover pedras. O homem velho indigna-se.

Simônides, "Instabilidade"


       Homem mortal,
                   não queiras predizer
                              o que o Amanhã trará,
                                                   nem, vendo alguém feliz,
o tempo em que há de assim continuar.
      
É rápida a mudança:
tão rápido nem é o voo instável
                                    da libélula de asas céleres.


Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos

Simônides nasceu em Ceos, na Grécia (556 a.C -468 a.C).

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Djanira, "Natureza Morta"

Ana Cristina Cesar, "Fisionomia"

Não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
outra a dor que dói.

Jorge de Sena


"Camões Dirige-se a seus Contemporâneos"

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Benedito Calixto, "Porto de Santos"

Manuel Bandeira, "Último Poema"

Assim eu quereria meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.

Nuno Júdice, "Distância"

Entro no teu quarto como se
entrasse no mar. Um temporal de perguntas
enrola os teus cabelos. Lanças-te
contra as ondas de um sonho antigo,
e abres a porta da varanda
para te sentares à cadeira
do oriente, apanhando o vento
da tarde. "Não te levantes, digo,
e deixe que os teus olhos se libertem
de sombra, depois de uma noite
de amor, para me abrigarem
da luz estéril da madrugada". Mudas
de posição, como se me tivesses
ouvido; e o teu corpo enche-se
de palavras, como se fosses
a taça da estrofe.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tarsila, "Operários".

José de Almada Negreiros



"A sombra sou eu"

A minha sombra sou eu,
ela não me segue,
eu estou na minha sombra
e não vou em mim.
Sombra de mim que recebo a luz,
sombra atrelada ao que eu nasci,
distância imutável de minha sombra a mim,
toco-me e não me atinjo,
só sei do que seria
se de minha sombra chegasse a mim.
Passa-se tudo em seguir-me
e finjo que sou eu que sigo,
finjo que sou eu que vou
e não que me persigo.
Faço por confundir a minha sombra comigo:
estou sempre às portas da vida,
sempre lá, sempre às portas de mim!

Drummond, "A Procura da Poesia "

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
                                                                                     [não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
                                                                                     [à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas
                                                                  [ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

sábado, 12 de setembro de 2009

Xilogravura do Poeta Matsuo Basho (1644 - 1694)

Alice Ruiz, "Mosquito Morto"

mosquito morto
sobre poemas
asas e penas

Cecília Meireles, "Plantaremos Estes Arbustos"

Plantaremos estes arbustos
que darão flor apenas
daqui a três anos.
Plantaremos estas árvores
que darão fruto um dia,
mas só depois de dez anos.
Não plantaremos jardins de amor,
porque imediatamente
abrem tristeza e saudade.
Não plantaremos lembranças
porque estão desde já e para sempre
carregadas de lágrimas.

Takaoka, "Ouro Preto"

Lya Luft



"Canção da Falsa Adormecida"

Se te pareço ausente, não creias:
Hora a hora o meu amor agarra-se aos teus braços,
Hora a hora o meu desejo revolve estes escombros
E escorrem dos meus olhos mais promessas.

Não acredites neste breve sono;
Não dês valor maior ao meu silêncio;
E se leres recados numa folha branca,
Não creias também: é preciso encostar
Teus lábios em meus lábios para ouvir.

Nem acredites se pensas que te falo:
Palavras
São o meu jeito mais secreto de calar.

João Cabral de Melo Neto, "A Viagem".

Quem é alguém que caminha
toda a manhã com tristeza
dentro de minhas roupas, perdido
além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
como se levassem nos bolsos
doces geografias, pensamentos
de além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
vem morrer no longe horizonte
de meu quarto, onde esse alguém
é vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
coisas em voz que não ouço.
Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Iberê Camargo Pintando.

Adolfo Fonzari, "Rua no Interior"

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), "Aniversário"

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião
                                                                              [qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui --- ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das
                                                                   [minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga
                                                                              [nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que
                                                                             [há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça,
                                                                    [com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra
                                                                  [debaixo do alçado ...,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Baquílides, "Agora ..."


Agora, como sempre,
com outro é que se obtem perícia:
pois não é fácil alcançar
a porta das palavras nunca ditas.



Tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos.
Baquílides nasceu em 466 a.C, em Ceos, na Grécia.

Portinari, "Menina"

Adélia Prado, "Endecha"

Embora a velha roseira insista neste agosto
e confirmem o recomeço estas mulheres grávidas,
eu sofro de um cansaço, intermitente como certas febres.
Me acontece lavar os cabelos e ir secá-los ao sol,
desavisada. Ocorre até que eu cante.
Mas pousa na canção a negra ave e eu desafino rouca,
em descompasso, uma perna mais curta,
a ausência povoando todos os meus cômodos
a lembrança endurecida no cristal
de uma pedra na uretra.

Anna Akhmátova



"Aprendi a viver ..."


Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuram as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.
Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandecente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.
Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta,
é bem possível que eu sequer te ouça.

Tradução de Lauro Machado Coelho

domingo, 6 de setembro de 2009

Pedro Alexandrino, "Natureza Morta"


António Ramos Rosa, "Não Posso Adiar o Amor"

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

Paulo Mendes Campos, "Os bares morrem numa quarta-feira"

Um amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. As pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo. Ninguém se oporia à entrada ou à saída de ninguém. Não havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais ou menos.

É possível que Kafka não haja escrito esta alegoria por ter percebido que a mesmo já existia corporificada sob a fora de cafés, restaurantes e bares. Mas o episódio pode levar-nos a considerar com súbita estranheza o mil vezes conhecido: os bares já eram kafkianos quando surgiram no mundo. Ou este, o mundo, é que foi o primeiro bar, quando se encontraram num jardim duas criaturas desconhecidas, e a mulher, buscando comunicação, ofereceu ao homem uma fruta. Foi o primeiro ponto de encontro. E não durou muito.

Pois os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem. Morrem numa quarta-feira, como diria Mário de Andrade. O obituário dessas casas fica registrado no livro de memórias. Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única cidade. Mesmo num lugar como Paris, que apesar dos pesares procura preservar a imagem histórica, os cafés de Leon-Paul Fargue não foram os cafés de Alphonse Daudet, e este não respirou a atmosfera dos cafés de Stendhal.

O curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua freqüência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem jamais o nosso amor. O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam.

João do Rio tinha sete anos e se batia contra um enorme sorvete na Confeitaria Paschoal, quando ouvia a Baronesa de Mamanguape exclamar encantada: “Oh! Senhor Olavo Bilac!”

Esta cena não se passou conosco, mas é como se tivesse sido. Seu conteúdo emocional repetiu-se na existência de todas as pessoas que freqüentaram bares e confeitarias. E repetiu-se para o próprio João do Rio, que num livro de 1912 já escreve sobre a decadência das casas de chope; ou simplesmente chopes, como eram chamadas.

Conta como esses chopes surgiram e morreram, partindo a invenção da Rua da Assembléia, nas mesas de mármore do Jacó, onde estetas, imitando Montmartre. Inauguraram o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo. Por esse tempo, uma mulher com voz de barítono, chamada Ivone, montou um cabaré satânico na Rua do Lavradio, com tudo o que havia de mais rive gauche, inclusive recitativos macabros de Baudelaire. Era o Chat Noir que perdeu fôlego por falta de verba.

Outros chopes apareceram nas ruas da Assembléia e Carioca, esmerando-se o proprietário na invenção promocional; seus chamarizes são inventariados nessa ordem cronológica de João do Rio: tenores gringos de colarinho sujo e luva na mão, acompanhados ao piano; grandes orquestrar tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras; depois, árias italianas servidas com sanduíches de caviar, um chope chegou a apresentar uma harpista capenga, mas formosa. Foi aí que um empresário genial estreou um cantor de modinhas. Foi de endoidar. “A modinha absorveu o público. Antes para ouvir uma modinha tinha a gente que arriscar a pele em baiúcas equívocas e acompanhar serestas ainda mais equívocas. No chope tomava logo um fartão sem se comprometer. E era de ver os mulatos de beiço grosso berrando tristemente: Eu canto em minha viola ternuras de amor , mas de muito amor... E os pretos barítonos, os Bruants de nanquim, maxixando cateretês apopléticos”.

Na Rua da Assembléia, à meia-noite, Catulo da Paixão Cearense erguia um triste copo de cerveja para soluçar dorme que velo, sedutora imagem.

Tudo isso é narrado já no comecinho do século já em afinação de nostalgia; pois os chopes tinham morrido no início da segunda década. Uns poucos anos antes, só na Rua da Carioca, eram uns dez; na Rua do Lavradio, ficavam de um lado e de outro; alastraram-se pela Riachuelo, pela Cidade Nova, Catumbi, Estácio, Praça Onze. Num relampejar brilharam e sumiram as estrelas daquelas noites, esquecidas pela cidade, “a mais infiel das amantes”.

Mas o chope deu um jeito e conseguiu sobreviver; só mudou de cara e personalidade. Quando cheguei ao Rio, era chope o que se tomava em muitos bares famosos, hoje mortos: Túnel da Lapa, 49, Nacional, Brahma... Aí se misturavam pequenos empregados do comércio, a gente de boa roupa e até os derradeiros malandros. No antigo Vermelhinho, as mesas eram ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e estudantes da Escola de Belas-Artes. Suas figuras mais constantes eram Santa Rosa, como cigarro pendurado na boca, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Rangel. João Cabral de Melo Neto costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor de cabeça, dar um pulo à Farmácia Normal. Os artistas pretos – Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano Trindade, Abdias Nascimento – sentiam-se em casa nas cadeiras de palhinha do Vermelhinho, assim como os estrangeiros trazidos pela guerra. Carlos Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só passava de fininho pela Rua Araújo Porto Alegre.

Depois, uma parte da turma atravessou a rua, pegou o elevador e se instalou no ajardinado terraço da ABI, passando a tomar uísque de fato escocês, porém milimetricamente dosado pelo garçom Stuckert – o Estuca.

O que não se dava nas mercearias enxertadas de uisquerias . Nessas - Pardellas, Lidador, Grande Ponto, Casa Carvalho, Vilariño - o uísque era generoso, apesar de amplamente discutível sua autenticidade. Grande animador desses bares foi o médico pernambucano Eustáquio Duarte, criador do gabarito fosfórico: pleiteou e conseguiu que a dose chegasse à altura de uma caixa de fósforos colocada em pé ao lado do copo.

Eustáquio (Totó Borum para os íntimos) intitulava-se o proletário e era autor de elaborada classificação psicofísica das mulheres ( a pebologia); essa teoria era o enlevo de todos os freqüentadores notadamente do poeta Vinícius. Era ainda o médico (mas atribuía a paternidade a um tal de Fernando C. Pessoa, gerente de hotel na Bahia) autor de sonetos pornográficos da mais pura linguagem bocagiana.

Andou por esses bares ilustres – falo apenas dos que melhor conheci no centro da cidade – toda uma geração de vários sotaques. Eneida (que, antes do Baile dos Pierrots, criou no Vermelhinho um forró carnavalesco de portas cerradas) era vista a todo momento com seus balangandãs tilitantes, entrando no Instituto Nacional do Livro ou dele saindo. Rosário Fusco era onipresente, deixando à porta de todos os bares um táxi à espera. Hoje esse dom da ubiqüidade pertence ao corretor Luís Antônio Pontual.

Zé Lins do Rego era detectado à distância por sua gargalhada. Com ar de menino levado e lavado, Lamartine Babo já entrava trauteando uma canção amena. Ari Barroso, pelo contrário, turbilhonava para dentro do bar com gestos e gritos homéricos: parecia que a guerra fora declarada ou que um ônibus passara por cima dele; mas não era nada.

Por ali, entre Presidente Wilson e Almirante Barroso, circulou o Rio artístico, do fim da guerra à guerra fria, mas a verdade histórica manda dizer que a falta de transporte no fim da tarde foi também um determinante desse comportamento boêmio.

Em dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca's Bar, na Rua Senador Dantas: era o alívio do ar refrigerado que chegava. Lá se instalaram rapidamente assessores do Presidente Juscelino, os irmãos Condé com o Jornal de Letras, os irmãos Chaves, que atraíam os nordestinos itinerantes. Olívio Montenegro era contumaz e Gilberto Freyre costumava dar as caras.

Era uma mistura sensacional, estimulante. Ali todos os setores tinham suas embaixadas. Dou uns poucos exemplos: Rubem Braga representava a prosa, Vinícius de Moraes o verso; Stanislaw Ponte Preta o humorismo; Carlos Leão representava a arquitetura renovadora, passando a noite a desenhar mulheres nuas em bom papel que um bom mineiro comprava na papelaria ao lado; o Coronel Amílcar Dutra de Menezes representava o Estado Novo em geral e o DIP em particular, mas soube tornar-se amigo dos velhos inimigos; Antiógenes Chaves falava em nome das classes empresariais; Zé Lins em nome do Flamengo; o Comandante João Milton Prates representava com elegância a Presidência da República; às vezes aparecia Agildo Barata ou outro representante histórico; Luís Jardim, chupitando o seu uísque com o relógio em cima da mesa era o próprio secretário da UDN; a jornalista Jane Braga vinha em nome do Texas; Di Cavalcanti era o ponto alto das artes visuais, embora só admitisse, como tema de conversa, literatura e mulheres bonitas; estas, por sua, vez, estavam muito bem representadas na pessoa de Tônia Carrrero, enquanto Araci de Almeida era o Samba em pessoa.

Mas algumas brechas iam se abrindo no trânsito compacto do crepúsculo e os boêmios começaram a deixar a cidade mais cedo e a criar alma nova na Zona Sul. Em bares que iam igualmente brilhando, apagando-se e morrendo. Ou pelo menos morriam para eles. É o caso do Alcazar e do Maxim's, em Copacabana; do Jangadeiro e do Zeppelin, em Ipanema; do Clipper, no Leblon. No Alcazar (em cima morava o poeta Augusto Frederico Schmidt) ia o pessoal que não perdia o cinema das dez e muito menos o chope da meia-noite às duas da manhã; o Maxim's, com Sílvio Caldas e Araci de Almeida à frente, absorveu todos os musicais do Vilariño; no Jangadeiro aparecia Lúcio Cardoso; ao Zeppelin afluía aos domingos uma boa torrente das reuniões da casa de Aníbal Machado; no Clipper imperavam Antônio Maria (fragorosamente) e Dorival Caymmi (de mansinho).

Mas esses bares morreram ou mudaram de personalidade como do uísque para a água, o que é mais antipático que a morte. Como morreram muitos outros que eu conheci no breve espaço de um entardecer que durou vinte anos. O bar do Hotel Central, por exemplo, na Praia do Flamengo, que servia rosbife de tira-gosto e era um encanto; a Brasileira, na Cinelândia, que era mais uma confeitaria, mas onde encontrei uma tarde o vigoroso romancista católico Georges Bernanos fazendo um escarcéu de mil diabos porque não podia escrever com o escarcéu que os garçons faziam; o Segunda Frente, em Copacabana, que morreu logo depois que os sócios (um deles era o pintor Raimundo Nogueira) e seus amigos beberam a última gota do estoque antes de entrar dinheiro na caixa.

São muitos outros, mas a História dos Bares do Rio, que deveria ser escrita, precisaria ser contratada por um editor.

Por fim, ultimamente, morreu o famosíssimo Lamas, no Catete. Foi devidamente chorado na imprensa e continuará sendo lacrimejado em centenas de bares em que se espalham hoje os remanescentes dos antigos antros de perdição. Pois agora, quando desaparece também o Bon Marché (Avenida Copacabana, esquina de Siqueira Campos), os boêmios do Rio, tangidos pela demolição imobiliária, vivem pelos descaminhos da diáspora. Agüentou 73 anos de existência. Aquela esquina estava predestinada a libações: em 1892, ao ser inaugurada ali defronte a estação dos bondes houve um auto lunch, com brindes de champagne ao Marechal Floriano Peixoto... à Guarda Nacional... à Armada... ao Exército...à Intendência Municipal... e à diretoria da Companhia do Jardim Botânico. Não, houve mais um, o de honra, erguido pelo Presidente do Senado ao Marechal Floriano Peixoto e ao engrandecimento da República.

No Bon Marché Pixinguinha animou bailes de carnaval. Por ali passaram generais, almirantes, escritores, desembargadores, artistas, jogadores de futebol, milionários, políticos, delegados, sambistas e o sempiterno Gasolina, que aliás não passou e nunca fez nada e não saberá aonde ir quando for removido o último tijolo do prédio.

Viveram no Bon Marché algumas gerações de bêbados ilustres, de gente que bebia e se entendia e que continuará se entendendo. Pois uma lei rege a harmonia das esferas humanas: Cristo nos convidou a amar o próximo como a nós mesmos; mas a verdade é que só os bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios.