Um amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser convidadas. As pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo. Ninguém se oporia à entrada ou à saída de ninguém. Não havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais ou menos.
É possível que Kafka não haja escrito esta alegoria por ter percebido que a mesmo já existia corporificada sob a fora de cafés, restaurantes e bares. Mas o episódio pode levar-nos a considerar com súbita estranheza o mil vezes conhecido: os bares já eram kafkianos quando surgiram no mundo. Ou este, o mundo, é que foi o primeiro bar, quando se encontraram num jardim duas criaturas desconhecidas, e a mulher, buscando comunicação, ofereceu ao homem uma fruta. Foi o primeiro ponto de encontro. E não durou muito.
Pois os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e morrem. Morrem numa quarta-feira, como diria Mário de Andrade. O obituário dessas casas fica registrado no livro de memórias. Recordá-los, os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única cidade. Mesmo num lugar como Paris, que apesar dos pesares procura preservar a imagem histórica, os cafés de Leon-Paul Fargue não foram os cafés de Alphonse Daudet, e este não respirou a atmosfera dos cafés de Stendhal.
O curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua freqüência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem jamais o nosso amor. O bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares perdem suas arestas e se sublimam.
João do Rio tinha sete anos e se batia contra um enorme sorvete na Confeitaria Paschoal, quando ouvia a Baronesa de Mamanguape exclamar encantada: “Oh! Senhor Olavo Bilac!”
Esta cena não se passou conosco, mas é como se tivesse sido. Seu conteúdo emocional repetiu-se na existência de todas as pessoas que freqüentaram bares e confeitarias. E repetiu-se para o próprio João do Rio, que num livro de 1912 já escreve sobre a decadência das casas de chope; ou simplesmente chopes, como eram chamadas.
Conta como esses chopes surgiram e morreram, partindo a invenção da Rua da Assembléia, nas mesas de mármore do Jacó, onde estetas, imitando Montmartre. Inauguraram o prazer de discutir literatura e falar mal do próximo. Por esse tempo, uma mulher com voz de barítono, chamada Ivone, montou um cabaré satânico na Rua do Lavradio, com tudo o que havia de mais rive gauche, inclusive recitativos macabros de Baudelaire. Era o Chat Noir que perdeu fôlego por falta de verba.
Outros chopes apareceram nas ruas da Assembléia e Carioca, esmerando-se o proprietário na invenção promocional; seus chamarizes são inventariados nessa ordem cronológica de João do Rio: tenores gringos de colarinho sujo e luva na mão, acompanhados ao piano; grandes orquestrar tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras; depois, árias italianas servidas com sanduíches de caviar, um chope chegou a apresentar uma harpista capenga, mas formosa. Foi aí que um empresário genial estreou um cantor de modinhas. Foi de endoidar. “A modinha absorveu o público. Antes para ouvir uma modinha tinha a gente que arriscar a pele em baiúcas equívocas e acompanhar serestas ainda mais equívocas. No chope tomava logo um fartão sem se comprometer. E era de ver os mulatos de beiço grosso berrando tristemente: Eu canto em minha viola ternuras de amor , mas de muito amor... E os pretos barítonos, os Bruants de nanquim, maxixando cateretês apopléticos”.
Na Rua da Assembléia, à meia-noite, Catulo da Paixão Cearense erguia um triste copo de cerveja para soluçar dorme que velo, sedutora imagem.
Tudo isso é narrado já no comecinho do século já em afinação de nostalgia; pois os chopes tinham morrido no início da segunda década. Uns poucos anos antes, só na Rua da Carioca, eram uns dez; na Rua do Lavradio, ficavam de um lado e de outro; alastraram-se pela Riachuelo, pela Cidade Nova, Catumbi, Estácio, Praça Onze. Num relampejar brilharam e sumiram as estrelas daquelas noites, esquecidas pela cidade, “a mais infiel das amantes”.
Mas o chope deu um jeito e conseguiu sobreviver; só mudou de cara e personalidade. Quando cheguei ao Rio, era chope o que se tomava em muitos bares famosos, hoje mortos: Túnel da Lapa, 49, Nacional, Brahma... Aí se misturavam pequenos empregados do comércio, a gente de boa roupa e até os derradeiros malandros. No antigo Vermelhinho, as mesas eram ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e estudantes da Escola de Belas-Artes. Suas figuras mais constantes eram Santa Rosa, como cigarro pendurado na boca, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Rangel. João Cabral de Melo Neto costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor de cabeça, dar um pulo à Farmácia Normal. Os artistas pretos – Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano Trindade, Abdias Nascimento – sentiam-se em casa nas cadeiras de palhinha do Vermelhinho, assim como os estrangeiros trazidos pela guerra. Carlos Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só passava de fininho pela Rua Araújo Porto Alegre.
Depois, uma parte da turma atravessou a rua, pegou o elevador e se instalou no ajardinado terraço da ABI, passando a tomar uísque de fato escocês, porém milimetricamente dosado pelo garçom Stuckert – o Estuca.
O que não se dava nas mercearias enxertadas de uisquerias . Nessas - Pardellas, Lidador, Grande Ponto, Casa Carvalho, Vilariño - o uísque era generoso, apesar de amplamente discutível sua autenticidade. Grande animador desses bares foi o médico pernambucano Eustáquio Duarte, criador do gabarito fosfórico: pleiteou e conseguiu que a dose chegasse à altura de uma caixa de fósforos colocada em pé ao lado do copo.
Eustáquio (Totó Borum para os íntimos) intitulava-se o proletário e era autor de elaborada classificação psicofísica das mulheres ( a pebologia); essa teoria era o enlevo de todos os freqüentadores notadamente do poeta Vinícius. Era ainda o médico (mas atribuía a paternidade a um tal de Fernando C. Pessoa, gerente de hotel na Bahia) autor de sonetos pornográficos da mais pura linguagem bocagiana.
Andou por esses bares ilustres – falo apenas dos que melhor conheci no centro da cidade – toda uma geração de vários sotaques. Eneida (que, antes do Baile dos Pierrots, criou no Vermelhinho um forró carnavalesco de portas cerradas) era vista a todo momento com seus balangandãs tilitantes, entrando no Instituto Nacional do Livro ou dele saindo. Rosário Fusco era onipresente, deixando à porta de todos os bares um táxi à espera. Hoje esse dom da ubiqüidade pertence ao corretor Luís Antônio Pontual.
Zé Lins do Rego era detectado à distância por sua gargalhada. Com ar de menino levado e lavado, Lamartine Babo já entrava trauteando uma canção amena. Ari Barroso, pelo contrário, turbilhonava para dentro do bar com gestos e gritos homéricos: parecia que a guerra fora declarada ou que um ônibus passara por cima dele; mas não era nada.
Por ali, entre Presidente Wilson e Almirante Barroso, circulou o Rio artístico, do fim da guerra à guerra fria, mas a verdade histórica manda dizer que a falta de transporte no fim da tarde foi também um determinante desse comportamento boêmio.
Em dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca's Bar, na Rua Senador Dantas: era o alívio do ar refrigerado que chegava. Lá se instalaram rapidamente assessores do Presidente Juscelino, os irmãos Condé com o Jornal de Letras, os irmãos Chaves, que atraíam os nordestinos itinerantes. Olívio Montenegro era contumaz e Gilberto Freyre costumava dar as caras.
Era uma mistura sensacional, estimulante. Ali todos os setores tinham suas embaixadas. Dou uns poucos exemplos: Rubem Braga representava a prosa, Vinícius de Moraes o verso; Stanislaw Ponte Preta o humorismo; Carlos Leão representava a arquitetura renovadora, passando a noite a desenhar mulheres nuas em bom papel que um bom mineiro comprava na papelaria ao lado; o Coronel Amílcar Dutra de Menezes representava o Estado Novo em geral e o DIP em particular, mas soube tornar-se amigo dos velhos inimigos; Antiógenes Chaves falava em nome das classes empresariais; Zé Lins em nome do Flamengo; o Comandante João Milton Prates representava com elegância a Presidência da República; às vezes aparecia Agildo Barata ou outro representante histórico; Luís Jardim, chupitando o seu uísque com o relógio em cima da mesa era o próprio secretário da UDN; a jornalista Jane Braga vinha em nome do Texas; Di Cavalcanti era o ponto alto das artes visuais, embora só admitisse, como tema de conversa, literatura e mulheres bonitas; estas, por sua, vez, estavam muito bem representadas na pessoa de Tônia Carrrero, enquanto Araci de Almeida era o Samba em pessoa.
Mas algumas brechas iam se abrindo no trânsito compacto do crepúsculo e os boêmios começaram a deixar a cidade mais cedo e a criar alma nova na Zona Sul. Em bares que iam igualmente brilhando, apagando-se e morrendo. Ou pelo menos morriam para eles. É o caso do Alcazar e do Maxim's, em Copacabana; do Jangadeiro e do Zeppelin, em Ipanema; do Clipper, no Leblon. No Alcazar (em cima morava o poeta Augusto Frederico Schmidt) ia o pessoal que não perdia o cinema das dez e muito menos o chope da meia-noite às duas da manhã; o Maxim's, com Sílvio Caldas e Araci de Almeida à frente, absorveu todos os musicais do Vilariño; no Jangadeiro aparecia Lúcio Cardoso; ao Zeppelin afluía aos domingos uma boa torrente das reuniões da casa de Aníbal Machado; no Clipper imperavam Antônio Maria (fragorosamente) e Dorival Caymmi (de mansinho).
Mas esses bares morreram ou mudaram de personalidade como do uísque para a água, o que é mais antipático que a morte. Como morreram muitos outros que eu conheci no breve espaço de um entardecer que durou vinte anos. O bar do Hotel Central, por exemplo, na Praia do Flamengo, que servia rosbife de tira-gosto e era um encanto; a Brasileira, na Cinelândia, que era mais uma confeitaria, mas onde encontrei uma tarde o vigoroso romancista católico Georges Bernanos fazendo um escarcéu de mil diabos porque não podia escrever com o escarcéu que os garçons faziam; o Segunda Frente, em Copacabana, que morreu logo depois que os sócios (um deles era o pintor Raimundo Nogueira) e seus amigos beberam a última gota do estoque antes de entrar dinheiro na caixa.
São muitos outros, mas a História dos Bares do Rio, que deveria ser escrita, precisaria ser contratada por um editor.
Por fim, ultimamente, morreu o famosíssimo Lamas, no Catete. Foi devidamente chorado na imprensa e continuará sendo lacrimejado em centenas de bares em que se espalham hoje os remanescentes dos antigos antros de perdição. Pois agora, quando desaparece também o Bon Marché (Avenida Copacabana, esquina de Siqueira Campos), os boêmios do Rio, tangidos pela demolição imobiliária, vivem pelos descaminhos da diáspora. Agüentou 73 anos de existência. Aquela esquina estava predestinada a libações: em 1892, ao ser inaugurada ali defronte a estação dos bondes houve um auto lunch, com brindes de champagne ao Marechal Floriano Peixoto... à Guarda Nacional... à Armada... ao Exército...à Intendência Municipal... e à diretoria da Companhia do Jardim Botânico. Não, houve mais um, o de honra, erguido pelo Presidente do Senado ao Marechal Floriano Peixoto e ao engrandecimento da República.
No Bon Marché Pixinguinha animou bailes de carnaval. Por ali passaram generais, almirantes, escritores, desembargadores, artistas, jogadores de futebol, milionários, políticos, delegados, sambistas e o sempiterno Gasolina, que aliás não passou e nunca fez nada e não saberá aonde ir quando for removido o último tijolo do prédio.
Viveram no Bon Marché algumas gerações de bêbados ilustres, de gente que bebia e se entendia e que continuará se entendendo. Pois uma lei rege a harmonia das esferas humanas: Cristo nos convidou a amar o próximo como a nós mesmos; mas a verdade é que só os bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios.
domingo, 6 de setembro de 2009
Paulo Mendes Campos, "Os bares morrem numa quarta-feira"
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