sexta-feira, 30 de junho de 2017

Alexei Bueno, "O mago"


Eu amo os bosques e as ruínas e os conventos
E toda parte onde o mistério nos destrua,
Pois nada vale ir decifrar com gestos lentos
A mão sem causa que fez tudo e a tudo estua.

Era impossível que algo houvesse, e tais tormentos
Vêm de ainda assim este algo haver, enquanto a lua
Que por verdade não nascera assopra os ventos
Aos nossos olhos também falsos desta rua.

Oh! alamedas, catedrais, sombras pendentes,
Por ser sem fruto ainda buscar nos entregamos
De uma só vez a este mistério que encarnamos,

Numa volúpia de esquecer, da noite ausentes,
Como o mendigo que sem forças para a sorte
Se entrega inteiro à sua garrafa e à sua morte!

quarta-feira, 28 de junho de 2017

Antonio Cicero, "Cidade"


                                                        Para Arthur Nestrovsky 

Lembro que o futuro era uma cidade 
nebulosa da qual eu esperava 
tudo e que, sendo uma cidade, nada 
esperava de ninguém. Ah, cidade 
sonhada de avenidas macadâmicas, 
turbas febris e prédios de granito: 
o que era que eu perdera e que, perdido 
e em cacos, buscava nas tuas áridas 
calçadas e esquinas? Hoje constato 
que a névoa do futuro do passado 
adensa-se dia a dia. De longe 
teus contornos são mais arredondados. 
Tu, cidade irreal, aos poucos somes: 
já anseio te rever e já te escondes. 


terça-feira, 27 de junho de 2017

Carlos Drummond de Andrade, "Morte no avião"


Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.

Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua, que atravesso. E quantas coisas
que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.

Visito o banco. Para quê
esse dinheiro azul se algumas horas
mais, vem a polícia retirá-lo
do que foi meu peito e está aberto.
Mas não me vejo cortado e ensangüentado.
Estou limpo, claro, nítido, estivai.
Não obstante caminho para a morte.

Passo nos escritórios. Nos espelhos,
nas mãos que apertam, nos olhos míopes, nas bocas
que sorriem ou simplesmente falam eu desfilo.
Não me despeço, de nada sei, não temo:
a morte dissimula
seu bafo e sua tática.

Almoço. Para quê? Almoço um peixe em ouro e creme
É meu último peixe em meu último
garfo. A boca distingue, escolhe, julga,
absorve. Passa música no doce, um arrepio
de violino ou vento, não sei. Não é a morte.
É o sol. Os bondes cheios. O trabalho.

Estou na cidade grande e sou um homem
na engrenagem. Tenho pressa. Vou morrer.
Peço passagem aos lentos. Não olho os cafés
que retinem xícaras e anedotas,
como não olho o muro do velho hospital em sombra.
Nem os cartazes. Tenho pressa. Compro um jornal. É pressa,
embora vá morrer.

O dia na sua metade já rota não me avisa
que começo também a acabar. Estou cansado.
Queria dormir, mas os preparativos. O telefone.
A fatura. A carta. Faço mil coisas
que criarão outras mil, aqui, além, nos Estados Unidos.
Comprometo-me ao extremo, combino encontros
a que nunca irei, pronuncio palavras vãs,
minto dizendo: até amanhã. Pois não haverá.

Declino com a tarde, minha cabeça dói, defendo-me,
a mão estende um comprimido: a água
afoga a menos que dor, a mosca,
o zumbido... Disso não morrerei: a morte engana,
como um jogador de futebol a morte engana.
como os caixeiros escolhe
meticulosa, entre doenças e desastres.

Ainda não é a morte, é a sombra
sobre edifícios fatigados, pausa
entre duas corridas. Desfalece o comércio de atacados,
vão repousar os engenheiros, os funcionários, os pedreiros.
Mas continuam vigilantes os motoristas, os garçons,
mil outras profissões noturnas. A cidade
muda de mão, num golpe.

Volto à casa. De novo me limpo.
Que os cabelos se apresentem ordenados
e as unhas não lembrem a antiga criança rebelde.
A roupa sem pó. A mala sintética.
Fecho meu quarto. Fecho minha vida.
O elevador me fecha. Estou sereno.

Pela última vez miro a cidade.
Ainda posso desistir, adiar a morte,
não tomar esse carro. Não seguir para.
Posso voltar, dizer: amigos,
esqueci um papel, não há viagem,
ir ao cassino, ler um livro.

Mas tomo o carro. Indico o lugar
onde algo espera. O campo. Refletores.
Passo entre mármores, vidro, aço cromado.
Subo uma escada. Curvo-me. Penetro
no interior da morte.

A morte dispôs poltronas para o conforto
da espera. Aqui se encontram
os que vão morrer e não sabem.
Jornais, café, chicletes, algodão para o ouvido,
pequenos serviços cercam de delicadeza
nossos corpos amarrados.
Vamos morrer, já não é apenas
meu fim particular e limitado,
somos vinte a ser destruídos,
morreremos vinte,
vinte nos espatifaremos, é agora.

Ou quase. Primeiro a morte particular,
restrita, silenciosa, do indivíduo.
Morro secretamente e sem dor,
para viver apenas como pedaço de vinte,
e me incorporo todos os pedaços
dos que igualmente vão perecendo calados.
Somos um em vinte, ramalhete
de sopros robustos prestes a desfazer-se.

E pairamos,
frigidamente pairamos sobre os negócios
e os amores da região.
Ruas de brinquedo se desmancham,
luzes se abafam; apenas
colchão de nuvens, morros se dissolvem,
apenas
um tubo de frio roça meus ouvidos,
um tubo que se obtura: e dentro
da caixa iluminada e tépida vivemos
em conforto e solidão e calma e nada.

Vivo
meu instante final e é como
se vivesse há mui; os anos
antes e depois de hoje,
uma contínua vida irrefreável,
onde não houvesse pausas, síncopes, sonos,
tão macia na noite é esta máquina e tão facilmente ela corta
blocos cada vez maiores de ar.

Sou vinte na máquina
que suavemente respira,
entre placas estelares e remotos sopros de terra,
sinto-me natural a milhares de metros de altura,
nem ave nem mito,
guardo consciência de meus poderes,
e sem mistificação eu voo,
sou um corpo voante e conservo bolsos, relógios, unhas,
ligado à terra pela memória e pelo costume dos músculos,
carne em breve explodindo.

Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.

domingo, 25 de junho de 2017

Florbela Espanca














"Supremo enleio"

Quanta mulher no teu passado, quanta!
Tanta sombra em redor! Mas que me importa?
Se delas veio o sonho que conforta,
A sua vinda foi três vezes santa!

Erva do chão que a mão de Deus levanta,
Folhas murchas de rojo à tua porta...
Quando eu for uma pobre coisa morta,
Quanta mulher ainda! Quanta! Quanta!

Mas eu sou a manhã: apago estrelas!
Hás de ver-me, beijar-me em todas elas,
Mesmo na boca da que for mais linda!

E quando a derradeira, enfim, vier,
Nesse corpo vibrante de mulher
Será o meu que hás de encontrar ainda...

sábado, 24 de junho de 2017

Ivan Junqueira, "O náufrago"


Na curva suave da tarde,
entre as algas e os sargaços,
que ungem a crista das vagas,
um homem, errático, arfa
e nada em busca da praia
a que não chegam seus braços.
Sem bússula ou carta náutica,
leme, sextante, astrolábio,
nada em direção ao nada,
ao que restou de sua alma
que um dia vendeu ao diabo,
como na lenda de Fausto,
em troca da glória fátua
e um grão de imortalidade.
Enquanto nada e se exaure,
toda a vida que levara
vai refluindo, aos pedaços,
como um filme enevoado
que na tela projetasse
as imagens ao contrário.
Mas o que informa o relato,
sem legendas que o aclarem,
é bem mais do que ele narra
em sua língua enrolada:
é a crônica de uma fraude
de quem rasgou o relato
e perdeu a identidade,
de quem, por julgar-se raro,
se esqueceu de que o vulgar
é também aristocrático,
na medida em que decarna
o rei até a carcaça
e o põe nu, e o equipara
ao mais humilde vassalo.
Na curva suave da tarde,
um homem nada. E naufraga.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Mário de Sá-Carneiro, "Último soneto"


Que rosas fugitivas foste ali:
Requeriam-te os tapetes — e vieste ...
— Se me dói hoje o bem que me fizeste,
É justo, porque muito te devi.

Em que seda de afagos me envolvi
Quando entraste, nas tardes que apareceste ­
Como fui de perca! quando me deste
Tua boca a beijar, que remordi ...

Pensei que fosse o meu o teu cansaço
Que seria entre nós um longo abraço
O tédio que, tão esbelta, te curvava ...

E fugiste ... Que importa? Se deixaste
A lembrança violeta que animaste,
Onde a minha saudade a Cor se trava?

quarta-feira, 21 de junho de 2017

Manuela Amaral, "Ser tudo não me basta"


Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta

Sou tudo

Mas ser tudo
não me basta

segunda-feira, 19 de junho de 2017

Fernando Pessoa, "Fosse eu apenas, não sei onde ou como..."


Fosse eu apenas, não sei onde ou como,
Uma cousa existente sem viver,
Noite de Vida sem amanhecer
Entre as sirtes do meu dourado assomo …

Fada maliciosa ou incerto gnomo
Fadado houvesse de não pertencer
Meu intuito gloríola* com ter
A árvore do meu uso o único pomo …

Fosse eu uma metáfora somente
Escrita nalgum livro insubsistente
Dum poeta antigo, de alma em outras gamas,

Mas doente, e, num crepúsculo de espadas,
Morrendo entre bandeiras desfraldadas
Na última tarde de um império em chamas …


*gloríola - Pequena glória, boa reputação injustificada.

domingo, 18 de junho de 2017

Helder Macedo, "Orfeu"


Não é bastante
que eu reconheça a minha solidão
e a queira como início dum caminho.
Não é bastante
ser livremente tudo quanto sei
e estar aberto a tudo o que serei.
Tudo o que fui e o que sou e o que serei
já são iguais
no tempo do meu todo ignorado.
Quero abrir o que as palavras não descrevem
para já não responder ao sim e ao não
do meu espelho conhecível.
Já não me basta apenas dar um nome
à morte que me cabe enquanto vivo
porque morrer é ter perdido a morte
para sempre
tornando sem sentido o sim e o não
com que me circundei e defini-me.
Conheço-me as fronteiras.
Quero o resto.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Carlos Drummond de Andrade









"Amor e seu tempo"

Amor é privilégio de maduros
estendidos na mais estreita cama,
que se torna a mais larga e mais relvosa,
roçando, em cada poro, o céu do corpo.

É isto, amor: o ganho não previsto,
o prêmio subterrâneo e coruscante,
leitura de relâmpago cifrado,
que, decifrado, nada mais existe

valendo a pena e o preço do terrestre,
salvo o minuto de ouro no relógio
minúsculo, vibrando no crepúsculo.

Amor é o que se aprende no limite,
depois de se arquivar toda a ciência
herdada, ouvida. Amor começa tarde.

quinta-feira, 15 de junho de 2017

Ivan Junqueira














"Prólogo"

Eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.
Na infância, quando fui relva,
sentia os pés dos efebos
a calcar-me as frágeis vértebras
e colhia das donzelas
o frêmito que, venéreo,
era um augúrio da queda.

Depois, quando fui cipreste,
vi como o vento, em seus dédalos,
cingia-me a áspera testa
e tangia-me as ideias
que nos ramos, vãs quimeras,
pousavam como uma névoa,
úmidas ainda das trevas
e do abismo de que vieram.

Quando fui córrego, as pedras
me ensinaram que o critério
do que em tudo permanece,
nunca está nelas, inertes,
mas nas águas que se mexem
com vário e distinto aspecto,
de modo que não repetem
o que antes foi (e era breve).

Quando enfim galguei o vértice
de alguém que eu mesmo não era,
compreendi que esse processo
de sermos outros (e até
termos em nós outro sexo)
nada em si tinha de inédito:
já se lia no evangelho
de um deus ambíguo e pretérito.

E assim fui sendo esse leque
de coisas fluidas e inquietas,
jamais levianas, bem certo,
mas antes, em seu trajeto,
vertentes as mais diversas
de uma só e única célula:
a da matriz que não é
senão seu próprio reverso.

Espelho de meus espectros,
urna de engodo e miséria,
alma sôfrega e sem tréguas,
osso escasso no deserto
onde jejua um profeta,
solidão, infâmia e tédio
– eu sou apenas um poeta
a quem Deus deu voz e verso.

terça-feira, 13 de junho de 2017

Hilda Hilst, "Vº poema da série 'Alcoólicas'"














"Te amo. Vida..."

Te amo, Vida, líquida esteira onde me deito
Romã baba alcaçuz, teu trançado rosado
Salpicado de negro, de doçuras e iras.
Te amo, Líquida, descendo escorrida
Pela víscera, e assim esquecendo.

               Fomes
               País
               O riso solto
              A dentadura etérea
              Bola
              Miséria.

Bebendo, Vida, invento casa, comida
E um Mais que se agiganta, um Mais
Conquistando um fulcro potente na garganta
Um látego, uma chama, um canto. Ama-me.
Embriagada. Interdita. Ama-me. Sou menos
Quando não sou líquida.

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Lúcio Cardoso, "Tempo de espera"


Resta o silêncio imutável
e as aparições no tempo
em que o trem foge em busca louca
de passageiros que partiram.

Resta o frio do marmóreo e o imutável
silêncio do gelo imutável.

E quem ficou na longa espera,
e quem partiu na longa ruga,
ficou saudoso do tempo de espera
e saudoso do tempo de partida.

sábado, 10 de junho de 2017

Glauco Mattoso, "Engaiolado"


Os pássaros povoam a visão
idílica dos bardos inspirados:
pardais e sabiás ressabiados;
o melro, o rouxinol, canoro ou não.

Algumas outras aves também são
tetéias dos poetas nestes lados:
jandaias, assuns pretos, que, furados
seus olhos, mais bonito cantarão.

Arrulhos e trinados e gorjeios
povoam os ouvidos dos poetas...
Os não sentimentais estão é cheios!

A mim, são preferíveis as discretas:
coruja, por exemplo, ou uns mais feios:
o pato e o urubu: pé chato e infectas...

sexta-feira, 9 de junho de 2017

Al Berto, "Diários"












10 abril 1985                                rua do forte

       
levo uma noite portátil no coração e um cão de lume guarda os silêncios o
corpo da traição
          são horas de caminhar fora de mim ao teu encontro
          vou
          tropeçando na luz das avenidas
          ... o olhar preso ao interior dos passos onde não estás
          levo numa noite transistorizada

          na brancura do dia caminho para ti. silencio o corpo da noite ao
teu encontro tropeçando num som e no cão de lume que tens de guarda ao coração


quinta-feira, 8 de junho de 2017

quarta-feira, 7 de junho de 2017

Alice Ruiz, "Noite e dia"


Não me agradam
essas coisas que despertam
barulho, susto, água fria
tudo na minha cara
mais nenhum sonho por perto.

Não me agradam
essas coisas que adormecem
vazio, escuro, calmaria
tudo que lembra morte
quando nada mais dá certo.

Não me agradam
essas coisas sem poesia
uma noite só noite
um dia só dia.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Leis estranhas no Mississípi (EUA)


Mississípi

-- A pessoa que tiver dois filhos ilegítimos irá para a cadeia por pelo menos um mês.
-- Cidades e condados não podem regulamentar rótulos nutricionais.
-- Um homem não pode seduzir uma mulher, mentindo para ela ou prometendo se casar com ela.
-- Ninguém pode subornar um atleta, para burlar um jogo ou um campeonato.
-- É ilegal ensinar a outras pessoas o que é poligamia.
-- Adultério ou fornicação (viver juntos, sem casamento, ou fazer sexo com alguém que não é cônjuge) resulta em multa de US$ 500 e seis meses de cadeia.
-- Relações sexuais não naturais são condenadas com pena de prisão de 10 anos e multa de US$ 10 mil.
-- É ilegal para o homem ficar sexualmente excitado em público.
-- É ilegal ir para a cama sem tomar banho.
-- Roubo de gado é punível com enforcamento.
-- Cavalos devem ser mantidos a pelo menos 15 metros de estradas.
-- Uso de linguagem profana em lugares públicos gera multa de US$ 100.
-- Civis não podem prender uma pessoa por perturbar serviço religioso.
-- Vagabundagem é punida com 30 dias de cadeia ou multa de US$ 250.
-- Em Ridgeland: é ilegal fazer sexo em público.
-- Em Tylertown, é ilegal fazer a barba no centro da rua principal.

segunda-feira, 5 de junho de 2017

domingo, 4 de junho de 2017

Konstantinos kaváfis












"Tanto contemplei..."

Tanto contemplei a beleza
que minha vista dela se fartou.

Linhas do corpo. Lábios rubros. Membros sensuais.
Cabelos como que tomados de estátuas gregas:
sempre belos, mesmo quando estão despenteados,
e caem, um pouco, sobre a fronte branca.
Rostos do amor, assim como os desejava
minha poesia... nas noites de minha juventude,
em minhas moites, às ocultas, encontrados...

sábado, 3 de junho de 2017

Antônio Carlos Secchin, "Língua negra, Rio 30 graus"


Bem longe explode em preto
a pele cósmica de uma estrela,
aqui arde em silêncio
a pele grossa de uma vela.
Negra é a língua que se enreda
para um salto sem saber o que a espera.
Negra, negra língua,
com seu gosto de esgoto e de quimera.
Língua que se desfaz, liquefeita,
na cachaça trôpega dos bares da favela.
Língua que ao pó retorna, heroína
celebrada na veia aberta das vielas.
Passos que galopam para o abismo,
expulsando a pontapés a primavera.
Um fio de luz desmancha o frio.
Anoitece no Rio de Janeiro.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Kirmen Uribe, "O estranho"


Não sei dizer quando começou, não sei.
Faz um mês que me dei conta, e
desde então sucedeu cada noite.

Tomei todas as precauções necessárias:
deixar o carro no lugar seguro de costume,
assegurar-me de ter fechado bem as portas. Em vão.

Ao dia seguinte o encontraria aberto.
No princípio decidi estacionar
por outros bairros. Em vão.

O encontrava aberto. Ao parecer,
alguém costumava dormir dentro.
E eu ia trabalhar com seu odor.

Logo pensei que se não fazia outra coisa que dormir,
não era tão grave. Ao fim e ao cabo,
não levava o carro. E mais,

me resultava agradável aquele perfume distante.
Me perguntava sobre sua origem,
pela cor da pele, seria negra ou da cor do mel?

Uma vez lhe deixei uma flor. Colheu-a.
No dia seguinte lhe deixei uma mensagem.
Em vão. Não voltou a aparecer.

Tradução de Angela Caon Pieruccini